segunda-feira, 31 de março de 2008

Carta aos Romanos - 17

Romanos 14 é um desses capítulos que eu acho que os crentes deviam "recitar" todo santo culto ou toda santa reunião. É um chamado à tolerância e à convivência pacífica entre os irmãos, que se fosse lido periodicamente pela Igreja reunida, a manteria exatamente assim, unida, e evitaria muitas divisões, que geralmente se baseiam na vaidade e no orgulho de apontar (e julgar) no outro a razão para se afastar dele. E esta razão, não raras vezes, está na maneira do outro encarar alguns detalhes menores (às vezes minúsculos) da vida cristã, como o que comer, o que vestir, que dia guardar, o que dizer. A regra de ouro de Paulo é, digamos, um tripé: "cada um tenha opinião bem definida em sua própria mente" (v. 5), "nenhum de nós vive para si mesmo, nem morre para si" (v. 7) e "quer vivamos ou morramos, somos do Senhor" (v. 8). Portanto, devemos acolher os irmãos que são fracos na fé, mas "não para discutir opiniões" (v. 1). Há irmãos que acham que tudo podem comer, inclusive carne, e carne de porco (algo que, para os judeus, era proibido, conforme, em especial, as leis alimentares de Levítico 11 e Deuteronômio 14). Há outros que se escandalizam com isso, e preferem ser vegetarianos (v. 2). É isto motivo para que se afastem uns dos outros? Paulo diz que não, e faz questão de esclarecer duas coisas: o fraco na fé é o que não come de tudo (v. 2) e quem tem a maior responsabilidade na tolerância para com o outro é o forte na fé (v. 1). Entretanto, isto não exime o fraco na fé de, na medida das suas possibilidades racionais e espirituais, procurar aceitar o que come de tudo (v. 3), nem o forte de aceitar o fraco, pois o Senhor é que os sustenta a ambos (v. 5).

A mesma tolerância se deve dar em relação àqueles que fazem diferença entre dia e dia (v. 5). Como vimos no início de Romanos, a Igreja de Romana era composta por uma maioria de pagãos convertidos e uma minoria de judeus e prosélitos também cristãos. Paulo não especifica se está falando sobre o sábado judeu ou domingo cristão, ou se está falando sobre as festas judaicas do Velho Testamento, que provavelmente muitos judeus convertidos ao cristianismo, e que estavam na igreja de Roma, sentiam necessidade de observar os feriados correspondentes àquelas festas. A tradução para aquele que "julga iguais todos os dias" deve ser entendida como "julga santos todos os dias" ou "considera todos os dias santos". Houvesse alguma necessidade de se estabelecer o sábado como o único dia santo, Paulo certamente teria estabelecido isto aqui, mas a maior preocupação dele é fazer com que os judeus que estavam na Igreja de Roma, e ainda estivessem com os seus costumes religiosos arraigados de tal maneira que não conseguissem ter paz de consciência sem observá-los, pudessem ser respeitados pelos seus irmãos que não tivessem este passado, esse, digamos (por falta de melhor palavra portuguesa), background judeu, e também respeitassem-nos (aos gentios) por não observarem os dias sagrados do Velho Testamento. O importante era que cada um tivesse uma "opinião bem definida em sua própria mente" (v. 5), ou seja, de novo a "consciência" opera uma função fundamental na visão de Paulo do que devia ser considerado como certo ou errado pelos cristãos, como veremos mais adiante. Todas as coisas, fossem elas jejum, abstinência, banquetes, festas, dias normais, etc., eram feitas para o Senhor (v. 6) e assim deveriam ser vividos em permanente ação de graças, tolerando as diferenças de usos e costumes de cada grupo dentro da igreja. O lema de Paulo, neste aspecto, era "unidade na diversidade". Os interesses individuais e grupais deviam ser "sacrificados" em nome da tolerância e da união de todos.

De qualquer maneira, e acima de tudo, ninguém deveria ter por objetivo de vida colocar tropeço ou escândalo no caminho do irmão, mas justamente o contrário: evitar que os seus usos e costumes porventura escandalizassem aquele que fosse mais fraco na fé (v. 13). A liberdade cristã não deveria servir de pretexto para excluir o outro, mas para incluí-lo, "porque o reino de Deus não é comida nem bebida, mas justiça, e paz, e alegria no Espírito Santo" (v. 17). A exemplo de Pedro na visão que teve na casa de Cornélio (Atos 10:10-15), Paulo estava convencido "no Senhor Jesus, de que nenhuma coisa é de si mesmo impura, salvo para aquele que assim a considera; para esse é impura" (v. 14). De novo, a consciência perante Deus é que deveria determinar o que é puro ou impuro. Ainda nas palavras de Paulo, "bem-aventurado é aquele que não se condena naquilo que aprova. Mas aquele que tem dúvidas é condenado se comer, porque o que faz não provém de fé; e tudo o que não provém de fé é pecado" (vv. 22-23). Assim, se alguém aprova que se coma de tudo, e tem a consciência tranqüila a respeito disto, não está pecando, mas se tem alguma dúvida, aí peca, pois está se condenando a si mesmo naquilo que aprova para os outros, mas tem um pé atrás no que diz respeito a si mesmo. Dou um exemplo pessoal. Por ocasião do primeiro concílio cristão, o de Jerusalém (Atos 15), na dúvida sobre quais práticas judaicas os gentios deviam observar, o parecer final de Tiago é que os gentios deviam se abster "da carne de animais sufocados e do sangue" (Atos 15:20). Eu, por exemplo, acho a "morcilla" argentina (uma espécie muito melhorada do chouriço brasileiro) uma delícia, mas quando soube que era feita de sangue temperado, fiquei com dúvida em função desse texto, e por ter dúvidas, preferi me abster. Obviamente, esta é uma posição muito pessoal minha, e não posso criticar quem quer que seja que não tenha dúvidas em comê-la, é entre a pessoa e Deus, não cabe a mim julgar. O fato é que o Concílio de Jerusalém foi a primeira tentativa cristã de se harmonizar os distintos costumes dos crentes de diferentes origens, e que estavam a exigir uma padronização mínima de comportamento, em que a liberdade cristã fosse preservada.

Outra decisão do concílio foi que os cristãos deviam se abster "das contaminações dos ídolos, bem como das relações sexuais ilícitas", o que significava não só a impureza sexual que girava em torno de alguns cultos pagãos, mas também das comidas que lhes eram oferecidas em sacrifícios. Esta é uma das razões pelas quais Paulo insiste tanto nesta questão da comida em Romanos 14. Afinal, os cristãos de Roma viviam numa cidade com dezenas de templos dedicados aos deuses de outras tantas religiões pagãs. O sincretismo religioso romano era muito parecido com o grego de Atos 17, em que no Areópago de Atenas havia ídolos de todas as religiões conhecidas pelos gregos, e até um monumento ao "deus desconhecido". Quase todas as religiões pagãs ofereciam comidas e/ou sacrifícios animais aos seus ídolos, e boa parte da carne que sobrava era dividia entre os sacerdotes ou doada aos pobres para que a consumissem. Na mesma época da carta aos romanos, Paulo já havia dedicado um capítulo de sua primeira carta aos coríntios (o 8) à questão das comidas sacrificadas aos ídolos, falando da liberdade cristã e do respeito à consciência do crente fraco (1 Coríntios 8:7-8), e agora ele insistia que os romanos deviam observar a mesma prática e o mesmo respeito. O que importava, realmente, era não destruir "a obra de Deus por causa da comida" (Rom 14:20) e seguir "as coisas da paz e também as da edificação de uns para com os outros", pois "todas as coisas, na verdade, são limpas, mas é mau para o homem o comer com escândalo" (vv. 19-20). A fé de cada um deve ser exercida em particular para com Deus (v. 22), sem menosprezar o que o seu irmão pensa, mas, em tudo, tendo a paz, a unidade e a tolerância como objetivos maiores a serem perseguidos, sempre. Como diz Romanos 15:1, "nós que somos fortes devemos suportar as debilidades dos fracos e não agradar-nos a nós mesmos", mas isso é assunto para o próximo texto.

domingo, 30 de março de 2008

Blogs e o Direito de Imprensa

Para não dizerem que não falei das flores, a Folha de S. Paulo até que dá uma dentro de vez em quando. Áproveitando o momento em que a Lei de Imprensa está para ser discutida no Supremo Tribunal Federal, no editorial de hoje (acesso para quem tem UOL clicando aqui), a Folha faz um belo apanhado das diferentes leis que regulam o direito de informação, desde a Lei de Imprensa de 1967 até o Código Civil de 2002, passando pela Constituição de 1988, mostrando o que é lixo ditatorial e aquilo que poderia ser aproveitado. Quero me concentrar apenas numa das boas sugestões que o editorial em questão apontou: a questão dos blogs. Diz a Folha que "tampouco haveria o devido amparo legal à efervescente 'imprensa cidadã', que dissemina blogs pela internet -inovações que merecem ter proteção especial da lei de imprensa quando revestirem caráter jornalístico". De fato, a explosão dos blogs pela internet revela uma nova faceta da informação que não está devidamente regulada, ainda mais num país como o Brasil, onde a liberdade de expressão ainda engatinha, principalmente no seu reconhecimento pelos tribunais. Os blogueiros lançam uma nova frente na apreciação do direito à informação no Brasil, e não apenas com relação àquilo que a Folha chama de "caráter jornalístico", um conceito vago e de difícil especificação do seu conteúdo, a não ser que uma nova Lei de Imprensa (ou o seu aggiornamento pelo STF) venha a dizer, com razoável margem de segurança, o que o compõe. O mundo dos blogs é um fenômeno que não foi ainda suficientemente estudado, e talvez nem o seja, já que mal dá (se é que dá) pra acompanhar a rapidez com que evolui e se reproduz, levando consigo a informação, a crítica, a sátira. Afinal, pouco se sabe (e menos ainda se exerce) o direito eletrônico, dadas as dificuldades de se encontrar leis que regulem o universo da internet. Tudo isto deve ser levado em consideração ao se estabelecer critérios mínimos de liberdade de expressão. Perdão, você está certo, eles devem ser máximos.

sábado, 29 de março de 2008

O corte do Ricardinho

Aquilo que ficou nebuloso por muito tempo começa, ao que tudo indica, a se dissipar. 

O corte do Ricardinho na véspera do Pan-2007 é uma daquelas histórias em que parece não haver ninguém inocente (ou pelo menos parecia). 

O segredo guardado pelos jogadores da seleção de vôlei, o apoio incondicional que eles deram ao Bernardinho no episódio, as tentativas do Giba de retomar a amizade com o Ricardinho, as críticas deste ao grupo quando lançou seu livro, o esforço da Globo e do Sportv em apresentar o jogador como vilão e o treinador como mocinho, enfim, tudo parecia enredo de uma dessas histórias misteriosas fora de propósito, já que o vôlei brasileiro é dessas raras unanimidades nacionais que queremos preservar. 

Na coluna do Bruno Voloch ("Passe na mão") no Jornal do Brasil de ontem, o jornalista resume em uma só palavra a razão para o imbroglio todo: traição

A matéria está muito bem escrita, vale a pena ler, mas, resumidamente, diz que havia uma negociação entre os jogadores, a CBV (Confederação Brasileira de Vôlei) e o COB (Comitê Olímpico Brasileiro), sobre prêmios a serem pagos pela participação deles no Pan do Rio, negociações estas que não eram conduzidas pelo Ricardinho, mas por outra estrela da seleção (a matéria não a identifica, mas a maioria imagina quem seja), e isto à revelia da comissão técnica, que, segundo os jogadores pensavam, deveria negociar sua premiação à parte. 

A história terminou vazando (como tudo no Brasil), o Bernardinho pegou o bonde andando, irritou-se profundamente e resolveu descarregar tudo em cima do Ricardinho que, segundo dizem as fontes do jornalista, foi muito humilhado durante a reunião que definiu seu corte, sem ninguém defendê-lo ou pelo menos avisar que, pelo menos daquela vez, ele não tinha nada a ver com o "peixe". 

Ricardinho foi fritado...

Ainda segundo o colunista, só ontem é que o Bernardinho deve ter sabido disso. 

De qualquer maneira, o estrago já está feito. 

O inconsciente do técnico deve ter feito um duplo trabalho: de um lado, descarregou no jogador todas as frustrações de uma vida; de outro, viu na intriga toda uma possibilidade de promover seu filho Bruninho à seleção. 

O recolhimento do Ricardinho, ante principalmente o massacre que a Globo promoveu contra ele, tentando apontá-lo como culpado pela celeuma, hoje parece justificado. 

Resta saber se alguém ainda vai pedir desculpas, nem que seja o jornalista por ter apresentado (mais) uma versão equivocada.


sexta-feira, 28 de março de 2008

O evangelho de Lucas - parte 15

O capítulo 11 de Lucas é marcado por dois temas principais: a oração e o apego à religiosidade. Dentro do seu estilo próprio de contrastar a nova e a velha aliança de Deus com os homens, Lucas mostra as duas formas de, digamos, abordagem deste relacionamento. De um lado, a maneira simples, espontânea e prática com que Jesus ensina seus discípulos a orar. De outro lado, a maneira complicada, ritualística e formalista dos fariseus e intérpretes da lei. Primeiramente, quando Jesus estava orando, dando o exemplo de uma vida de oração, Ele é indagado por um discípulo sobre como devia orar (v. 1). Aparentemente, João Batista também havia ensinado seus discípulos a orar e os discípulos de Cristo sentiam a necessidade de ter uma oração que os identificasse como Seus seguidores. Então, Jesus ensina uma versão do Pai Nosso (vv. 2-4), um pouco diferente daquela de Mateus 6:9-13, que também foi ensinada dentro de outro contexto, o Sermão da Montanha. Os estudiosos da cronologia dos evangelhos sugerem que a oração do Pai Nosso em Mateus foi ensinada por ocasião da segunda Páscoa que Jesus passou com os seus discípulos, e a oração ensinada em Lucas aconteceu pouco depois da terceira Páscoa em que eles estavam juntos (a quarta seria a da Paixão e Ressurreição). Há variações nos manuscritos daquele tempo, mas em geral, todos buscam harmonizar a oração do Pai Nosso com aquela transcrita em Mateus.

Ainda dentro desse espírito de oração, Jesus ensina outra parábola, a do amigo inoportuno (vv. 5-8), que procura ajuda tarde da noite para ter o que dar de comer a outro amigo que chegou de viagem. A hospitalidade era algo fundamental para aquele povo e aquela cultura. As dificuldades de comunicação e transporte faziam com que as paradas em cada viagem dependessem da hospitalidade de conhecidos e mesmo de estranho. A Bíblia é cheia desses episódios, e não por outra razão o escritor de Hebreus aconselhou a praticar a hospitalidade, "porque por ela alguns, sem o saberem, hospedaram anjos" (Hebreus 13:2). Entretanto, o que Jesus quer frisar aqui é a necessidade de insistir na oração, sem desanimar. Mais uma vez, Ele mostra a Pessoalidade de Deus, dentro do antropomorfismo que caracteriza as descrições de Deus nas narrativas bíblicas, ou seja, aparentemente, e apenas para fins didáticos, Deus tem um comportamento tipicamente humano, permitindo-se importunar a altas horas da noite para atender os Seus filhos que oram sem cessar. Os versículos seguintes (9-13) reforçam esta idéia, comparando Deus a um Pai que zela pelas necessidades de Seus filhos, e que se um deles pede um peixe, Ele certamente não lhe dará uma cobra. Por fim, Jesus complementa: "Se vós, pois, sendo maus, sabeis dar boas dádivas aos vossos filhos, quanto mais dará o Pai celestial o Espírito Santo àqueles que lho pedirem?" (v. 13). Além de também ter sido referido no contexto do Sermão da Montanha (Mateus 7:9-11), este é um versículo muito utilizado pelos teólogos pentecostais para fundamentarem o batismo no Espírito Santo, um sinal visível pelo dom de línguas, mas Jesus está claramente se referindo à oração, a um auxílio maior e mais efetivo do Espírito Santo em momentos de suprema dificuldade. No texto correlato de Mateus 7:11, Jesus diz que o Pai "dará coisas boas", certamente se referindo a tudo o que Deus tem de bom para dar ao Seus filhos. Desta maneira, com todo o respeito aos irmãos pentecostais, não há substrato firme para se construir uma teologia do batismo no Espírito Santo com base neste versículo.

Em seguida, Lucas narra a expulsão "de outra feita", de um demônio que havia deixado mudo um homem (vv. 14-23). Nas prováveis versões correspondentes de Mateus 12:22-30 e Marcos 3:20-27, o homem além de mudo, havia ficado cego. Expulso o demônio, o homem volta a falar, para espanto de todos que presenciaram a cena, inclusive "alguns dentre eles" (os fariseus, segundo Mateus 12:24) murmuravam insinuando que Jesus fazia isso pelo poder de Belzebu, "o maioral dos demônios" (v. 15). Belzebu é um nome atribuído a Satanás que surge apenas no Novo Testamento, mas muitos vêem sua origem no Velho Testamento, nesta passagem:

2Reis 1:2 Ora, Acazias caiu pela grade do seu quarto alto em Samária, e adoeceu; e enviou mensageiros, dizendo-lhes: Ide, e perguntai a Baal-Zebube, deus de Ecrom, se sararei desta doença.
2Reis 1:3 O anjo do Senhor, porém, disse a Elias, o tisbita: Levanta- te, sobe para te encontrares com os mensageiros do rei de Samária, e dize-lhes: Porventura não há Deus em Israel, para irdes consultar a Baal-Zebube, deus de Ecrom?


Belzebu provavelmente era uma corruptela de Baal-Zebube (literalmente, o "deus-mosca", que por sua vez derivara de Baal). Possivelmente, o culto a Belzebu perdurara em alguma tribo vizinha, e os judeus o identificavam com Satanás. Assim, era uma enorme ofensa que faziam a Jesus ao compará-lo, ainda que veladamente, com o próprio diabo. Sugeriam, portanto, que o diabo havia voluntariamente se afastado do homem mudo (e cego), apenas para que Jesus fosse exaltado. Jesus imediatamente mostra que sabia o que eles estavam dizendo, e mostra que Satanás não podia dividir-se contra si mesmo, e que Ele, o Mestre, era claro e franco inimigo do diabo, terminando por dizer que o demônio podia, sim, voltar à pessoa de onde saíra, porque não encontrava repouso fora (v. 24), e, voltando, encontrava a casa (pessoa) varrida e ornamentada (v. 24), pelo que levava, ainda, mais sete espíritos piores com ele, tornando o novo estado do homem pior do que o primeiro (v. 26). Logo, era necessário tomar cuidado com esta casta de demônios. Mal terminara de falar essas palavras, uma mulher diz que bem-aventurada era aquela que o havia concebido (Maria) e os seios que o haviam amamentado (v. 28). Jesus responde dizendo que "bem-aventurados são os que ouvem a palavra de Deus e a guardam", mostrando que não se justifica a pretensão católica de atribuir a Maria uma condição a que ele não aspirou, e que o próprio Mestre considerou secundária diante da prática efetiva do evangelho. Diante da multidão que lhe pedia sinais, Jesus fala apenas do sinal de Jonas (vv. 29-30), que era obviamente uma linguagem cifrada que somente seria entendida após sua ressurreição, e os três dias que estaria no ventre da terra (o "peixe grande" de Jonas) após sua crucificação. Este seria um sinal amargo, pois o juízo já teria sido feito sobre o povo de Israel, ao contrário do profeta Jonas, que, não sendo ninivita, não mostrando-lhes nenhuma simpatia, fez uma pregação curta e seca, desacompanhada de sinais, mas todo o povo de Nínive aproveitou o tempo oportuno e se arrependeu, naquele que pode ser chamado de sucesso profético mais indesejado da história bíblica. A comparação entre os ministérios de Jesus e de Jonas revela um total êxito do último, enquanto o do primeiro termina (humanamente falando) em fracasso, em morte de cruz. Os três dias que se passariam até a ressurreição revelariam, entretanto, que o ministério de Jesus foi muito mais valioso e poderoso do que o de Jonas, mas os judeus só o perceberiam quando ele houvesse terminado.

Por fim, dando seqüência ao contraste que Lucas propõe entre a espontaneidade dos discípulos de Cristo e o ritualismo formalista dos fariseus, Jesus é convidado para almoçar na casa de um fariseu (v. 37). Curiosamente, este é o único almoço registrado na Bíblia e, por conseguinte, na vida pública de Jesus. Os jantares e ceias são mais comuns. O almoço na casa do fariseu foi um episódio em que Jesus proferiu profundas condenações dos fariseus e dos intérpretes da lei. Certamente, foi um momento muito constrangedor para essas duas categorias de judeus que se julgavam privilegiadas no contexto da sociedade em que viviam. Depois de condenar o seu formalismo, comparando-os a sepulcros invisíveis por cima dos quais as pessoas caminhavam sem perceber o que estava abaixo (vv. 38-44), os intérpretes da lei confrontam Jesus, dizendo que, falando assim, Ele também os estava ofendendo (v. 45). O Mestre não usa meias palavras, nem faz média com eles. Pelo contrário, também os acusa de atarem fardos pesados demais para as pessoas carregarem (v. 46), e os chama de assassinos dos profetas (vv. 47-51), censurando-os por não apenas não entrarem no reino dos céus, mas também impedirem que outros entrem (v. 52). As palavras de Jesus foram muito duras, e certamente isto fez com que fariseus e doutores da lei se unissem para conspirar contra Ele (vv. 53-54). O "jogo" estava sendo jogado e, mesmo no campo do adversário, Jesus havia se colocado num "time" diferente daquele dos fariseus.

River & nós

Tenho três lindos cachorros, todos machos: um kuvasz chamado Jordan; um golden retriver chamado River e um samoieda chamado Yerik.

O River (esse cara simpático aí da foto) já veio com este nome de pedigree e o mantive para fazer uma homenagem ao meu time na Argentina, o River Plate. 

Na semana passada, suspeitando de alguns gânglios que havia encontrado nele já havia algum tempo, levei-o ao meu amigo veterinário Marco. 

Feita a biópsia, nossos piores temores se confirmaram e ele está com câncer linfático. 

Começamos a quimioterapia na semana passada e ontem levei-o para a segunda aplicação. 

Os gânglios não estavam incomodando-o e, no fundo, ele nem sabe que tem essa doença. 

Apenas desconfia que algo errado está acontecendo com ele, mas não perdeu a alegria de viver. 

Para os animais, a vida segue como sempre seguiu. 

Para nós, que os amamos quase tanto quanto eles nos amam, resta a preocupação. 

Felizmente, em apenas uma semana, os gânglios já diminuíram muito, e os primeiros sinais do tratamento são animadores. 

Há uma longa batalha à frente, mas espero que o meu dourado cão combata bravamente uma luta em que a família toda está do seu lado e juntos vamos vencê-la, com a graça de Deus. Amém.


El karaokê de los Kirchner

Eu sou um dos brasileiros que não têm vergonha de admitir que amam a Argentina e enxergam a rivalidade no futebol apenas pelo lado desportivo, como um superclássico Boca x River, Fla x Flu, Corinthians x Palmeiras, e nada mais do que isso. Infelizmente, herdamos toda uma história de encontros e desencontros entre Espanha e Portugal, desde a colonização da América, que se acirrou pelos enganos dos nossos governantes do século XIX, incluindo aí algumas selvagerias como a Guerra do Paraguai. Felizmente, hoje a história é outra, e, ainda que o caminho seja árduo e distante, estamos muito mais próximos do que 30 anos atrás. Tenho grandes amigos argentinos, verdadeiros hermanos, e tudo isso me leva a ser leitor assíduo das versões online de La Nación, Clarín e do impagável Olé. Me dói muito ver a que ponto a Argentina chegou. No dia da posse do De La Rúa, se não me engano no dia 10 de dezembro de 1999, eu estava em Buenos Aires, e passava pela Plaza San Martín quando os presidentes latino-americanos, FHC entre eles, chegavam para a recepção na Cancillería (Chancelaria). Dois anos depois a crise da ingovernabilidade e da desvalorização do peso chegou ao fundo do poço, e a Argentina entrou na pior recessão de sua história. De La Rúa fugiu de helicóptero (reprisando a imagem de Isabelita Perón em 1976), e Eduardo Duhalde cumpriu um mandato tampão, reorganizou o país, e em 2003 entregou a faixa presidencial para o Néstor Kirchner, que fez um governo populista, na contramão do neoliberalismo, mas foi ajudado por um bom momento da economia mundial, e a Argentina, do fundo do poço em que estava, foi crescendo a taxas que, não raro, superavam os 10% anuais. No ano passado, a troca do bastão se deu dentro de casa, já que sua mulher, Cristina Kirchner, foi eleita presidenta, sem grande oposição, já que pouco se discutiu sobre política nas eleições do ano passado. A economia estava bem, o desemprego em baixa, a inflação maquiada, e era isso o que bastava aos argentinos depois de tanto sofrimento. Nem a acusação dos oposicionistas, de que uma monarKía estava se instalando no país, conseguiu impedir a continuação do poder sem qualquer mudança saindo ou entrando na residência oficial de Olivos.
Agora, parece que a situação começou a mudar. Ainda confiante no rolo compressor das medidas populistas do seu marido e antecessor, Cristina Kirchner parece que caiu no erro de imaginar que tudo pode, mesmo num país que ama e odeia os ditadores ao mesmo tempo, mas que, depois do golpe militar de 1976, passou a ter uma paranóia de autoritarismos. Parece que os Kirchner passam muito tempo divertindo-se com o karaokê em Olivos, e pensam que todos deviam simplesmente imitar e divertir-se com seus discursos. Preocupada com o desabastecimento do país, em função dos altos preços dos produtos agrícolas no mercado internacional, puxados pela crescente demanda chinesa, a presidenta instituiu uma espécie de pedágio nas exportações do campo, retendo parte da produção para o mercado interno. Parece que isto foi o estopim para que os produtores rurais se rebelassem fazendo piquetes e bloqueando estradas. Cristina Kirchner, crente de que o seu poder está acima de tudo, continuou na linha autoritária, e a classe média portenha foi às ruas nas últimas noites, com seu tradicional cacerolazo para protestar. Parece que a Argentina chegou a um impasse. As pessoas querem produzir, trabalhar, ganhar dinheiro, mas o governo ainda pensa o país como um imenso quartel onde pode mandar e desmandar sem oposição. Alguma coisa começa a mudar na Argentina, e eu sinceramente espero que tudo se resolva na mais absoluta paz e para o bem do país. Resta saber se os Kirchner pensam o mesmo, porque la Argentina, mi amigo, merece mucho más!

quinta-feira, 27 de março de 2008

Carta aos Romanos - 16

Dentro da divisão por capítulos da Carta de Paulo aos Romanos, o de nº 13 é o menor, com apenas 14 versículos, sendo que 7 deles dizem respeito ao comportamento do cristão como membro da sociedade civil. Talvez seja esta a única razão para que os responsáveis pela divisão em capítulos, no século XVI, isolassem esses versículos num capítulo tão pequeno. O capítulo 13 começa com uma exortação dura: "Todo homem esteja sujeito às autoridades superiores; porque não há autoridade que não proceda de Deus; e as autoridades que existem foram por ele instituídas. De modo que aquele que se opõe à autoridade resiste à ordenação de Deus; e os que resistem trarão sobre si mesmos condenação" (vv. 1-2). Estes versículos foram usados, por muitos e muitos séculos, para justificar a dominação de determinadas classes sobre outras, como no caso das monarquias absolutas que vigoraram até o século XVIII. A Revolução Francesa, de 1789, foi o grande marco no sentido de se romper com o absolutismo e de se começar a valorizar a democracia e os direitos humanos, e, não por acaso, foi notadamente anti-religiosa, pois viam na religião (tanto católica como protestante à época) um freio contra as mudanças políticas, exatamente por esta visão do rei como alguém divinamente instituído. O mesmo aconteceu no século XX, por exemplo, em que, na Guerra Civil espanhola, a Igreja Católica se aliou aos monarquistas comandados por Franco, e isto resultou na morte de muitos padres quando a guerra começou. Embora ideologia também seja um termo (e um conceito) moderno, surgido no século XIX, hoje nós temos as ferramentas para separar o que é teológico do que é ideológico nesta questão.

Primeiramente, é preciso contextualizar o que Paulo disse. Não havia democracia nem direito como hoje entendemos essas duas instituições básicas da vida em sociedade. Uma certa forma primitiva de "democracia" (que, na verdade, não merecia este nome) era limitada a alguns cidadãos ilustres, e mesmo eles estavam sujeitos aos golpes de Estado (outro conceito inexistente à época) dos generais que aspiravam a ser César. O direito romano estava em crescimento, mas ainda era tópico, casuístico, ou seja, havia juízes que julgavam caso a caso, sem uma lei universal que atingisse a todos, fossem eles cidadãos ou escravos. A igualdade entre os homens era uma idéia absurda à época. A idéia de codificação de leis, como temos hoje a Constituição e o Código Civil, é moderna, só surgiu a partir das Revoluções Americana (1776) e Francesa (1789), principalmente com o Código Civil francês de 1804. Paulo queria, obviamente, a paz para a Igreja de Roma. Sabia do ambiente político violento e injusto em que eles estavam inseridos, e, portanto, queria que a Igreja crescesse em paz, mesmo sabendo da violência e do martírio que eles teriam que enfrentar. Para tanto, era realmente necessário serem submissos à ordem anti-democrática que imperava em Roma, e o fato de atribuir a Deus a ordenação das autoridades me parece um reforço desta idéia, pois afinal, Cristo havia vindo ao mundo na "plenitude dos tempos" (Gálatas 4:4, Efésios 1:10), em que, dentro da atuação de Deus na História, era conveniente (ou necessário) ter um Império que controlasse o mundo conhecido de então, e que facilitasse a circulação de pessoas e idéias, como foi o caso do início do cristianismo.

Este tipo de abordagem da origem divina das autoridades, com o passar do tempo, e a ascensão da Igreja Cristã, e sua absorção, até certo ponto enorme, pela estrutura do Império Romano e dos reinos que o sucederam, foi deixando de ser teológica para se transformar em ideológica, ou seja, a obediência servil e indiscutível do ser humano ao governo foi sempre ressaltada como um instrumento de dominação da minoria mais forte sobre a maioria mais fraca (por paradoxal que pareça a idéia). Por exemplo, o direito de greve hoje é garantido no Brasil, mas durante a ditadura (1964-1985), e até a Constituição de 1988, era proibido. Nas greves do fim dos anos 70 e começo dos 80, muitos crentes não quiseram participar alegando Romanos 13, quando, na verdade, o que eles não queriam dizer é que eram favoráveis à ditadura. Eu mesmo fui criticado por isso, pois participei das greves bancárias de 1984, quando tinha 21 anos de idade, e muitos irmãos me apontaram o dedo com estes versículos de Paulo. Eles estavam sendo muito mais ideológicos do que teológicos, embora não admitissem e tentassem disfarçar o óbvio. Isto remete a outra questão: e quando o governo é injusto, e quando o juiz é corrupto (v. 3), e quando valores básicos da humanidade são desrespeitados, até que ponto devemos nos submeter a esses governantes e às suas decisões? Eu acho que devemos orar por eles:

1Timóteo 2:1 Antes de tudo, recomendo que se façam súplicas, orações, intercessões e ação de graças por todos os homens;
1Timóteo 2:2 pelos reis e por todos os que exercem autoridade, para que tenhamos uma vida tranqüila e pacífica, com toda piedade e dignidade.
1Timóteo 2:3 Isto é bom e agradável perante Deus, nosso Salvador,

Devemos pagar os nossos impostos (vv. 6-7 de Romanos 13), e estar sujeitos a eles por "dever de consciência" (v. 5 – de novo a palavra "consciência"), mas quando eles se voltam contra aquilo que Deus exige de nós, nós podemos praticar a desobediência civil, como no caso dos discípulos que foram proibidos de anunciar a Jesus no começo da Igreja cristã (Atos 4:18-31; 5:17-29). Trazendo isso para os nossos dias, hoje nós vivemos numa democracia e temos um Direito estabelecido, que nos garante a liberdade de nos expressarmos e de nos rebelarmos pacificamente com relação a algumas situações civis que nos agridem como cristãos e cidadãos. O direito de greve é um desses exemplos, e mesmo diante de um governo opressivo, ditatorial (contrário ao direito, portanto), acho que podemos nos valer de todos os instrumentos pacíficos ao nosso alcance para protestar. Os 7 primeiros versículos de Romanos 13 devem ser entendidos dentro do contexto próprio da Igreja de Roma naquela época, e dentro do que é possível aplicar aos nossos dias, como o pagamento de tributos, por exemplo, mas sem nunca colocar na pessoa do governante a aura de um semi-deus inquestionável e inatingível, já que temos o direito de protestarmos civil, democrática e pacificamente contra ele.

Com relação aos versículos seguintes de Romanos 13, Paulo volta ao tema do amor nos vv. 8-10, contrastando-o propositalmente com a lei, tema que ele tratou com especial atenção nos 11 primeiros capítulos, terminando por concluir brilhantemente que "o cumprimento da lei é o amor" (v. 10). Quem não mata, não adultera, não furta, faz isso por amor ao próximo (e a Deus), e não por mera obrigação. Os versículos finais do capítulo (vv. 11-14) convocam os romanos a se prepararem para o fim dos tempos. "Vai alta a noite, e vem chegando o dia" (v. 12). De fato, muitos leitores da carta de Paulo seriam martirizados nos anos seguintes (inclusive ele próprio), e Paulo os exorta a viverem uma vida santa, abandonando tudo o que dizia respeito à carne e dedicando-se completamente à obra de Deus.

quarta-feira, 26 de março de 2008

Fera ferida

Retomando o tema do preconceito da Globo contra os evangélicos, na tal cena de "Duas Caras" em que retrata estes como loucos homofóbicos, já tratado aqui, uma matéria do jornalista Daniel Castro na Folha de S. Paulo de hoje (no caderno Ilustrada) lança novas luzes sobre o "incidente". Segundo a notícia (leia um trecho no Forum Atos), a Globo está preocupada com a queda da audiência no Rio de Janeiro, seu quartel-general, devido ao simples fato dos televisores estarem desligados. Em apenas 3 anos, houve uma redução de 20% no número de televisores ligados. Assim, a capital carioca é, hoje, a menos sintonizada do país, o que quer que isto signifique. Diz o artigo que a Vênus Platinada encomendou uma pesquisa ao Ibope em que especula três possibilidades para a debandada geral dos cariocas: (1) elevado número de evangélicos; (2) alta pirataria de TV a cabo em áreas controladas pelo tráfico; e (3) dificuldade de medição pelo Ibope. Aí já percebemos que se trata de uma verdadeira "pesquisa encomendada". Afinal, as opções (2) e (3) desmentem o fato de que os televisores foram desligados, como os números, esses sinceros inveterados, denunciam. Logo, os culpados são os evangélicos. Pau neles, então. A lógica da Globo, contaminada pelo seu poder turbinado por décadas de hegemonia, é sempre cabotina e bitolada. O que eles presumem transforma-se na mais absoluta verdade. Não deixa de ser compreensível, já que deve ser muito difícil para a Globo simplesmente admitir que as pessoas estão mais, digamos, inteligentes.

O evangelho de Lucas - parte 14

No capítulo 10 de Lucas, Jesus ainda se encontra indo para Jerusalém. Em sua caminhada, Jesus resolve novamente designar pregadores para pregarem. Desta vez Jesus manda setenta pessoas em grupos de 2. Os mesmos avisos dados aos apóstolos são dados por Jesus àqueles pregadores. Como a seara é grande, houve o aumento de pregadores.Jesus demonstra a preocupação de que ninguém faça qualquer saudação pelo caminho. Em seu livro Usos e costumes dos tempos bíblicos, Ralph Gower comenta os motivos:

Outro problema surpreendente era o tempo gasto em saudações. As saudações durante uma viagem tomavam tempo desmesurado. Não se considerava educado passar simplesmente pelas pessoas. Era necessário fazer e responder perguntas tais como: "Para onde está indo?... De onde vem?... Como se chama?... Quantos filhos tem?" E assim por diante. Jesus considerava essas saudações um problema tão grande que disse a seus discípulos: "A ninguém saudeis pelo caminho" (Lc 10:4). Ele também censurou o tempo que alguns dos líderes religiosos da época gastavam com as saudações (Lc 11:43; 20:46). Jesus certamente se impacientaria com as conversas fúteis nas reuniões convencionais de hoje. - página 235

Por outro lado, a "falta de educação" durante as viagens era compensada pela educação ao chegar em uma casa, como vemos no versículo 5, onde Jesus diz para eles falarem antes de mais nada "A paz seja nesta casa", cumprimento comum naquela época. É interessante que apesar de haver estalagens naquela época, Jesus não recomenda que seus discípulos se hospedem nelas. Acontece que em muitas destas estalagens havia muita prostituição, por isto geralmente se hospedava em casas. É desta forma que naquela época a hospitalidade teria se tornado tão importante.Como resposta a esta hospitalidade, o pregador deveria ficar na mesma casa. Ele não deveria se mudar o tempo inteiro, demonstrando insatisfação com a hospedagem. Devemos ter isto em mente, pois o cristão deve acima de tudo ser hospitaleiro e educado.
Então a pregação consistia sempre em dizer que o reino de Deus já havia vindo, que era uma realidade. Para quem atendesse de forma positiva à esta notícia, os discípulos curariam enfermos, talvez como demonstração desta realidade. Para os que rejeitassem esta mensagem, deveria-se mostrar da mesma forma uma rejeição deles, mostrando-se que até o pó daquela terra foi sacudido. Em todos os casos, porém, a realidade do Reino deveria ser pregada. Apenas para aqueles que creram, é que são dados sinais e milagres.
Indicando como o Juízo Final será justo, Jesus nos fala que cidades que não puderam ver seus milagres serão julgados com mais brandura que cidades que tiveram esta oportunidade.
Novamente no versículo 19, Jesus diz que deu poder a seus discípulos, mais uma vez nos confirmando sua divindade. Pois somente Deus poderia dar poder. Profetas devem sempre glorificar a Deus pelo seu poder.
E nossa alegria não deve ser por que recebemos um dom especial de Deus. Como Paulo disse, todos recebemos dons, e cabe a nós usá-los para o bem da comunidade. Nossa alegria deve ser primeiro por ter nossos nomes escritos no céu, pois aí sabemos que estamos em paz com Deus.
E a alegria dos discípulos era tanta que o próprio Cristo se alegrou. É quando nos diz que a sabedoria de Deus reside nos pequeninos. O paradoxo é algo muito presente nos discursos de Cristo, e sabemos mesmo que aqueles mais simples são os que mais se aproximam de Deus. Os pobres, os desabrigados, os que estão em dificuldades, eles são os que possuem uma relação melhor com Deus, pois eles acima de tudo conseguem transceder a dor e o sofrimento, mantendo acesa sua fé em Deus. Talvez por isto no capítulo anterior Cristo disse que para ser seu discípulo, deveria-se pegar a sua cruz. E este Deus que se encontra, Este é revelado por Cristo.
No versículo 23, alguns tentam criar uma contradição com João 20:29. Enquanto que o primeiro "bem-aventurados" significa grandemente favorecidos, enquanto que o segundo "bem-aventurados" indica "digno de ser aplaudido". De qualquer forma, mesmo que os sentidos fossem iguais, há uma diferença entre requerer a visão como base de fé, como no caso de Tomé, e fazer uso da visão no processo de exercício da fé, como os apóstolos.
No versículo 25, o doutor da lei desafia Jesus a falar qual a lei mais importante, certamente para medir o conhecimento de Cristo, testar se é mesmo aquilo que foi dito dele. Jesus pergunta sobre o que a Lei dizia, pois certamente tudo que era necessário para a vida Eterna era dito ali. O doutor da Lei respondeu corretamente, mas certamente quis parecer justo diante de todos, perguntando quem era o próximo dele. Jesus então inicia uma de suas parábolas mais conhecidas: a do bom Samaritano.
Era muito comum na época que os sacerdotes e levitas que trabalhavam no templo em Jerusalém morassem em Jericó, sendo esta uma rota muito comum na época. Assim, o viajante foi assaltado, outra coisa muito comum naquele tempo, principalmente naquele caminho. Assim, os representantes da Lei, sacerdotes e levitas, passaram por aquele homem, sem lhe dar socorro. É interessante como que da mesma forma, a Lei apenas assiste a pessoa de longe, sem no entanto ter compaixão por ela. Mas o samaritano, povo totalmente marginalizado pelos judeus, que como vimos no capítulo anterior habitavam naquela região que estava Cristo e que provavelmente aquele mestre da Lei evitava, aquele samaritano teve pena do viajante. Ele tratou do viajante da forma que se fazia antigamente, que era usando vinho para desinfetar o machucado, passando o óleo para cicatrização logo depois.
Logo depois o levou para uma estalagem, onde pagou pelos serviços até que o viajante ficasse melhor. Deixou 2 denários, que eram as moedas de prata, inferiores apenas ao áureo em valor (25 denários era igual a um áureo). Embora em teoria as estações de muda oferessessem acomodações gratuitas, a alimentação, forragem e outros serviços eram pagos.
Quem era o próximo daquele homem? Certamente era o samaritano, mostrando-nos que muitas vezes nossos conceitos podem estar errados, que mesmo aquelas pessoas que temos menos estima ou até mesmo que não gostamos, pode nos ser as melhores amigas. Devemos tratar todos igualmente.
O fim do capítulo nos fala de Marta e Maria, duas irmãs que receberam Cristo em uma aldeia, não nomeada, provavelmente Betânia. Se for este o caso, Lázaro seria irmão delas (Jo 11:1). Marta então reclama que sua irmã não está a ajudando. No entanto, Jesus a avisa que antes de tudo, Maria está com razão. Marta se deixou atribular por coisas materiais, como de qual forma receber seus convidados, enquanto que Maria estava ouvindo os ensinos de Cristo. Muitos deixam que seu trabalho e tarefas diárias tomem conta de sua vida, esquecendo-se de Deus. Sejamos coerentes e vamos dar mais atenção ao que Cristo tem para nos dizer.

Vergonha alheia

O Clóvis Rossi já teve dias melhores, assim como o jornal que ele representa. Na sua coluna fixa da pág. A-2 da Folha de S. Paulo de hoje, sob o título "Memórias e Vergonhas" (acesso para quem tem UOL), ele fala da vergonha ("vergüenza ajena", segundo seu espanhol castiço) que ele sente pelo Brasil ser um país em que a dengue mata tanta gente numa cidade como o Rio de Janeiro, em pleno século XXI. Até aí, nada a opor ao Clóvis Rossi, eu também sinto vergonha, mas daí a ter um complexo de vira-lata vai uma longa distância. Será que se o Clóvis Rossi fosse norte-americano ele sentiria vergonha pelo caos que foi o aftermath de New Orleans por ocasião do furacão Katrina em 2005? Ou sentiria vergonha pelos 4.000 soldados estadunidenses e pelas dezenas de milhares de iraquianos que morreram por conta da aventura petroleira do Mr. Bush? Pois eu também sinto vergonha pelo Clóvis Rossi estar com uma visão assim tão Vila Olímpia dos fatos, espezinhando o que é terceiro-mundista e ignorando os terceiro-mundismos alheios.

terça-feira, 25 de março de 2008

Carta aos Romanos - 15

Os dois primeiros versículos do capítulo 12 da Carta de Paulo aos Romanos marcam, portanto, uma transição entre um discurso profundamente teológico (e, de certa maneira, etnocêntrico, pois é marcado pelo contraste entre judeus e gentios) para um discurso eminentemente prático e abrangente, sem se preocupar com questões étnicas; pelo contrário, Paulo procura mostrar que Cristo é tudo em todos, conforme, já preso em Roma, escreveria aos Colossenses alguns anos depois, valendo-se do mesmo raciocínio de renovação da mente:

Col 3:9 não mintais uns aos outros, pois que já vos despistes do homem velho com os seus feitos,
Col 3:10 e vos vestistes do novo, que
se renova para o pleno conhecimento, segundo a imagem daquele que o criou;
Col 3:11 onde não há grego nem judeu, circuncisão nem incircuncisão, bárbaro, cita, escravo ou livre, mas Cristo é tudo em todos
.

Assim, depois de tudo isso, o primeiro conselho que Paulo dá aos crentes de Roma (e a nós, por extensão), é seguir a humildade e a moderação, "segundo a medida da fé que Deus repartiu a cada um" (v. 3). Aqui não se trata, propriamente, da fé para a salvação, mas da fé para as atividades diárias dos crentes e, principalmente, para os seus ministérios na Igreja, conforme os versículos seguintes contextualizam, ou seja, valendo-se do mesmo raciocínio de 1ª Coríntios 12, Paulo fala dos dons espirituais que deus dá a cada um "segundo a proporção da fé" (v. 7) para o "proveito comum" (1 Cor 12:7), algo que ele também escreveria aos efésios algum tempo depois, quando já estava preso em Roma:

Efésios 4:7 Mas a cada um de nós foi dada a graça conforme a medida do dom de Cristo.

Logo depois de falar dos "diferentes dons segundo a graça que nos foi dada" (v. 6), a exemplo do mesmo raciocínio já utilizado em 1ª Coríntios 12 e 13, Paulo fala do amor, como essencial para a vida do cristão e da igreja. Os dons e os ministérios repartidos pelo Espírito Santo de nada valem se não forem vividos em amor. Se seus conselhos tivessem sido seguidos desde a antiguidade, certamente hoje não haveria tantas divisões no cristianismo. Repetindo o que já havia dito em Romanos 5 e 8, Paulo pede que os romanos se regozijem na esperança, sejam pacientes na tribulação e perseverantes na oração. Propõe ainda duas coisas que são muito pouco vividas pelos cristãos de hoje: praticar a hospitalidade e compartilhar as necessidades dos santos (v. 13). Como diz também o escritor de Hebreus (13:2): "Não vos esqueçais da hospitalidade, porque por ela alguns, sem o saberem, hospedaram anjos". Hospitalidade era algo essencial naquela época, em que os meios de transportes e de comunicações praticamente não existiam. Assim, era necessário que os viajantes contassem com a hospitalidade alheia nas paradas que faziam pelo caminho. E os cristãos também deveriam dar o exemplo, não só de hospitalidade, mas também de serviço uns aos outros. A igreja primitiva era muito unida e "tudo tinham em comum" (Atos 2:44). Com a modernidade, a facilidade de transportes e de comunicações, e a, digamos, "coisificação" do ser humano, principalmente nas cidades grandes, nós perdemos muito desse sinais que caracterizam o cristão, de amor, serviço e hospitalidade para com os seus irmãos na fé. Devemos nos alegrar com os que se alegram e chorar com os que choram (v. 15). Entretanto, esta palavra vale para nós hoje também, e fazemos bem se a praticamos.

Não é só em relação aos que nos são mais próximos que devemos servi-los e orar por eles. Paulo diz para abençoar os que nos perseguem, e não amaldiçoá-los (v. 14). Isto era particularmente difícil para os crentes romanos, que estavam prestes a sofrer uma perseguição brutal que levaria muitos à morte. ´Mesmo assim, deviam ser unânimes, tendo o mesmo sentimento, sem serem orgulhosos nem sábios aos próprios olhos (v. 16). De novo, Paulo chama os romanos à humildade, repreendendo o orgulho, convocando-os ainda a fazer o bem a todos os homens (v. 17). O ideal do cristão é viver em paz, no que depender dele e "se for possível" (v. 18). Isto significa que nem sempre é possível ter paz com todos, mas não deve ser o cristão que inicia ou origina uma briga ou uma guerra. De fato, alguns anos depois, muitos dos primeiros leitores da Carta aos Romanos seriam perseguidos por quem não queria jamais ter paz com eles, e a sua atitude foi de total resignação. Não reagiram nem contra-atacaram o Império Romano, mas o seu exemplo pacifista de martírio mudou o próprio Império Romano nas décadas seguintes, e serve de inspiração até hoje a muitos movimentos pacifistas do mundo todo. Paulo repreende ainda, o desejo de vingança, dizendo que não devemos nos vingar a nós mesmos, mas dar lugar à ira, porque a vingança pertence ao Senhor, e é Ele quem decide se retribui a ofensa ou não (v. 19). Nossa atitude frente aos inimigos que nos cruzam o caminho é a mesma que Salomão já recomendava nos seus Provérbios:

Pro 25:21 Se o teu inimigo tiver fome, dá-lhe pão para comer, e se tiver sede, dá-lhe água para beber;
Pro 25:22 porque assim lhe amontoarás brasas sobre a cabeça, e o Senhor te recompensará.

Fazer bem ao inimigo, portanto, é uma atitude que pode reverter em favor do cristão, seja por obter a compreensão do inimigo, seja pelo Senhor recompensá-lo. A Bíblia do Peregrino sugere que esta imagem de brasas amontoadas sobre a cabeça (do inimigo) pode ser interpretada como "fazê-lo corar de vergonha", mas há quem diga que ela está relacionada com o incensário cheio de brasas do altar, o qual era acrescido de dois punhados de incenso aromático, que o sumo sacerdote utilizava no dia da expiação dos pecados de todo o Israel (Levítico 16:22). Assim, esse texto de Romanos lembraria a importância do perdão, de como reconciliar-se com o inimigo significa, por assim dizer, um sacrifício de cheiro agradável ao Senhor. De qualquer maneira, o que Deus realmente preza, e está claro neste capítulo 12 de Romanos, é que os cristãos vivam em paz uns com os outros, e com os que são de fora da comunidade dos crentes.

O papa e o ex-muçulmano

Tenho feito um acompanhamento da repercussão do batismo de um jornalista muçulmano pelo papa Bento XVI na Páscoa, já comentado aqui ("Um batismo no Vaticano"). Há quem apóie e há quem critique, em ambos as religiões. Quem quiser acompanhar os desdobramentos desse fato é só visitar este tópico no Forum Atos. Pelo jeito, este imbroglio ainda vai dar muito o que falar.

O evangelho de Lucas - parte 13

O capítulo 10 de Lucas começa de maneira muito parecida com o início do capítulo anterior, em que Jesus enviava os doze apóstolos para uma missão. Agora são "outros setenta e dois" discípulos (v. 1) que são enviados à frente, de dois em dois, para preparar o caminho pelas cidades em que Jesus iria passar pouco depois. O Mestre faz uma constatação que se tornaria célebre: "a seara é grande, mas os trabalhadores são poucos" (v. 2), diante do gigantismo do trabalho de levar o evangelho a todo o mundo. Jesus adverte seus discípulos que eles enfrentariam muitos problemas, eram como cordeiros enviados para o meio de lobos (v. 3), e não deviam levar nenhum apoio material (v. 4). De novo, fica claro o desprendimento em relação ao dinheiro. Eles haviam sido comissionados pelo próprio Deus, que se encarregaria de prover-lhes as necessidades. É curioso que Jesus tenha recomendado a seus discípulos que não saudassem ninguém pelo caminho, já que a saudação entre os viajantes e peregrinos era praticamente um ritual muito elaborado por aquela cultura. Talvez tenha sido exatamente por este ritual ser complicado e demorado - afinal envolvia expressões e gestos efusivos -, que Jesus pediu-lhes que não o realizassem. Há, portanto, um claro sinal de que o Mestre estava com pressa, pelo menos no que diz respeito à missão dos setenta. Não deixa de ser, também, uma espécie de "treinamento" para a perseguição que se seguiria ao estabelecimento da Sua igreja. Havia, também, uma série de recomendações para o comportamento dos discípulos nas cidades e nas casas. Eles eram os mensageiros da paz (v. 6), e como tais deviam se comportar. Se fossem bem recebidos, deviam comer do que lhes era oferecido (v. 8) sem reclamar. Deviam curar os enfermos e anunciar que o reino de Deus estava próximo (v. 9). E, de fato, estava literalmente próximo, pois Jesus passaria por ali nos dias e semanas seguintes. Era uma missão não só de anúncio do evangelho mas também de reconhecimento do terreno por onde Jesus iria passar, o que pode revelar, também, uma espécie de "pressa" nesta fase do ministério do Mestre, pois ele passaria por lugares já preparados por seus discípulos.

Quanto àquelas cidades que não aceitassem os discípulos, Jesus lhes disse que sacudissem o pó de seus pés em testemunho contra aquela cidade, clamando em voz alta que eles estavam contra aquele povo, mas mesmo assim o reino de Deus estava próximo (v. 11). Jesus, então, diz que haveria menos rigor no juízo para Sodoma do que para aquela cidade (v. 12). A razão para isso, provavelmente, era que Sodoma não havia tido a oportunidade de receber os mensageiros do evangelho que preparavam a entrada do próprio Deus na cidade. Na mesma linha, Jesus fala de Corazim e Betsaida, cidades de Israel, comparando-as com Tiro e Sidom, cidades gentias (vv. 13-14), dizendo que estas últimas teriam se arrependido se houvessem visto tudo o que aquelas viram pelo ministério de Cristo, o que não aconteceu com as primeiras. Por fim, Jesus conclui dizendo que "quem vos ouve, a mim me ouve; e quem vos rejeita, a mim me rejeita; e quem a mim me rejeita, rejeita aquele que me enviou" (v. 16). No versículo seguinte, Lucas já passa para o retorno dos setenta, felizes com o êxito de sua missão, alegres por submeterem os demônios, mas Jesus lhes adverte que deveriam estar felizes não por isso, mas pelo fato dos nomes deles estarem inscritos nos céus (v. 20).

O v. 21 mostra uma faceta do evangelho que Jesus notou bem, que Deus havia escolhido se revelar aos pequeninos, mas ocultara essas coisas dos sábios e instruídos, completando em seguida, dizendo que "ninguém conhece quem é o Filho senão o Pai, nem quem é o Pai senão o Filho, e aquele a quem o Filho o quiser revelar" (v. 22). Aqui há uma clara demonstração da Trindade, em que Pai e Filho estão em íntima unidade sem perder suas distinções pessoais. Este é um mistério espiritual que cabe somente a Deus revelar. Chega então um homem, "intérprete da lei", que pergunta a Jesus o que ele devia fazer para ser salvo. Jesus responde com outra pergunta da própria lei, perguntando o que ele entendia, ao que ele responde corretamente dizendo que deveria amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo (v. 27). Jesus aprova a sua resposta, mas o homem insiste, perguntando ao Mestre que é o seu próximo. Jesus então conta a parábola do bom samaritano (vv. 30-35), uma das mais conhecidas de todas as que Ele contou, e mostra que um sacerdote e um levita não quiseram ajudar um homem que havia sido ferido por assaltantes e deixado à beira da estrada entre Jerusalém e Jericó, exatamente pelas suas obrigações cerimoniais que, pela frieza da letra da lei, os obrigavam a manter-se puros para cumpri-las. Já um samaritano se compadece do homem e o ajuda, e se responsabiliza, inclusive financeiramente, pela sua recuperação. Indagado por Jesus sobre quem seria o próximo do homem machucado, o intérprete da lei responde que era aquele que tinha se compadecido do outro (v. 37), recusando-se a pronunciar a palavra "samaritano", já que para os judeus não havia outro povo mais desprezível do que o de Samaria, seus parentes distantes do antigo reino dividido do norte, que se haviam desviado dos preceitos da lei mosaica e da descendência de Jacó.

Por fim, Jesus chega à casa de Marta e Maria em Betânia (vv. 38-41), elas que eram irmãs de Lázaro. Neste excerto de Lucas, nem Lázaro nem Betânia são citados. A importância, novamente, recai nas mulheres. Provavelmente não era a primeira aproximação entre Jesus e os irmãos de Betânia, mas por todos os evangelhos fica claro que Ele se sentia muito bem nesta casa. No período do seu ministério, a casa de Maria e Marta deve ter sido o mais próximo do que Ele poderia chamar de "lar". Marta era mais atirada, decidida, e Maria aproveitava cada minuto do tempo que tinha com Jesus. Marta, assoberbada com o trabalho de casa, busca em Jesus o apoio para que Ele repreenda Maria e esta venha ajudá-la, mas Jesus censura a ansiedade de Marta, e mostra que Maria é que estava certa. Afinal, receber o próprio Deus e Salvador em casa era um privilégio que deveria fazer qualquer pessoa se esquecer dos seus afazeres. Maria tinha feito a escolha certa.

segunda-feira, 24 de março de 2008

Muito cacique pra pouco índio

A Folha de S. Paulo deve mesmo estar passando por uma séria crise de identidade. Hoje, com ares mais panfletários do que nunca, em editorial de topo da pág. A-2, curiosamente intitulado "Dança tribal", a Folha critica a confusão tucana em relação à disputa da Prefeitura de São Paulo, já que Alckmin e Kassab não se entendem, e as ditas "bases" do partido se afastam dos vereadores e dos tucanos que têm cargos na Prefeitura paulistana. Em tom de lamentação, no melhor estilo do Granma dos Frias, a Folha só agora indaga como é que os tucanos vão se apresentar como oposição ao prefeito que os tucanos (Serra à frente) colocaram no poder. Deviam ter perguntado isto quatro anos atrás, quando era público e notório que o Serra estava usando a Prefeitura de São Paulo apenas como chá de losna para a indigestão da derrota para o Lula em 2002, e trampolim para o governo do Estado (ou Presidência) em 2006. Preferiram, entretanto, se unir contra a Marta Suplicy (pra quem sobra bordoada no editorial de hoje também, só pra não perder o costume). Fica chato só falar de tucanos em editorial, né? Agora, os tucanos estão preocupados, coitadinhos, com esta contradição: como ser oposição e governo ao mesmo tempo? Ora, sugiro que façam como o editorial da Folha: ao mesmo tempo, o jornal dos Frias quer dizer tudo mas não diz nada, e parece padecer da mesma crise existencial que assola os arraiais tucanos. Afinal, a Folha diz não ter rabo preso com ninguém, a não ser o leitor. Só se todos os leitores da Folha agora são tucanos...

domingo, 23 de março de 2008

Carta aos Romanos - 14

Ainda sobre os dois primeiros versículos do capítulo 12 da Carta de Paulo aos Romanos, eu gostaria de deixar registrado aqui um comentário muito interessante de Calvino sobre o trecho em questão, nas suas Institutas:

CAPÍTULO VII

A SUMA DA VIDA CRISTÃ. ONDE SE TRATA DA RENÚNCIA PESSOAL

1. PERTENCEMOS A DEUS, NÃO A NÓS, PARA QUEM TEMOS DE VIVER E MORRER, EM CRISTO E PELO ESPÍRITO.

Ainda que a lei do Senhor tenha mui excelente e de forma mui conveniente formulado sistema de regular-se a vida cristã, contudo, pareceu bem ao Mestre celestial conformar os seus à própria regra que prescrevera na lei, buscando formulação ainda mais precisa. Aliás, desta formulação, o princípio é este: que é dever dos fiéis "apresentar seus corpos a Deus por sacrifício vivo, santo e a ele aceitável", e este é o fundamento do culto legítimo [Rm 12.1]. Daí se segue a exortação de "não vos conformeis com este mundo, mas transformai-vos pela renovação de vossa mente, para que experimenteis qual seja a vontade de Deus" [Rm 12.2].

Ora, é um ponto transcendental saber que estamos consagrados e dedicados a Deus, para que não cogitemos nada além disso, nem falemos ou meditemos, ou façamos a não ser para sua glória, pois o sagrado não se aplica a usos profanos sem grave ofensa a ele. Ora, se não nos pertencemos, mas ao Senhor, faz-se patente que se deva evitar não apenas o erro, mas ainda a que fim devemos dirigir todas as ações de nossa vida; portanto, não nos pertencemos em nossos planos e ações, nossa razão não deve estar no comando, e muito menos nossa vontade; portanto, não nos pertencemos e nem nos proponhamos a buscar o que nos convenha segundo a carne; portanto, não nos pertencemos, e, até onde seja exeqüível, esqueçamos a nós mesmos e a tudo que é nosso.

Pelo contrário, somos de Deus; logo, vivamos e morramos para ele [Rm 14.8]. Somos de Deus; logo, que sua sabedoria e vontade presidam a todas as nossas ações. Somos de Deus; logo, que todas as expressões de nossa vida se polarizem para ele como a um só fim legítimo. O quanto de proveito tem experimentado aquele que, ensinado que não é dono de si mesmo, anulou sua própria razão, soberania e mandato, para que Deus de tudo se aproprie! Ora, como a peste mais eficaz é fazer com que os homens se percam, quando se conformam a suas próprias inclinações, assim o único porto de salvação é nada saber, nem por si mesmo querer, senão tão-somente seguir ao Senhor, indo ele à frente [Rm 14.8].

Portanto, este é o primeiro passo: que o homem se desprenda de si mesmo, para que aplique ao serviço do Senhor toda a força de seu entendimento. Chamo serviço não apenas ao que permanece na obediência da Palavra, mas ainda àquele pelo qual a mente do homem, esvaziada do próprio senso da carne, se volta todo ao arbítrio do Espírito de Deus. Esta transformação, que Paulo chama de renovação da mente [Rm 12.2; Ef 4.23], embora seja o acesso primordial à vida, todos os filósofos a ignoraram. Pois eles só consideram a razão como moderadora ao homem, julgam que só a esta se deve ouvir, afinal unicamente a esta única consentem e entregam o governo da forma de proceder. A filosofia cristã, porém, ordena que ela deve ceder lugar, sujeitar-se e ser submissa ao Espírito Santo, de sorte que o homem em si já não viva, mas que deixe Cristo viver e reinar em sua vida [Gl 2.20].

(CALVINO, João. As Institutas. Edição Clássica. São Paulo: Cultura Cristã, 2006. 2. ed. vol. 3, pp. 161-162)

O evangelho de Lucas - parte 12

Análise do capítulo 9 de Lucas, escrito por Gustavo para o Forum Atos:

Lucas então começa a falar dos discípulos de Jesus, no que conhecemos como capítulo 9. Este é o tema deste capítulo, e é um bom tema para se falar após os relatos de fé do capítulo 8. Pois após a fé, segue o discipulado.

Em Lucas 8:51, Lucas relata que somente 3 discípulos entraram com Jesus. Por isto agora, no versículo 1, ele relata que são com os doze discípulos que ele está agora.

Lembramos então que Lucas está escrevendo seu evangelho para Teófilo, que pode ser um magistrado que esteja avaliando as acusações feitas contra os cristãos. Ou seja ele também alguém que já tinha conhecimento sobre o Velho Testamento, e talvez até sobre o Cristianismo em si. Talvez por isto, Lucas não escreve um evangelho tão teológico como João, mas mesmo assim, ele inclui em seu evangelho, alguns detalhes que dão um toque teológico em seu evangelho.

No primeiro versículo temos algo assim. É um grande testemunho contra os infiéis. Pois Lucas diz que Jesus dá virtude e poder a estes mesmos 12 discípulos. O poder ali é dado por Jesus, e não por Deus ou o Espírito Santo. Fosse Jesus um profeta, pediria ele ao Pai para que este poder fosse dado, e Lucas como um evangelista amante da verdade assim teria dito. Mas acontece o contrário, Jesus não é um simples profeta, de forma que Ele mesmo pode dar poder para seus discípulos.

E assim como Ele fez, ele os enviou. Provavelmente Ele iniciou seu ministério pregando sozinho e levando seus discípulos para verem como a pregação deveria ser feita. Ele quis dar o exemplo, e agora que seus discípulos o viram pregar o Reino e curar enfermos, seria a vez deles fazerem aquilo.

E como a fé é um tema sempre recorrente em Lucas, este mostra como Jesus incentivava o exercício da fé. Ele envia seus discípulos sem nada, de forma que eles confiassem totalmente na Providência divina. Há uma aparente contradição no que Lucas e Mateus dizem sobre os bordões, e o que Marcos diz. Lucas e Mateus não permitem bordões, Marcos permite um. Segundo as versões Vulgata, Bizantina e o Textus Receptus, bordão está no plural, o que indicaria que mais de um bordão era proibido. No entanto, o texto de Mateus traz na maioria dos manuscritos a palavra no singular. Temos que entender aqui a intenção de Crito, que seja qual for o texto, é a mesma: que os discípulos deveriam ir pregar sem se preocupar com providências para a viagem. Deus cuidaria disto para eles. Por isto, Mateus traz o verbo κτάομαι, que quer dizer adquirir, obter, negociar. Já Lucas usa o verbo αιρω, que primariamente significa “levantar”, o que pode ser entendido como levantar e levar consigo, tomar. Tanto Mateus quanto Lucas mostram as palavras de Jesus no discurso direto. Como Marcos fala no discurso indireto, ele pode interpretar as palavras de Cristo, indicando que eles não adquirissem nada como Lucas disse, mas que isto não os impedia de manter seus bordões, que provavelmente já tinham, pois era um item essencial para viagens naquela época.

Qual a atitude dos discípulos de Jesus em relação ao povo? Se hospedariam com aqueles que os escutassem, e evitariam aqueles que os repudiaram. Pois as ovelhas de Cristo ouvem sua voz (Jo 10:27), e respondem de forma positiva a ela. O sacudir do pó dos pés dos discípulos testemunhavam mais do que uma falta de hospitalidade. Testemunhava uma falta de fé. Temos que reparar aqui as orientações de Cristo. Ele não pediu para insistir com pessoas. A pregação deve ser natural, ela deve ser como a semente do capítulo anterior, apenas jogada, para que naturalmente cresça com a graça de Deus. Os judeus sacudiam a poeira dos pés ao andar em nações gentias, baseando-se em alguns textos como:

(Am 7:17) Portanto assim diz o SENHOR: Tua mulher se prostituirá na cidade, e teus filhos e tuas filhas cairão à espada, e a tua terra será repartida a cordel, e tu morrerás na terra imunda, e Israel certamente será levado cativo para fora da sua terra.

Assim, Jesus estava indicando que eles deveriam considerar aquele povo como gentios, como em outro lugar ele diz para eles considerarem pessoas rebeldes:

(Mt 18:17) E, se não as escutar, dize-o à igreja; e, se também não escutar a igreja, considera-o como um gentio e publicano.

Assim partem os discípulos. Como já tinha dito, o poder dado por Cristo aos discípulos incomodava os infiéis. Entre eles, Herodes, que já ouvia as notícias sobre Jesus Cristo. Notem que Herodes procurava vê-lo, indicando o desejo de ver, mas a falta de coragem de não ir pessoalmente até ele. Herodes evitava Cristo por que não queria ser repreendido como foi repreendido por João Batista. Pois João apenas batizava, e Cristo fazia muitos milagres, dando indícios que era o Messias. Como João diria depois;(Jo 3:20) Porque todo aquele que faz o mal aborrece a luz, e não vem para a luz, para que as suas obras não sejam reprovadas.Não devemos ser como Herodes. Devemos nos arrepender sempre, e estar sempre procurando o perdão de Deus. Devemos agir, e deixar sermos renovados. Herodes não queria aquilo, por isto evitou Cristo ao máximo.Voltaram os discípulos, e foram todos para Betsaida. Ali, Cristo continua sua pregação sobre o Reino de Deus. Já ficando tarde, seus discípulos começam a se preocupar com a fome daquele povo. Jesus havia pedido eles para confiarem na Providência de Deus, mas agora estavam eles descrentes mais uma vez. Por isto Jesus disse para darem eles o alimento para o povo. Jesus os ordenou então a dividirem em grupos, e abençoou o pouco alimento que tinham. Mas com o pouco alimento todos comeram e se fartaram. Devemos sempre confiar em Deus, mesmo que os problemas pareçam sem solução. Não fala este capítulo também da fé?

Quando esteve a sós com seus discípulos, Jesus questionou sobre o que as pessoas pensavam de Cristo. Era uma pergunta para reflexão, quem nós cremos ser Jesus? Pedro corretamente disse que ele é o Cristo de Deus. Jesus não queria que as pessoas acreditassem nisto por que alguém disse, ele queria que as convicções delas as fizessem chegar a esta conclusão. Isto é fé. Pela primeira vez em Lucas, Cristo revela que será morto. É necessário que isto aconteça antes que Jesus seja revelado como o Cristo. Pois seria muito fácil acreditar em alguém que esteja vivo e fazendo milagres.O discípulo de Jesus, que é o tema do capítulo, não é aquele que vive bem. Ser discípulo de Cristo é estar disposto a sofrer, a se negar. Ninguém pode ser discípulo de Cristo se valorizando, buscando o próprio bem. Ninguém pode ser discípulo de Jesus procurando riquezas para que sua vida seja confortável e tranqüila, mas que procure o reino de Deus para que sua vida seja confortável mesmo com os problemas, e tranqüila mesmo com as tribulações. Ser discípulo de Cristo é ser crucificado com Ele e nascer novamente como uma nova criatura, cujos problemas e tribulações não são maiores que a alegria de estar em Cristo. Ele perde a vida para ganha-la, ele perde o mundo para ganhar a si próprio. Ele não se envergonha do Filho, antes tem seu prazer n’Ele. Por fim, os discípulos recebem a promessa de ver o Reino de Deus.

Isto acontece oito dias depois, em um monte ali. Jesus se transfigura, e conversa com Elias e Moisés, que muitos acham estar representando a Lei e os Profetas. No Reino de Deus, quando houver a ressurreição, não somente Elias e Moisés estarão visíveis para todos, mas todos os profetas. Defensores da aniquilação ou sono da alma esbarram neste relato, pois Moisés é dito como morto no Velho Testamento (De 34:5). Tentam evitar a questão dizendo que Moisés está vivo, que foi ressuscitado. A questão é que a Bíblia não menciona isto, sendo Cristo as primícias dos que dormem (1 Co 15:20). Negam que Moisés esteja morto, por que Jesus estaria violando a lei que impedia comunicação com os mortos, mas como para Deus ninguém é morto (Lc 20:38), e como Jesus é Deus (Jo 1:1), então Jesus não estaria falando com mortos, não transgredindo assim a lei.

Por outro lado, os espíritas acham que Jesus está fazendo uma seção mediúnica aqui. Mas como diz o Velho Testamento, Elias não está morto (2 Re 2:11), e nunca mais foi encontrado (2 Re 2:17), uma linguagem típica para o traslado:

(Gn 5:24) E andou Enoque com Deus; e não apareceu mais, porquanto Deus para si o tomou.

(Hb 11:5) Pela fé Enoque foi trasladado para não ver a morte, e não foi achado, porque Deus o trasladara; visto como antes da sua trasladação alcançou testemunho de que agradara a Deus.

Eles ignoram que Cristo estava cumprindo o que prometeu, que era mostrar o reino de Deus, e neste reino não há mortos. Assim, Jesus não foi mostrar a comunicação com mortos, mas a vida em comum com Cristo em sua forma e os antigos vivos.

Pedro maravilhado com aquilo, se ofereceu para montar tendas para todos. Ele tinha observado que Elias e Moisés se afastavam, e Pedro não queria aquilo. Ele queria continuar como estava. O Reino dos Céus é tão maravilhoso, que não há o desejo de se deixar aquilo ali. Uma vez contemplado, o Reino é como um tesouro escondido no campo que se luta para comprar (Mt 13:44). É quando Deus fala a todos, indicando que Jesus é seu Filho Amado, ou como alguns manuscritos dizem, Seu Escolhido. Todos devem ouvi-lo, para que aquele Reino apresentado a eles seja alcançado. Jesus é a Porta, e por isto Cristo nos apresenta aquele Reino.

Descendo do monte, Jesus encontra um pai aflito por seu Filho estar possesso por demônios. Ele havia levado aos discípulos de Cristo, aqueles que no início do capítulo receberam o poder de expulsar demônios. Jesus os acusa de serem incrédulos, o que demonstra que o poder que Cristo dá aos discípulos deve ser operado com fé. Jesus expulsa o demônio, falando novamente que seria entregue aos homens.

Depois disto, os discípulos deram início a uma discussão sobre qual seria o maior deles. O maior, dizia Jesus, era o mais humilde, o menor. Ele recebe qualquer um, inclusive um menino, e quem recebe o menino, recebe Cristo e o Pai.Lucas termina este capítulo falando sobre o discipulado em geral. O homem expulsando demônios em nome de Cristo deveria saber quem é Cristo, por isto não deveria ser repreendido. Ele soube e fez o que tinha que ser feito. Os samaritanos porém souberam e fizeram o que não deveria ser feito, ou seja, se afastaram. Os discípulos quiseram se vingar deles, enviando fogo dos céus, mas Cristo os repreendeu. Não devemos agir com vingança, principalmente pregando.

Seguir Cristo é algo feito imediatamente. Não deve ser deixado para depois por nenhuma causa. Assim termina este capítulo.

Um batismo no Vaticano

Notícia do site Terra (também comentada no Forum Atos) dá conta de que o papa Bento XVI batizou ontem, sábado de aleluia, um jornalista muçulmano convertido ao cristianismo. Como Bento XVI é um homem inteligente, letrado, estrategista, é de se perguntar qual mensagem ele pretende passar com esta atitude neste momento de conflagração entre as religiões e os "mundos" que elas representam. Longe de imaginar que haja efetivamente um choque de civilizações, segundo o modelo fantasmagórico de Samuel P. Huntington, ¿por que o papa batizaria um muçulmano muito conhecido no meio jornalístico exatamente na Páscoa que simboliza a ressurreição de Cristo e, no judaísmo, o êxodo da escravidão no Egito, e isto logo após receber mais uma ameaça de ataque terrorista do Bin Laden? Registre-se, ainda, que neste meio-termo, o papa teve tempo para defender o Dalai Lama e pedir a paz para o Tibete nos recentes confrontos com o governo chinês.
Em 2006, o papa já tinha causado comoção no mundo muçulmano ao citar a frase do imperador bizantino Manoel II Paleólogo (1350-1425), que, em diálogo com um erudito iraniano, teria dito o seguinte: "Mostre-me então o que Maomé trouxe de novo, e ali encontrará apenas coisas más e desumanas, como sua ordem de difundir pela espada a fé que pregava". Sem apoiar ou rejeitar esta opinião do passado, o papa citou a frase por ocasião de uma conferência sobre fé e razão na Alemanha. Diante dos protestos islâmicos, o papa recusou-se a pedir perdão (afinal, a frase estava num contexto muito maior de discussão), mas teve que fazer as pazes com o Islã, para o que foi muito conveniente a visita que fez a Istambul no fim daquele ano.

Bento XVI, entretanto, conhece muito bem o valor do símbolo, e o seu poder de transmissão de idéias e mensagens muito claras através do silêncio. Este batismo de um muçulmano na Páscoa soa mais como uma bofetada na cara do Islã, mas o raciocínio do estrategista Joseph Ratzinger gosta de ir sempre mais fundo do que nós, pobres mortais. Resta-nos esperar para ver (ou crer).

sábado, 22 de março de 2008

Dengue no Rio

Decisão recente do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro mostra um caminho que todos os cidadãos que são vítimas do descaso de todas as esferas de governo na cidade do Rio de Janeiro podem trilhar a partir de agora. Os nossos queridos governantes contam com a omissão popular na hora de reivindicar os seus direitos, tanto quanto à prevenção, aos serviços de saúde, e à reparação dos danos causados. Chegará o dia em que eles responderão com o próprio bolso para pagar as indenizações aos cidadãos que adoeceram ou perderam parentes queridos em função de suas vergonhosas administrações do dinheiro e da saúde públicos. Enquanto este feliz dia não chega, pelo menos algumas decisões judiciais já reconhecem o direito do cidadão de cobrar indenização do Estado e do Município, como no caso em questão. A notícia do próprio TJ-RJ é a seguinte:

A 17ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio condenou, por unanimidade, o Estado e o Município do Rio de Janeiro a pagar indenização no valor de R$ 30 mil, corrigidos monetariamente, a Ozinaldo Felix de Araújo, pela morte de sua filha, Daiane Alves Feliz de Araújo, por dengue hemorrágica. Segundo o relator da apelação cível, desembargador Raul Celso Lins e Silva, os dois réus são responsáveis, de forma solidária, porque faltaram com o serviço preventivo ou repressivo no combate aos focos do mosquito Aedes Aegypti, durante epidemia da doença em 2002.

Em 17 de janeiro daquele ano, por volta das 5 horas da manhã, Ozinaldo levou sua filha de 13 anos ao Hospital Municipal Rodolpho Rocco, mais conhecido como PAM de Del Castilho, sendo ela liberada às 8h. Na ocasião, o médico plantonista prescreveu medicamentos, mas a menor não melhorou e, por volta das 4h35 da manhã do dia seguinte, voltou à emergência do hospital, sendo depois transferida para a UTI/CTI do Hospital Salgado Filho, onde veio a falecer à tarde.

"Laudo realizado pela Coordenadoria de Controle de Vetores, dias após o óbito, constatou não haver qualquer foco na residência do apelante. Ao contrário, encontrou diversos focos no quarteirão, inclusive em uma igreja. Incontroversa, portanto, a omissão dos entes públicos na tomada de providências que seriam exigíveis, de forma razoável, para evitar a fatalidade. Ficou caracterizada, assim, a ausência do poder público", afirmou Raul Celso.

O Município alegou em sua defesa ter realizado programa eficiente de combate à dengue. Relatórios elaborados pela Coordenação de Epidemiologia, porém,demonstraram que, tanto o Estado quanto o Município do Rio de Janeiro faltaram com serviço preventivo ou repressivo no combate à doença, além de terem apresentado documentos de exercícios posteriores ao do evento.

Infelizmente, será difícil receber esta indenização, já que tanto Estado como Município (e a União Federal também) raramente pagam os seus débitos judiciais. Eles entram numa fila maldita conhecida como "precatórios", que significam exatamente o que a palavra "precatório" significava no português arcaico, um pedido de pagamento, nada mais. Resta-nos, portanto, esperar o bendito dia em que os políticos pagarão do próprio bolso o mal que sua desfaçatez inflige a cada cidadão. ¿Já pensaram Garotinho, Rosinha e César Maia abrindo os cofrinhos? Enquanto isso, a dengue no Rio chega finalmente ao fundo do poço onde está a seca do Nordeste: bilhões são investidos, ninguém vê o resultado, mas muita gente termina pagando com a própria vida.

Carta aos Romanos - 13

Os dois primeiros versículos de Romanos 12 merecem uma atenção especial, e por isso é importante considerá-los à parte. Este capítulo marca, por assim dizer, uma "virada" na carta aos Romanos. Até então, Paulo estava, de certa forma, "acomodando os interesses" dos diferentes grupos que formavam a igreja de Roma: os judeus, os prosélitos e os pagãos, todos convertidos ao cristianismo. O hino de louvor com que ele termina o capítulo 11 já deixava claro que ele estava falando da "profundidade da riqueza, tanto da sabedoria como do conhecimento de Deus" (11:33), e a partir do capítulo 12 ele passa a tratar de assuntos mais práticos, que diziam respeito ao dia-a-dia dos cristãos romanos e, por conseguinte, de todos nós. Os primeiros versículos deste capítulo mostram que, apesar de todas as diferenças entre judeus e gentios, já traçadas nos capítulos anteriores, TODOS deveriam apresentar o próprio corpo como "sacrifício vivo, santo e agradável a Deus", que é o nosso culto racional (v. 1). A palavra "apresentar" aqui, no original grego, é παρίστημι, παριστάνω - paristēmi, paristanō, a mesma traduzida por "oferecer" os membros do corpo ao pecado (Rom 6:13) e os membros para a escravidão da impureza e da maldade (Rom 6:19). Retornando ao que já comentei quanto ao capítulo 8, os cristãos de Roma, independentemente de sua origem, estavam prestes a literalmente oferecer os seus corpos como sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, por conta da perseguição que certamente já havia iniciado, embora timidamente, e que ganharia vulto (e terror) sob Nero nos anos seguintes. Por "culto racional", a palavra traduzida aqui por "racional" é λογικός - logikos, que tem tanto o sentido de "racional" como de "lógico" na mesma maneira moderna como entendemos estas palavras, ou seja, com bom senso e coerência não só dos atos mas também do pensamento. Vez por outra, aparece alguém dizendo que os cristãos devem desprezar o pensamento, a teologia, o raciocínio lógico, mas Romanos 12:1 é de uma clareza ímpar, quando Paulo diz que Deus é o nosso culto racional. Obviamente, Paulo não está querendo "intelectualizar" o culto (e o discurso) cristão a tal ponto de torná-lo incompreensível, impenetrável. "Lógico" não é sinônimo de "complicado", e Paulo deixa claro isso também ao falar da "simplicidade e pureza que há em Cristo" (2ª Coríntios 11:3). Logo, devemos prestar um culto a Deus de maneira que saibamos por quê estamos fazendo isso, qual é a razão da nossa adoração a Ele.

O versículo 2 de Romanos 12 complementa este raciocínio ao dizer que não devemos conformar com este século, que outras vezes é traduzido por "mundo". A palavra traduzida por "século" ou "mundo" é αιών - aiōn, que quer dizer literalmente "era", "período", mas figuradamente significa o mundo presente, as influências externas a que os romanos eram submetidos naquela época e nós também somos hoje. Esta palavra (αιών - aiōn - "éon"), se revelaria muito perigosa nos anos seguintes, quando o gnosticismo pretensamente cristão a usaria no sentido que Platão lhe havia dado 5 séculos antes, ou seja, o mundo eterno das idéias, e "éon" seria uma emanação de Deus. Assim, para os gnósticos do século I, Jesus seria apenas uma emanação de Deus, uma espécie de "espírito evoluído" nos moldes kardecistas, uma influência sem corpo, nada mais do que isso. Contra esta idéia se volta João, mais ou menos 35 anos depois, escrevendo o seu evangelho e combatendo esta idéia de Jesus como "éon", ou seja, o Verbo se fez carne e efetivamente habitou entre nós, "cheio de graça e de verdade; e vimos a sua glória, como a glória do unigênito do Pai" (João 1: 14). O interessante é que o evangelho de João não deixa de ser um culto racional, no sentido de "λογικόςlogikos" apresentado por Paulo em Romanos 12:1, ou seja, diante da heresia gnóstica, João se vale do seu testemunho como único dos apóstolos que ainda estava vivo no ano 90, para apresentar ao mundo uma versão mais "lógica", mais "racional", mais "teológica" da vida de Jesus, do que aquela que havia sido apresentada por Mateus, Marcos e Lucas nos chamados evangelhos "sinópticos", que haviam se preocupado mais em relatar os fatos, a "sinopse" da vida de Jesus sem entrar em maiores detalhes "lógicos" ou "teológicos". João discipularia a Policarpo de Esmirna, que por sua vez discipularia a Irineu de Lião que, ainda enfrentando a ameaça gnóstica, que limitava Jesus a mera influência esotérica, escreveria o seu "Contra as Heresias" na década de 180. Se alguém quiser se aprofundar no que significou gnoticismo anti-cristão, e na vida e biografia de Irineu de Lião, clique aqui.

Retornando a Romanos 12:2, Paulo deixa claro que não devemos nos conformar com esta era, este "éon", este mundo, tal como ele se apresenta a nós. Pelo contrário, temos que nos transformar pela renovação da nossa mente para experimentar a boa, agradável e perfeita vontade de Deus. "Transformar" é a tradução do grego μεταμορφόω - metamorphoō, isto mesmo, uma verdadeira metamorfose. Esta palavra, μεταμορφόω - metamorphoō, só aparece em dois outros momentos do Novo Testamento. Um, na transfiguração de Jesus no monte (Mateus 17:2 e Marcos 9:2). Outra em 2ª Coríntios 3:18 ("somos transformados de glória em glória") O cristão é, portanto, uma metamorfose ambulante, sendo transformado de glória em glória, mas não sem direção, pois esta transformação se dá pela renovação da sua mente, renovação esta que se dá pelo conhecimento do evangelho, pelo "culto racional" de Deus, pela glória de Deus manifesta na sua vida. E isto acontece para que ele possa experimentar a boa, agradável e perfeita vontade de Deus. A palavra traduzida por "experimentar" aí é δοκιμάζω - dokimazō, que era muito usada para "testar" os metais rústicos que eles fabricavam naquela época, para dizer se tinham a consistência desejada, se eram resistentes ao fogo e à batalha (no caso de espadas). Assim, o crente transformado pela renovação da sua mente pode experimentar, testar, discernir, entender melhor, qual é a vontade de Deus para a sua vida. Isto dá a idéia de que a vontade de Deus pode ser única para a vida do cristão, mas às vezes é necessário "testar", "ajustar", "experimentar" esta vontade de acordo com cada momento que ele vive. Talvez o centro dos dois primeiros versículos de Romanos 12 seja exatamente a metamorfose, não qualquer uma, aleatória, mas aquela controlada e dirigida por Deus.

Cólera en Sudamérica

Continuando nossa série cômica sulamericana, aquela já estrelada por Evo Morales e Maradona (Los 'Fanfarrones'), notícia do UOL dá conta de que Juvenal Silva, presidente do Cienciano, equipe de Cuzco, Peru, quer processar o presidente do Flamengo, Márcio Braga, pela campanha deste contra as partidas de futebol nos altiplanos andinos. Ainda segundo a notícia, "o dirigente afirmou para a agência oficial Andina que inclusive recorrerá às instâncias internacionais para denunciar que Braga prejudica a imagem do Peru ao exterior ao causar temor entre os turistas que visitam Cuzco, o principal destino arqueológico da América do Sul". Nada contra a alta, bela e histórica Cuzco, e sua divina vizinha Macchu Pichu, mais próxima ainda das nuvens, mas o buraco é mais embaixo. Nenhum turista vai às duas cidades para jogar 90 minutos de uma partida de futebol sem oxigênio suficiente. Pelo contrário, todo turista é, por definição, um bobo preguiçoso, sempre pronto para duas coisas: descansar e ser enganado, de preferência, comprando por 100 o que vale 10 (e se dizendo maravilhado com tudo isso). Também não se justifica essa tournée internacional do Márcio Braga contra nuestros hermanos que viven más allá del cielo. Que reclame e deixe que a FIFA decida. Se fizer mais do que isso, também se enquadra na categoria turismo pago pelo bolso dos rubronegros. Agora, acá entre nosotros, este episódio só consagra a opinião de que futebol e literatura estão muito mais próximos do que parece. Un hispanoamericano que se llama Juvenal yo sólo había leído en "El Amor en los Tiempos del Cólera", de mi querido Gabriel García Márquez. Precisamos arreglar uma Firmina para ele urgente!!! Antes que Florentino del Flamengo la encuentre...

sexta-feira, 21 de março de 2008

O evangelho de Lucas - parte 11

O capítulo 9 de Lucas começa e termina mostrando a pobreza de Jesus e seus discípulos (o que é um contraste gritante com a chamada "teologia da prosperidade" atual), e mostra Jesus predizendo por duas vezes o seu próprio sacrifício, sem que os discípulos entendessem exatamente do que ele estava falando. Primeiro, nos vv. 1-6, Jesus envia seus apóstolos para uma missão, dando-lhes poder e autoridade para curar e exorcizar. Tratava-se de uma espécie de treinamento, uma "delegação de poder" que provavelmente durou alguns dias, já que eles deviam percorrer as cidades próximas, mas não podiam levar nem comida nem dinheiro. Deviam valer-se da caridade e da hospitalidade alheia. Aqueles que não os recebessem e os ajudassem, eles deveriam dar testemunho contra eles sacudindo o pó dos seus pés ao saírem das cidades. A ênfase aqui, me parece, está na providência divina, não só na realização de milagres, mas principalmente na dependência total e absoluta da graça de Deus para as novas tarefas que eles estavam assumindo. Agora, eles eram "pescadores de homens"(Mateus 4:19, Marcos 1:17). No final do capítulo (vv. 57-62), Jesus de novo está lidando com pessoas que queriam segui-lo, mas ele novamente ressalta a sua pobreza, dizendo que "as raposas têm covis, e as aves do céu têm ninhos; mas o Filho do homem não tem onde reclinar a cabeça" (v. 58). Seguir a Jesus implicava num custo sem receita aparente, não havia orçamento para as viagens, hospedagens e comida. O custo era alto, e quem lançava mão do arado, ou seja, se dispunha a trabalhar na seara do Senhor, (João 4:35), não podia mais voltar atrás (v. 62). O discípulo devia tomar a sua cruz e segui-lO sem questionar (v. 23). Por meio de uma série de paradoxos (vv. 23-25), Jesus chama a atenção para o fato de que, quem quisesse ganhar a sua vida, a perderia, e quem a perdesse, a salvaria. Obviamente, as palavras de Jesus não deveriam ter uma interpretação literal, afinal ele não estava incentivando o suicídio. O que Ele esperava ver morto naqueles que o seguiam (e o seguem até hoje) era (e é) o egoísmo, a vida centrada em si mesma, sem se importar com o próximo. O Mestre não queria que desavisados o seguissem, por isso insistiu tanto em apontar os altos custos e a completa mudança de vida em que implicava o simples fato de andar com Ele.

Jesus ainda prediz a sua morte por duas vezes, mas os ouvidos dos discípulos parecem estar trancados para esta informação. No v. 22, Ele dá uma descrição mais abrangente de como isto aconteceria, incluindo no relato a ressurreição, e no v. 44 Ele é mais sucinto. Antes da primeira profecia, os discípulos haviam presenciado a multiplicação dos pães e dos peixes, e entre as duas profecias de Jesus, temos a transfiguração dEle no monte, diante de Pedro, Tiago e João. Eram momentos de êxtase espiritual intercalados pelo choque de realidade da missão e do propósito de Jesus na Terra. Nesse meio-tempo, os apóstolos haviam cumprido sua missão sem comida e sem dinheiro pelas cidades vizinhas, presenciaram a cura de um jovem possesso e ainda foram impedidos de entrar em uma aldeia samaritana (v. 53). Jesus proporcionava aos seus discípulos um zig-zag de emoções. Andar com ele não era tarefa fácil. Tinha seus momentos de glória divina, mas também outros de contato com a miséria humana e o preconceito étnico. Dos três evangelistas sinópticos, Lucas talvez seja aquele que mais prezasse o estilo literário, e é sintomático que ele insistisse tanto na questão do custo do discipulado e do sacrifício de Jesus nesse mesmo trecho (ainda que o evangelho não fosse dividido em capítulos à época). Podemos imaginar que ele queria dizer que seguir a Jesus envolve um sacrifício do crente? É possível que sim, desde que entendamos que o sacrifício de Jesus é único, original e insubstituível, e o do crente é subsidiário, eventual, e circunstancial.

Há que registrar-se, ainda, os episódios da multiplicação dos pães e peixes e a cura de um jovem possesso. Em ambas as situações, uma multidão seguia Jesus, a ponto de Herodes ficar perplexo com aquele novo profeta (v. 7). Já havia mandado decapitar a João Batista, e agora tinha que lidar com outro "messias" aparentemente muito mais poderoso. Na multiplicação dos alimentos, chama a atenção o fato de Jesus ter dito aos seus discípulos: "Dai-lhes vós mesmos de comer" (v. 13). Eles já haviam sido treinados, e agora Jesus desafiava-lhes a fé. Eles, como de costume, se preocupavam com os dados mais objetivos, terrenos, afinal só havia 5 pães e 2 peixes, e a frieza dos números acompanhava-lhes a razão. A ironia de Jesus, em alimentar tanta gente com tão pouco, mexia com o ânimo dos discípulos, e, mesmo assim, da reunião do pouco que eles tinham Jesus ainda fez sobrar doze cestos (v. 17), um para cada apóstolo, talvez a mostrar-lhe como ainda estavam longes de exercitar a fé, o que fica mais claro quando o pai do rapaz possesso diz que seus discípulos não haviam conseguido expulsar o espírito imundo de seu filho (v. 40). Mesmo diante de tanto poder de Deus demonstrado na vida do Mestre, os discípulos ainda tateavam o campo da fé. Por fim, Jesus ensina os discípulos a serem tolerantes com aqueles que, em nome dEle, expeliam demônios (vv. 49-50), mas, logo depois, vê uma aldeia samaritana intolerante impedir-lhe a passagem e estadia (vv. 52-53). Ele havia se dado conta de que chegara a hora de enfrentar a sua missão e ir para Jerusalém. A sua determinação era tão visível que até se lhe mudou o semblante (v. 51). Os seus dias estavam se completando. Na narrativa de Lucas, Jesus só entrará em Jerusalém no fim do capítulo 19, depois de jantar com Zaqueu em Jericó. Provavelmente, os acontecimentos dos capítulos entre o 9 e o 19 aconteceram de forma muito rápida, além das parábolas de Jesus tomarem boa parte deles, mas o caminho de Jesus ao Gólgota já estava definitivamente traçado.

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