segunda-feira, 31 de março de 2014

Ortodoxos programam concílio do Oriente cristão para 2016

Desde o Segundo Concílio de Niceia no ano 787, os patriarcas das igrejas ortodoxas não se reúnem. Tudo indica que, 1.229 anos depois, eles voltaram a se encontrar para decidir os rumos do ramo oriental do cristianismo. A notícia vem pela Voz da Rússia:

Concílio Ecumênico Ortodoxo se realizará em 2016

Se houver a graça e a vontade divinas, um Concílio Ecumênico Ortodoxo poderá se realizar em 2016 – foi assim que deliberaram os chefes de 13 Igrejas Ortodoxas numa reunião, mantida em Istambul por iniciativa do Patriarca de Constantinopla, Bartolomeu, e dedicada a um vasto leque de questões importantes atuais.

O fato de ter sido marcada já uma data e um lugar aproximados do evento constitui um enorme avanço. Uma decisão dessas foi esperada durante mais de 50 anos. Parece não ser grande coisa em relação a um outro fato de que todos os Patriarcas ortodoxos não se reuniram desde a altura do Segundo Concílio de Niceia em 787. Por outro lado, já se tornou claro ser impossível dar solução a uma série de problemas pendentes sem que seja convocado um Concílio dessa envergadura. Por isso, o próximo Concílio será, sem embargo, um evento de grande porte, disse o Patriarca de Moscou e de toda a Rússia, Kirill:
“A história eclesiástica desconhece eventos do gênero. É extremamente importante que as decisões nesse Concílio sejam tomadas por via consensual, ou seja, por um acordo geral. A via de votação será excluída. Mas um documento aprovado pelos chefes de Igrejas realça que “cada Igreja local terá um voto”. Isto significa que a Igreja Ortodoxa, no seu conjunto, não poderá sustentar dois pontos de vista diferentes. A opinião de Igrejas locais deverá ser formulada de modo a poder expressar os ânimos dos bispos, sacerdotes e do rebanho de Deus. Isso tem sido sobejamente importante para evitar controvérsias e cisões. O Concílio deverá contribuir para uma maior coesão e reconciliação perante um vasto espectro de desafios contemporâneos.”
No início dos anos 60, altura em que surgiu a ideia de convocar tal fórum representativo, ao exame de Patriarcas foram submetidos cerca de 100 temas. Com o passar do tempo, o seu número se reduziu a dez, requerendo cada uma votação à parte. Ora, até hoje, se conseguiu consenso em relação a oito temas debatidos e já votados. Isto aponta para a necessidade de realizar um Concílio Ortodoxo a fim de resolver várias questões relacionadas com a situação de diásporas de crentes nos países não ortodoxos, a uniformização de calendário eclesiástico e das regras relativas ao jejum, a atitude da Igreja Ortodoxa para com os fiéis de outras confissões cristãs. Foi decidido ainda que cada Igreja local seria representada por 24 arciprestes com o seu respectivo Patriarca à frente. Diga-se de passagem que o princípio de consenso, escolhido com um método de realização do Concílio, foi proposto pela Igreja Russa, adianta o metropolita Illarion:
“É evidente que a presidência será assumida pelo Patriarca de Constantinopla, “primeiro entre os iguais”, devendo ele se sentar à mesa no meio dos chefes de outras Igrejas locais. Deste modo, o Concílio não será semelhante aos concílios católicos em que a mesa de presidência está ocupada por Papa, enquanto os bispos se encontram sentados em filas na sala de reuniões. Assim, será posta em prática a doutrina ortodoxa, segundo a qual as Igrejas locais, iguais em direitos, são dirigidas por Patriarcas e metropolitas também iguais pela sua dignidade.”
Em resultado da recente reunião em Istambul não foi apenas aprovado um regimento do futuro Concílio. Os chefes de Igrejas adotaram um Apelo em defesa de cristãos na Síria e no Oriente Médio. Também foi aprovada uma declaração sobre a crise política na Ucrânia. Segundo ressaltou o Patriarca russo Kirill, este documento contém três elementos importantes:
“Primeiro, é um apelo à paz e à reconciliação. O segundo ponto adverte contra o emprego da força, ou seja, uma ocupação forçada de mosteiros e templos. O terceiro diz respeito aos crentes dissidentes que são convidados a tomar juízo e se reintegrar na Igreja Ortodoxa Russa.”
Trata-se, pois, de um princípio canônico visando a unidade eclesiástica na Ucrânia, salientou o Patriarca Kirill.



domingo, 30 de março de 2014

Ai, que vida boa!


Síndrome de Apert é uma doença genética que gera deformidades no crânio da criança, e carrega um estigma estético e social difícil de suportar. Entretanto, Gregorio Duvivier conta o que aprendeu com seu irmão de 33 anos de idade, portador da síndrome, em emocionante coluna publicada na Folha de S. Paulo de 17/03/14:

Meu irmão

Meu irmão faz aniversário no dia 19 — depois de amanhã, se você estiver lendo essa coluna no dia em que ela saiu. Cinco anos mais velho que eu, João faz 33 anos. Mas parece que sempre teve 33 anos, desde que nasceu.

Quando era pequeno, João gostava de brincar de trânsito. A brincadeira consistia em colocar os carrinhos enfileirados e fazer bibi e fonfon por horas e horas. Num dia muito animado, eventualmente, ele aparecia com uma ambulância — ió-ió-ió. Depois que ela passava, os carros retomavam suas posições e tudo voltava ao normal. Bibi. Fonfon.

Na ansiedade característica de uma criança de três anos, eu vinha com o carro a mil por hora, tentava uma ultrapassagem perigosa que gerasse uma batida cinematográfica e — Plouft! Cataplouft! E o João, com a calma de sempre, dizia: não agita. E voltava ao trânsito seu de cada dia. Feliz da vida.

João tem uma síndrome raríssima, cujo nome eu aprendi pequenininho, pra explicar pros meus amigos: ele tem síndrome de Apert. A síndrome é barra pesada e gera uma série de complicações que eu não vou enumerar aqui. Basta dizer que volta e meia outras crianças apontavam para ele e diziam coisas terríveis.

Uma vez, numa lanchonete, crianças endiabradas ficaram dando voltas em torno dele e gritando — Monstro! Monstro! Minha mãe pediu pra elas pararem. Nada. Sem saber o que fazer, derramou um copo cheio de Coca-Cola na cabeça delas. Elas saíram correndo. João teve uma crise de riso.

Depois, toda vez que uma criança ameaçava praticar um bullying com o João, minha Coca-Cola... E o João morria de rir.

João, hoje, é uma pessoa feliz. Até hoje adora um trânsito. Passa o dia no ônibus, pra lá e pra cá, muitas vezes sem destino — o destino é a viagem. Conhece todos os trajetos e todos os motoristas. E os motoristas adoram ele, que adora conversar muito mais que o indispensável. E adora a vida.

Uma vez, depois de uma cirurgia cranio-facial em que poderia ter morrido, João tomou um banho, se sentou na cama do hospital e disse para a minha avó: ai, que vida boa.

Viva o João. E viva a minha mãe, que além de jogar Coca-Cola nos problemas da vida, está contando a história do João num livro, que vai sair pela Companhia das Letras.

Hoje, quando o carro — e a vida— não andam e dá vontade de quebrar tudo com um taco de beisebol, lembro do João, no chão de casa: "não agita". O mundo, paradinho, tem a maior graça. Ai, que vida boa.



sábado, 29 de março de 2014

Quando homens viravam pedras


Nunca diga que tudo o que você já sabe tudo o que precisava saber sobre o macabro e a morte. Sempre pode surgir uma surpresa, como a matéria abaixo do Gizmodo:

A ciência perdida da petrificação humana

O professor Girolamo Segato de Florença, Itália, inventou um processo para preservar restos humanos em um estado de petrificação. No entanto, o medo e a paranoia destruíram suas pesquisas, deixando apenas um pequeno número de relíquias sombrias – e uma peça mórbida de mobília – como prova de seu processo milagroso.

Nascido em 1792, Segato criou interesse precoce em ciência e química, o que o inspirou e definiu por toda a sua vida. Seu foco no processo de petrificação começou após uma visita ao Egito aos 26 anos, quando ele ficou fascinado pelas múmias do país. Após retornar à Europa e brigar com sua cônjuge, Segato começou a desenvolver novos métodos de mumificação.

O cientista pioneiro começou com preservação animal, e depois criou seu próprio método para conservar humanos, que envolvia um misterioso processo de mineralização para transformar os restos mortais em algo duro feito mármore.

A reação ao seu trabalho foi mista. Alguns se impressionaram com a transformação única que Segato conseguia fazer em cadáveres, enquanto outros associavam seu trabalho a um misticismo egípcio. Após invadirem seu laboratório e aparentemente fuçarem em seus papéis, Segado começou a temer que seu trabalho seria roubado, e acabou destruindo suas pesquisas e anotações.

Ele morreu em 1836 e manteve o segredo do processo para si próprio. Ele foi enterrado em um cemitério em Florença com o seguinte epitáfio: “Aqui jaz Girolamo Segato, que estaria intacto e petrificado, se o segredo de sua arte não tivesse morrido com ele.”

Atualmente, as únicas provas remanescentes do seu trabalho consistem em algumas relíquias perturbadoras. Mantidas pelo Museu Anatômico da Universidade de Florença, o trabalho de Segato sobrevive na forma de partes separadas do corpo humano como uma cabeça feminina decepada e um tórax feminino separado, ambos transformados em pedra eterna. Há também a Mesa Segato (acima), uma mesa oval de madeira com o que parecem ser azulejos embutidos – mas na verdade são pedaços de ossos, músculos e vísceras petrificadas.

Pesquisadores modernos desenvolveram métodos alternativos de petrificação de restos mortais humanos, mas mesmo após múltiplos testes nas amostras remanescentes, ninguém foi capaz de explicar o processo de Segato. Se ele era um cientista maluco, mágico egípcio, ou algum híbrido taumatúrgico, isso tanto faz: as pedras humanas de Segato continuam fazendo o mundo parecer um lugar mais estranho, mesmo muito depois de alguns de nós termos deixado esse mundo.



sexta-feira, 28 de março de 2014

Maioria da população acha que mulher com roupa provocante "merece" ser atacada

Lamentavelmente, é muito comum que, nos casos de abuso sexual de todos os tipos, o abusador tenda a colocar a culpa na vítima, e mais assustador ainda é perceber que esta é uma opinião majoritária na população, como se depreende da notícia abaixo, do UOL, que mostra que a sociedade brasileira é muito mais machista e perversa do que poderíamos (ou gostaríamos de) imaginar.

O horror, ah, o horror:


(veja NOTA no final da matéria, atualizada em 04/04/14)


Maioria diz que mulher com roupa curta 'merece' ser atacada, diz Ipea

Wellington Ramalhoso

Um estudo divulgado nesta quinta-feira (27) pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) revela que a maioria da população brasileira acredita que "mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas" e que "se as mulheres soubessem como se comportar, haveria menos estupros".

A pesquisa do Sistema de Indicadores de Percepção Social, do Ipea, sobre a tolerância social à violência contra as mulheres, entrevistou 3.810 pessoas em todas as unidades da federação durante os meses de maio e junho de 2013, sendo que as próprias mulheres representaram 66,5% do universo de entrevistados.

O estudo é divulgado logo após a ocorrência de casos de violência contra mulheres no transporte público em São Paulo. No Pará, a Justiça passou a adotar em Belém um dispositivo conhecido como Botão do Pânico para que as mulheres denunciem casos de violência.

Na pesquisa do Ipea, os entrevistados foram questionados se concordavam ou não com frases sobre o tema. Nada menos que 65% concordaram que a mulher que usa roupa que mostra o corpo merece ser atacada -- 42,7% concordaram totalmente, e 22,4%, parcialmente.

Em relação à frase "se as mulheres soubessem como se comportar, haveria menos estupros", 35,3% disseram estar totalmente de acordo e 23,2% afirmaram concordar parcialmente.

"Por trás da afirmação, está a noção de que os homens não conseguem controlar seus apetites sexuais; então, as mulheres, que os provocam, é que deveriam saber se comportar, e não os estupradores", afirmam os pesquisadores no relatório do estudo.

O resultado da pesquisa é visto com preocupação pela assistente social Sonia Coelho, integrante da equipe técnica da Sempreviva Organização Feminista (SOF), que tem sede em São Paulo. Para ela, a sociedade trata como natural a violência contra a mulher, mas não poderia culpar a própria vítima em casos de estupro.

A maioria – 65% -- discorda, porém, da frase "a mulher casada deve satisfazer o marido na cama, mesmo quando não tem vontade". Os pesquisadores dizem, no entanto, que o fato de que 27% dos entrevistados concordarem ao menos parcialmente com a frase traz à tona "a delicada questão do estupro no âmbito do casamento".



Violência doméstica é condenada

Por outro lado, a pesquisa mostra que a maior parte dos entrevistados condena a violência doméstica contra a mulher. O índice de concordância com a frase "Homem que bate na esposa tem que ir para a cadeia" alcança os 91%.

Também são altas as taxas de concordância com frases que representam decisões que a mulher deve tomar caso seja agredida pelo marido. Chega a 85% a proporção dos que entendem que o casal deve se separar se houver violência. E passa de 82% o índice dos que discordam da frase "A mulher que apanha em casa deve ficar quieta para não prejudicar os filhos".

A pesquisa revela, entretanto, que ainda há certa dubiedade na avaliação do caráter público ou privado dos casos de violência doméstica. Beira, por exemplo, os 82% a taxa dos que estão de acordo com a frase "O que acontece com o casal em casa não interessa aos outros".

"O primado do homem sobre a mulher ainda é bastante aceito pela população, mas a violência física não é tolerada", afirmam os responsáveis pelo estudo.

"Não há características populacionais que determinem intensamente uma postura mais tolerante à violência, mas os primeiros resultados apontam que morar em metrópoles, nas regiões mais ricas do país, Sul e Sudeste, ter escolaridade mais alta e ser mais jovem são atributos que reforçam a probabilidade de uma adesão a valores mais igualitários, de respeito à diversidade, e de uma postura mais intolerante em relação à violência contra as mulheres", dizem os pesquisadores do Ipea.

Para eles, é necessário investir em educação e punir os agressores para diminuir a violência contra a mulher.





Nós aqui do blog, particularmente, preferimos a seguinte estatística:





NOTA:

Em nota divulgada no dia 04/04/14, o IPEA informou que errou nas estatísticas apresentadas, e que o número de brasileiros que defendem a ideia de que uma mulher com roupas provocantes "merece" ser atacada é de 26% e não 65%, como havia informado anteriormente. Os dados corretos são o do gráfico abaixo:






quinta-feira, 27 de março de 2014

Papa Francisco recebe Barack Obama no Vaticano


Tudo bem que a foto acima deve registrar a protocolar troca de presentes diplomáticos entre os líderes, ainda que não se saiba exatamente por quê os dois indivíduos superpoderosos acima estão rindo, mas hoje, 27/03/14, foi o dia em que o papa Francisco recebeu o presidente americano Barack Obama para uma reunião de trabalho no Vaticano.

Dizem as poucas testemunhas presentes ao encontro que assim que apertou as mãos do papa na cerimônia de boas vindas, Obama teria dito que "é maravilhoso conhecê-lo", enquanto o pontífice teria se limitado a um "obrigado" enquanto sorria, talvez - cá entre nós - se lembrando que há pouco mais de um ano era o cardeal de Buenos Aires que jamais teria esperado se avistar um dia com o presidente da superpotência mundial.

Ainda segundo as mesmas fontes, Barack Obama disse que, mesmo que tenha discordâncias pontuais com o papa em várias questões, Francisco o anima a ter um olhar com maior preocupação quanto aos pobres do mundo, que são diretamente afetados pelas decisões dos países mais ricos.

A conversa pública durou meia hora e, logo em seguida, os dois mandatários se reuniram em privado para mais 52 minutos de diálogo não tão tranquilo assim.

Entre as questões controversas com o Vaticano, a mais importante seria o tema do aborto, que causa profundo desconforto entre as autoridades episcopais americanas tendo em vista a possibilidade do plano de saúde pública implantado por Obama, popularmente conhecido como Obamacare, vir a incentivar e facilitar ainda mais a interrupção voluntária da gravidez nos Estados Unidos.

Com a visita desta quinta-feira, esta é a nona vez que um presidente norteamericano visita o Vaticano, sendo que o próprio Barack Obama havia sido o oitavo, quando visitou o então papa Bento XVI em 2009.

"Esta foi boa, Chico. Conta outra, vai!"




quarta-feira, 26 de março de 2014

A demolição das antigas igrejas de São Paulo (SP)

Igrejas Demolidas do Centro Velho – Fotomontagem de Gilberto Calixto RiosNota: a data ao lado dos nomes das igrejas, é o ano de sua abertura/inauguração.

Trabalho brilhante de Gilberto Calixto Rios divulgado pelo excelente blog Sampa Histórica em 20/05/13:

As igrejas demolidas do Centro Velho

A partir de 1880, logo depois do governo de João Teodoro (1872-1874), que, como se diz, promoveu a “segunda fundação de São Paulo”, tal as modificações que fez na cidade, começou-se a viver um “frenesi” de modernidade e, a renegar toda a vida anterior de “cidade pobre”. Passou-se então a ter vergonha de seu passado colonial, e de sua provincialidade, principalmente com a chegada dos estilos franceses e alemães, trazidas pelos novos ricos, os chamados “barões do café”, que nessa época começaram a construir suas mansões na capital, nos recentes “bairros planejados”.

Uma das consequências desse modo de pensar, começou a ser sentida principalmente nas antigas igrejas do centro, como podemos observar no trecho de uma carta da Curia para vigário da igreja da Consolação, a respeito da remodelação daquele templo. O texto expõe bem esse espírito da época: “… havemos por bem de conceder-lhe faculdade para mandar demolir a actual igreja matriz da parochia afim de que no mesmo lugar se possa erigir uma nova matriz que possa CORRESPONDER AOS BELOS EDIFÍCIOS QUE ORA EXISTEM NESTA CAPITAL” (D. Duarte Leopoldo e Silva, Arcebispo metropolitano, ao vigário da Igreja da Consolação, 15 de agosto de 1909).”

Nesta onda “modernizadora”, a primeira a cair, foi a Igreja da Misericórdia em 1884, seguida de outras onze igrejas, mostradas nas fotos acima. A última que foi “tombada”, foi a igreja de Nossa Senhora dos Remédios, em 1940, já que impedia o livre fluxo dos automóveis na nova praça João Mendes, de acordo com o “Plano de Avenidas” do então Prefeito Francisco Prestes Maia. As únicas (no centro) que escaparam dessa derrubada em massa, foram a Igreja da Boa Morte, de 1810, a da Ordem Terceira dos Carmelitas (Igreja do Carmo), de 1648, as duas Igrejas de São Francisco, de 1647, a Igreja de São Gonçalo na Praça João Mendes de 1840 e a Igreja dos Aflitos, de 1779 na Liberdade.

As motivações foram várias: umas porque estavam deterioradas demais, outras para serem substituídas por templos “mais modernos”, outras por necessidade de ampliação das vias de tráfego, e por aí afora. O fato é que São Paulo perdeu um patrimônio histórico inestimável, apenas para ser incluída no âmbito das cidade “modernas” (??).

Matéria e Imagem de autoria do amigo Gilberto Calixto Rios


Nossa nota: a Igreja de Anchieta que hoje existe no Pátio do Colégio é, na verdade, uma réplica do templo anterior que existia naquele lugar (demolido em 1896), que, por sua vez, havia sido a terceira igreja de Anchieta construída no local. A atual igreja (inaugurada em 1979) é, portanto, o quarto templo do conjunto arquitetônico que representa a fundação de São Paulo. Do primeiro templo, nada restou. Do segundo, apenas o muro de taipa e do terceiro, os alicerces, que estão ali à mostra do público que visita o Museu Anchieta.



terça-feira, 25 de março de 2014

Ator James Rebhorn, luterano, escreveu seu próprio obituário

Luterano por toda uma vida, segundo ele mesmo disse, o ator James (Jim) Robert Rebhorn escreveu o seu próprio obituário, disponibilizado pela St. Paul Lutheran Church, de Jersey City (NJ), nos Estados Unidos.

Assim pelo nome é provável que muita gente não o associe ao ator que incorporou vários papéis de sucesso no cinema e na televisão ao longo das últimas décadas, ainda que geralmente em papéis secundários, mas de grande importância devido ao talento que ele sabia emprestar aos personagens.

Vítima de um melanoma, o ator morreu ao lado de sua família no dia 21 de março de 2014. Um grande ator guardou sua fé e volta para casa depois de 65 anos entre nós.

Teve tempo, entretanto, de escrever o seu próprio obituário diante da morte que se aproximava, e você pode lê-lo abaixo:
James Rebhorn Robert nasceu no dia 1º de setembro de 1948, na Filadélfia, PA. Sua mãe, Frances Ardell Rebhorn, nascida Hoch, o amava muito e apoiou em todos os seus sonhos. Ela lhe ensinou o valor das boas maneiras e da cortesia, e que a hospitalidade é algo que não pode ser desprezado. Seu pai, James Rebhorn Harry, não era menos dedicado a ele. Com ele, Jim aprendeu que não há desculpa para fazer nada mal feito. Um trabalho bem feito raramente leva mais ou menos tempo do que um trabalho mal feito. Legaram-lhe a sua fé e sabiamente o encorajaram a não se afastar de Deus.

Ele deixa sua irmã, Barbara Janice Galbraith, de Myrtle Beach, SC. Ela era sua amiga, sua confidente, e, mais frequentemente do que qualquer um deles gostaria de admitir, sua ponte sobre águas turbulentas.

Ele também deixa sua esposa, Rebecca Fulton Linn, e suas duas filhas, Emma Rebecca Rebhorn e Hannah Linn Rebhorn. Elas foram a âncora de sua vida e lhe deram a liberdade de vivê-la. Sem elas, sempre no centro de seu ser, sua vida teria sido pouco mais do que uma fumacinha. Rebecca o amava mesmo com todas as falhas dele, e nela o conceito de amor interminável pôde encontrar seu melhor exemplo.

Suas filhas o fizeram imensamente feliz. Sua dedicação para melhorar a nossa espécie e fazer do mundo um lugar melhor lhe deu esperança para o futuro. Elas lidam com a dor de forma diferente, e cada um deve administrá-la como bem entendere. Ele espera, entretanto, que elas lamentem a sua morte apenas enquanto for necessário. Elas têm muito bom trabalho a fazer, e devem se ocupar fazendo isso. O tempo está voando. Deixa também seu genro Ben. Jim amava Ben, que era como um filho para Jim, especialmente nesses últimos meses.

Jim deixa ainda seus tios Jean, Dorothy e Florence, vários primos e suas respectivas famílias, e muitos amigos devotados. Ele amava a todos, e ele sabe que eles o amavam.

Jim se graduou na Universidade de Wittenberg e fez seu mestrado na Columbia. Ele era um membro da Lambda Chi Alpha Zeta Nu 624, um velho luterano, e um membro de longa data, tanto da AMC e ACLU.

Jim teve a sorte de ganhar a vida fazendo o que amava. Ele era um ator profissional. Seus sindicatos estavam sempre ao seu lado, e ele permanecerá para sempre grato pelos benefícios que ele teve como resultado da luta sindical. Sem seus professores excepcionais e a representação dos melhores agentes no negócio, ele não teria tido muito sucesso na carreira. Ele era um homem de sorte em todos os sentidos . Ass.: Jim Rebhorn,


15.500 fetos abortados foram incinerados a fim de gerar energia para hospitais britânicos

O horror, ah, o horror!

O jornal britânico The Telegraph trouxe ontem, 24/03/14, a assustadora notícia de que 15.500 fetos abortados (aí incluídos tanto os naturais como os provocados) foram incinerados como lixo hospitalar, sendo que boa parte deles serviu para gerar energia para 25 hospitais listados pelo National Health Service (NHS) do Reino Unido, uma espécie (mal comparando) de SUS britânico, que coordena os serviços de saúde pública no país.

A denúncia completa foi ao ar ontem à noite no programa Dispatches da TV Channel 4, mas o Telegraph adiantou alguns fatos estarrecedores.

Ao contrário do que você possa pensar, as estatísticas macabras consideram apenas os dois últimos anos e dão conta de que, por exemplo, o hospital Addenbrooke de Cambridge incinerou 797 fetos com menos de 13 semanas de gestação, enquanto o de Ipswich queimou 1.101 , sendo que - em ambos os casos - a finalidade foi produzir energia para ambos os nosocômios.

Ainda segundo a denúncia, os pais dos fetos abortados, sobretudo os espontâneos (casos de interrupção involuntária da gravidez), não teriam sido consultados a respeito do destino que seria dado aos restos mortais.

É de se imaginar que as sequelas emocionais em ambos os casos (abortos provocados e espontâneos) sejam difíceis de suportar, e o destino dos fetos passe a ser - infelizmente - secundário diante da culpa e da dor, mas isso não autoriza que deles se disponha sem o mínimo de consideração.

As autoridades sanitárias britânicas alegam que, apesar do horror retratado na notícia acima, a ampla maioria dos hospitais do Reino Unido segue os procedimentos recomendados de consultar o Human Tissue Authority, que é a entidade responsável por controlar o destino de fetos e cadáveres quanto ao transporte, descarte e encaminhamento a pesquisas científicas e transplantes, dando o tratamento adequado a cada caso.

A sociedade britânica acordou nesta terça-feira, 25/03/14, tendo que discutir, a partir de agora, maneiras de coibir essa prática macabra para dar fim ao horror. 

Talvez seja tarde demais.



segunda-feira, 24 de março de 2014

Quando um rio renasce no deserto de Israel


Localizado em Bersebá (בְּאֵר שֶׁבַע), em pleno deserto do Negueb (ou Negev), no sul de Israel, rio Zin não é, digamos, exatamente um rio na acepção usual do termo, já que tudo o que se vê é uma ilusão hídrica num leito seco, já que água propriamente dita poucas vezes foi vista por ali ao longo da história da Terra Santa.

Na semana passada, depois de anos de seca em Israel, chuvas torrenciais que caíram nas montanhas próximas fizeram com que o rio Zin voltasse a correr belo e caudaloso, para delírio dos habitantes locais, conforme você pode ver no vídeo abaixo.

Em momentos como esse, é inevitável a associação do ocorrido com textos proféticos, sobretudo de Isaías:

Isaías 35:4 Dizei aos turbados de coração: Sede fortes, não temais; eis o vosso Deus! com vingança virá, sim com a recompensa de Deus; ele virá, e vos salvará.
5 Então os olhos dos cegos serão abertos, e os ouvidos dos surdos se desimpedirão.
6 Então o coxo saltará como o cervo, e a língua do mudo cantará de alegria; porque águas arrebentarão no deserto e ribeiros no ermo.
7 E a miragem tornar-se-á em lago, e a terra sedenta em mananciais de águas; e nas habitações em que jaziam os chacais haverá erva com canas e juncos.
8 E ali haverá uma estrada, um caminho que se chamará o caminho santo; o imundo não passará por ele, mas será para os remidos. Os caminhantes, até mesmo os loucos, nele não errarão.
9 Ali não haverá leão, nem animal feroz subirá por ele, nem se achará nele; mas os redimidos andarão por ele.
10 E os resgatados do Senhor voltarão; e virão a Sião com júbilo, e alegria eterna haverá sobre as suas cabeças; gozo e alegria alcançarão, e deles fugirá a tristeza e o gemido.

Isaías 43:18 Não vos lembreis das coisas passadas, nem considereis as antigas.
19 Eis que faço uma coisa nova; agora está saindo à luz; porventura não a percebeis? eis que porei um caminho no deserto, e rios no ermo.
20 Os animais do campo me honrarão, os chacais e os avestruzes; porque porei águas no deserto, e rios no ermo, para dar de beber ao meu povo, ao meu escolhido,
21 esse povo que formei para mim, para que publicasse o meu louvor.

Isaías 58:9 Então clamarás, e o Senhor te responderá; gritarás, e ele dirá: Eis-me aqui. Se tirares do meio de ti o jugo, o estender do dedo, e o falar iniquamente;
10 e se abrires a tua alma ao faminto, e fartares o aflito; então a tua luz nascerá nas trevas, e a tua escuridão será como o meio dia.
11 O Senhor te guiará continuamente, e te fartará até em lugares áridos, e fortificará os teus ossos; serás como um jardim regado, e como um manancial, cujas águas nunca falham.




domingo, 23 de março de 2014

Hannah Arendt e a banalidade do mal

Como o nosso leitor mais assíduo já deve ter percebido, Hannah Arendt (1906-1975) é figurinha carimbada do nosso blog. Vira-e-mexe, a filósofa alemã de origem judaica tem algum artigo sobre a sua vida e obra publicado aqui.

Já tivemos oportunidade, por exemplo, de resenhar seu livro "Eichmann em Jerusalém" bem como o filme que o inspirou, "Hannah Arendt" (2012).

A opinião da vez vem de Saul Kirschbaum, pesquisador brasileiro com Doutorado em Letras, Literatura e Cultura Judaicas pela Universidade de São Paulo (entre outros títulos igualmente brilhantes), em entrevista ao IHU:

A banalidade das engrenagens da máquina nazista. Entrevista especial com Saul Kirschbaum

“Eu não diria que ‘o nazismo legitimou a irracionalidade e a barbárie’, mas sim que mostrou que, nestas circunstâncias, os homens parecem propensos a abrir mão de sua condição de indivíduos, a afastar-se da realidade, a deixar de pensar”, avalia o pesquisador.

A Maldade foi um dos grandes temas sobre os quais a filósofa Hannah Arendt se debruçou. Se anteriormente o Mal era encarado, do ponto de vista religioso, como algo demoníaco, capaz de corromper os homens e explorar suas fraquezas morais, a partir do julgamento de Adolf Eichmann, no entanto, a pensadora passa a refletir sobre o tipo de maldade que se estabeleceu durante o regime nazista. Os atos eram monstruosos, mas para Arendt, aquele agente pequeno, adoentado e, acima de tudo, superficial não transparecia o mal diabólico tão alardeado.

“Se é assim, a barbárie não é um atributo exclusivo de ‘bárbaros’. Pode perfeitamente irromper entre povos muito civilizados”, esclarece Saul Kirschbaum, pesquisador da cultura hebraica. “Basta que ‘a raça eleita’ ou ‘a religião verdadeira’, ou qualquer outra construção fundamentalista se sinta ameaçada”. É o que ocorreu com o desmoronamento da Iugoslávia e, segundo Kirschbaum, o que parece estar acontecendo na esteira da Primavera Árabe, “com as tentativas de grupos fundamentalistas de obter o poder no Egito e na Síria, para instalar estados de estrita e excludente observância religiosa”.

Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, o pesquisador destaca a evolução do pensamento de Hannah Arendt que perpassa todas as suas obras. Chama atenção também para o fato de que, mesmo hoje, 50 anos depois, a filósofa ainda não foi totalmente compreendida. E destaca: “Não é dizer, claro, que não houvesse, entre os nazistas, o mal demoníaco, monstruoso; mas o que preocupa é que, para o funcionamento da máquina nazista, para a irrupção da barbárie, bastam agentes comuns, simples funcionários de carreira”.

Saul Kirschbaum possui graduação em Engenharia Elétrica pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, mestrado e doutorado em Língua Hebraica, Literatura e Cultura Judaica pela Universidade de São Paulo – USP e pós-doutorado pela Unicamp. É autor de Viagens de um caminhante solitário: Ética e estética na obra de Samuel Rawet (São Paulo: Humanitas, 2011), Transliteração do Hebraico para Leitores Brasileiros (São Paulo: Ateliê Editorial, 2009) e A presença judaica na Idade Média Ibérica: a poesia laica e o idioma hebraico (São Paulo: Edições Targumim, 2008). Foi também organizador de Dez Ensaios para Samuel Rawet (Brasília: LGE Editora, 2007) e de Ensaios sobre literatura israelense contemporânea (São Paulo: Humanitas, 2011).

A Programação de Páscoa do IHU deste ano terá como fio condutor a problemática do mal na contemporaneidade. A programação propõe uma abordagem transdisciplinar do tema, que toma em consideração a manifestação e o engendramento do mal em contextos sociopolíticos e culturais impulsionados pela racionalidade moderna e seus impactos na organização política da sociedade desde o último século. A inscrição para o evento pode ser feita aqui.

Nesta semana, nos dias 19 e 20, ou seja, quarta e quinta-feira, será exibido o filme Hannah Arendt de Margarethe von Trotta. O filme será comentado e debatido pelo Prof. Dr. Adriano Correia Silva - UFG. Por sua vez, Abrão Slavutzky, psicanalista, proferirá duas conferências, respectivamente às17h30min e às 19h30min, sob o título Humor e crueldade no século XX e Crueldade e condição humana. Nos dias seguintes será exibido e comentado o documentário Shoah de Claude Lanzmann.

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Por que a obra "Eichmann em Jerusalém. Um relato sobre a banalidade do mal", de Hannah Arendt, foi tão criticada pela comunidade judaica? Quais foram os principais pontos que causaram essa repercussão negativa?

Saul Kirschbaum - Como a autora explicou no “Pós-escrito”, o livro se tornou foco de controvérsia antes mesmo de sua publicação, dela vindo a participar “gente que se gabava de não ter lido o livro e prometia não o ler nunca”. Foram levantadas questões que, segundo Arendt, nada tinham a ver com o livro, ou que distorciam seriamente seu pensamento.

Foram-lhe imputadas opiniões que nunca expressara. Martin Buber [1], por exemplo, até então muito seu amigo, a acusou de não ter ahavat Israel, amor pelo povo de Israel.

A primeira delas dizia respeito à conduta do povo judeu durante os anos da Solução Final, ou seja, se os judeus podiam ou deviam ter se defendido, e envolvia conceitos como “mentalidade de gueto” e um “desejo de morte”, inconsciente, de todo o povo judeu. A autora lembra que tinha “descartado essa questão como tola e cruel, porque atestava uma fatal ignorância das condições da época”. Na verdade, ela se limitara a discutir o papel da liderança judaica, dos Conselhos Judaicos, insistindo na “diferença entre ajudar judeus a emigrar e ajudar os nazistas a deportá-los”. Em 1972, Isaiah Trunk [2] publicou Judenrat - The Jewish Councils in Eastern Europe under Nazi Occupation (Lincoln: University of Nebraska Press, 1996) [3], leitura indispensável para quem quer entender melhor esse assunto.

Outra questão importante tinha a ver com o subtítulo do livro, o conceito novo de “banalidade do mal”. Isto foi entendido pelos críticos como uma tentativa de inocentar Eichmann, ou substancialmente reduzir sua culpabilidade. Tenho a impressão de que, passadas cinco décadas, o que Arendt quis expressar com “banalidade do mal” ainda não foi plenamente entendido. A seu ver, Eichmann não tinha a mentalidade de um criminoso, nunca teve a intenção de fazer o mal. Seu esforço para obter progressos pessoais, típico de funcionários de carreira, “não era de forma alguma criminoso; ele certamente nunca teria matado seu superior para ficar com seu posto”. Ela atribuiu a predisposição de Eichmann “a se tornar um dos grandes criminosos desta época” a “pura irreflexão”, não a “qualquer profundidade diabólica ou demoníaca”.

Por fim, acho que importa pôr em evidência a crítica ao interesse da autora em investigar o tipo de pessoa que era Eichmann, que envolve a questão, ainda atual, de se “alguém que não estava presente tem o direito de ‘julgar’ o passado”. Ou seja, que falar sobre o Holocausto seria privilégio dos sobreviventes. Para alguns desses críticos, “não deviam ter deixado que ele [Eichmann] falasse nada — ou seja, que o julgamento fosse conduzido sem defesa”.

IHU On-Line - Qual foi o impacto da afirmação de Arendt de que Eichmann era um homem comum, um sujeito qualquer, um burocrata que se autoproclamava cumpridor de ordens, e não um monstro, um psicopata que se comprazia com sua tarefa de organizar a logística dos judeus para os campos de extermínio?

Saul Kirschbaum - Esta afirmação, a meu ver, vai de encontro a uma corrente de opinião amplamente difundida, segundo a qual o nazismo foi o resultado da tomada do poder na Alemanha por um bando de loucos assassinos, monstros psicopatas. Se o nazismo foi operado por homens comuns, burocratas cumpridores de ordens, então pode se pensar que não se tratou de um evento singular, uma interrupção anômala do fluxo histórico — que no geral vai na direção do progresso —, mas de uma possibilidade inerente à civilização ocidental, ou talvez à própria espécie humana. A extensão dos crimes nazistas, então, seria resultado da maior disponibilidade de meios técnicos de destruição em massa.

IHU On-Line - Em que medida o conceito de banalidade do mal arendtiano ajuda na reflexão sobre a relação entre os totalitarismos, a burocracia e a impessoalidade num mundo marcado pela técnica?

Saul Kirschbaum - A meu ver, esta é a grande contribuição de Hannah Arendt. Segundo ela, os totalitarismos implementam “o governo de Ninguém”. Em suas palavras, “a essência do governo totalitário, e talvez a natureza de toda burocracia, seja transformar homens em funcionários e meras engrenagens, assim os desumanizando”. Então, qualquer forma de totalitarismo, seja qual for a ideologia que o alimenta, qualquer forma de fundamentalismo, de “posse da verdade”, deve ser vista como potencialmente desumanizadora, tendente a transformar homens em funcionários, meras engrenagens. Estas seriam as condições necessárias e suficientes para a autoanulação do indivíduo e para a irrupção do mal “banal”.

IHU On-Line - Em que aspectos a obra dessa filósofa nos alerta para a irrupção da barbárie, que pode acontecer em qualquer lugar e entre quaisquer povos?

Saul Kirschbaum - Em 1971, ao escrever O pensar, primeira parte de A Vida do Espírito (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009), Hannah Arendt lembrava que, assistindo ao julgamento de Eichmann, não tinha confirmado “nossa tradição de pensamento — literário, teológico ou filosófico — sobre o fenômeno do mal”. Ou seja, que o mal “é algo demoníaco”, que “os homens maus agem por inveja”, ou “por fraqueza”, ou “pelo ódio poderoso que a maldade sente pela pura bondade”, ou “pela cobiça”. Ao contrário, observou que a “superficialidade do agente tornava impossível retraçar o mal incontestável de seus atos, em suas raízes ou motivos, em quaisquer níveis mais profundos. Os atos eram monstruosos, mas o agente — ao menos aquele que estava agora em julgamento — era bastante comum, banal, e não demoníaco ou monstruoso”. Se é assim, a barbárie não é um atributo exclusivo de “bárbaros”. Pode perfeitamente irromper entre povos muito civilizados, basta que “a raça eleita” ou “a religião verdadeira”, ou qualquer outra construção fundamentalista se sinta ameaçada. O esclarecimento, o progresso da razão, não é suficiente para impedir a irrupção do ódio interétnico ou interconfessional.

Não é dizer, claro, que não houvesse, entre os nazistas, o mal demoníaco, monstruoso; mas o que preocupa é que, para o funcionamento da máquina nazista, para a irrupção da barbárie, bastam agentes comuns, simples funcionários de carreira.

IHU On-Line - Que nexos podem ser estabelecidos entre a irrupção do mal na Shoá e a importância da categoria cristã da memória? Isto é, da importância em se lembrar o que houve para que uma segunda injustiça não seja imputada às vítimas?

Saul Kirschbaum - A importância dessa questão não passou despercebida para Hannah Arendt. No “pós-escrito”, buscando analisar o sentido do julgamento de Eichmann, ela manifesta sua opinião de que o julgamento devia acontecer no interesse da justiça e nada mais. E lembra que ficou “contente ao ver que a sentença citava Grotius [4], que explica [...] que a punição é necessária ‘para defender a honra ou a autoridade daquele que foi afetado pelo crime, de forma a impedir que a falta de punição possa causar sua desonra’”. A indiferença, que acompanha a desumanização dos indivíduos, sua transformação em funcionários, em meras engrenagens, conduz à impunidade dos agressores, a qual imputa às vítimas uma segunda injustiça — a presunção de sua culpabilidade.

Essa postura se manifesta claramente no comentário de Jean Améry [5] em Além do crime e castigo - tentativas de superação (Rio de Janeiro: Contraponto, 2013): “Nem o grito de ‘rebenta!’, nem as suspeitas que se comentavam pela rua, ou seja, que os judeus deviam ter cometido algo grave, pois em caso contrário não seriam tratados tão severamente, eram alucinações histéricas. ‘Se estão sendo detidos é porque algo devem ter tramado’, conjecturou em Viena uma operária social-democrata.”

IHU On-Line - Em que sentido a Shoá e a peculiaridade que o mal assumiu nesse episódio são emblemáticas para compreendermos a política do nosso tempo?

Saul Kirschbaum - Voltando ao julgamento de Eichmann, a autora sugeriu que a peculiaridade do episódio nazista não é o genocídio, “pela simples razão de que os massacres de povos inteiros não são sem precedentes”. O tipo de crime de que se tratava poderia ser melhor descrito pela expressão “massacre administrativo”, que “tem a virtude de dissipar a suposição de que tais atos só podem ser cometidos contra nações estrangeiras ou de raça diferente”. Assim, “esse tipo de morte pode ser dirigido contra qualquer grupo determinado, isto é, que o princípio de seleção é dependente apenas de fatores circunstanciais”. E alerta para uma potencialidade que já vem sendo explorada em obras de ficção científica: “na economia automatizada de um futuro não muito distante, os homens podem tentar exterminar todos aqueles cujo quociente de inteligência esteja abaixo de determinado nível”.

Uma das características, portanto, da política moderna é a permanente possibilidade de que um grupo, motivado por alguma ideologia racial ou religiosa ou social, possa tomar conta do aparelho do Estado e mobilizar a população para o imperativo de promover a “limpeza” étnica ou religiosa ou social.

IHU On-Line - A partir dessa constatação, em que aspectos o nazismo legitimou a irracionalidade e a barbárie?

Saul Kirschbaum - Para os nazistas, os judeus impediam a “legítima” e necessária ascensão do povo alemão, e por isso mereciam ser exterminados. Eu não diria que “o nazismo legitimou a irracionalidade e a barbárie”, mas sim que mostrou que, nestas circunstâncias, os homens parecem propensos a abrir mão de sua condição de indivíduos, a afastar-se da realidade, a deixar de pensar. Há um líder, ou partido, ou centro religioso, que pensa por eles. E assim nem percebem que estão participando ativamente na irrupção da irracionalidade e da barbárie. É o que aconteceu no desmoronamento da Iugoslávia e o que parece estar acontecendo na esteira da “primavera árabe”, com as tentativas de grupos fundamentalistas de obter o poder no Egito e na Síria, para instalar estados de estrita e excludente observância religiosa.

IHU On-Line - Em outra entrevista à IHU On-Line, o senhor menciona que persiste na Europa o ódio ao Outro, ao Estrangeiro, àqueles que tiram as vagas de trabalho dos cidadãos “autênticos”. Qual é o limite para que esse ódio se converta numa expressão objetiva do mal?

Saul Kirschbaum - A presença do estrangeiro, do imigrante — especialmente se for “ilegal” — sempre pode ser mobilizada, na forma de ódio ao Outro, como fator de consolidação da unidade da nação, ou como argumento para justificar dificuldades econômicas. Isto aconteceu na Espanha do século XV e na Alemanha da primeira metade do século XX, para citar apenas dois exemplos em que os judeus estiveram na posição de “outro”.

Manifestações de xenofobia continuam a ocorrer nos principais estados europeus. Se as circunstâncias econômicas forem favoráveis (ou seja, negativas), o ódio ao Outro pode converter-se em expressão objetiva do mal, seja na forma de “massacres administrativos”, seja na forma de rejeição de refugiados que tentam entrar ilegalmente no país, o que frequentemente tem dado origem a desastres com imensas perdas de vidas.

IHU On-Line - Nessa lógica, como analisa a questão dos refugiados e do conflito persistente entre Israel e Palestina?

Saul Kirschbaum - Aparentemente, o conflito persistente entre Israel e Palestina não pode ser resolvido, a curto prazo, de forma satisfatória para os dois lados. Questões como o destino dos refugiados palestinos e a sobrevivência de Israel como estado seguro, dentro de fronteiras reconhecidas, indicam que ambos terão de fazer concessões dolorosas para que a paz possa ser construída, e eu não me sinto capaz de oferecer qualquer sugestão de solução que já não tenha sido exaustivamente considerada. Mas devemos ter presente que os fundamentalistas de parte a parte ocupam-se em dificultar ainda mais esse difícil processo. Enquanto uns se opõem à criação de um estado palestino por conta do “direito histórico dos judeus a todo o território da Grande Israel”, e argumentos similares, outros afirmam que a paz no Oriente Médio só poderá ser construída com a extirpação do Estado de Israel e a expulsão de todos os judeus.

IHU On-Line - Gostaria de acrescentar algum aspecto não questionado?

Saul Kirschbaum - Sim, gostaria de aproveitar a oportunidade para encerrar esta entrevista com um comentário de Zygmunt Bauman [6] em Modernidade e Holocausto (Rio de Janeiro: Zahar, 1998), escrito em 1989.

Não é o Holocausto que achamos difícil de entender em toda a sua monstruosidade. É a nossa Civilização Ocidental que o Holocausto tornou quase incompreensível [grifo no original] [...] Se Hilberg tem razão ao afirmar que nossas instituições sociais mais decisivas nos escapam ao controle prático e ao alcance mental, então não são apenas os acadêmicos profissionais que devem se preocupar. Verdade, o Holocausto aconteceu há quase meio século. Verdade, seus resultados imediatos estão ficando rapidamente para trás. A geração que viveu essa experiência direta praticamente já desapareceu. Mas — e este é um terrível e sinistro “mas” — aqueles aspectos de nossa civilização outrora familiares e que o Holocausto tornou de novo misteriosos ainda fazem bem parte de nossa vida. Não foram eliminados. Também não o foi, portanto, a possibilidade do Holocausto. (BAUMAN, 1989, p. 107).


Por Márcia Junges e Andriolli Costa




Notas

[1] Martin Buber (1878-1965): filósofo vienense de origem judaica, foi o primeiro professor de uma cátedra de Judaísmo na Universidade de Frankfurt. Com a ascensão do nazismo, abandonou a cátedra e mudou-se para Jerusalém, onde passou a lecionar como professor da Universidade Hebraica. A obra de Buber centra-se na afirmação das relações interpessoais e comunitárias da condição humana. (Nota da IHU On-Line)

[2] Isaiah Trunk (1905-1981): historiador polonês, reconhecido como um dos maiores pesquisadores do extermínio judeu durante o regime nazista. Após fugir para a União Soviética, Israel e Canadá, estabeleceu-se nos Estados Unidos, onde se tornou chefe arquivista do Institute for Jewish Research - YIVO, em Nova York. (Nota da IHU On-Line)

[3] Judenrat ou Judenräte: Conselho Judeu, em alemão. (Nota da IHU On-Line)

[4] Hugo Grotius (1583-1645): jurista a serviço da República dos Países Baixos. É considerado o precursor, junto com Francisco de Vitória, do Direito internacional, baseando-se no Direito natural. Foi também filósofo, dramaturgo, poeta e um grande nome da apologética cristã. (Nota da IHU On-Line)

[5] Jean Améry (1912-1978): escritor e filósofo austríaco, pseudônimo de Hans Mayer, trocado após o final da II Guerra Mundial. Recusou-se a escrever em alemão por muitos anos. Mudou-se para a Bélgica para fugir dos nazistas, e quando estes invadiram a cidade participou ativamente da resistência. Foi capturado e mantido prisioneiro nos campos de concentração de Auschwitz, Buchenwald e Bergen-Belsen, e liberado em 1945. De suas obras, citamos Más allá de la culpa y la expiación. Tentativas de superación de una víctima de la violencia (Valencia: Pre-Textos, 2004), At the Mind’s Limits: Contemplations by a Survivor On Auschwitz and its Realities (Bloomington: Indiana University Press, 1998) e a emblemática On Suicide - A Discourse on Voluntary Death (Bloomington: Indiana University Press, 1999). Améry cometeu suicídio em 1978. (Nota da IHU On-Line)

[6] Zygmunt Bauman (1925): sociólogo polonês, professor emérito nas Universidades de Varsóvia, na Polônia e de Leeds, na Inglaterra. Publicamos uma resenha do seu livro Amor Líquido (São Paulo: Jorge Zahar Editores, 2004), na 113ª edição do IHU On-Line, de 30-08-2004, disponível em http://bit.ly/ihuon113. Publicamos uma entrevista exclusiva com Bauman na revista IHU On-Line edição 181, de 22-05-2006, disponível para download em http://bit.ly/ihuon181. (Nota da IHU On-Line)



sábado, 22 de março de 2014

Solidão acompanhada

Artigo perturbador de Sergio Augusto para o Estadão de 15/03/14:

Ciberescapismo

Viciados no Facebook, Twitter e serviços afins vivem como zumbis, almas penadas do limbo digital em busca de uma saída distanciada, clean, para sua solidão

À saída de uma sessão vespertina de Ela, uma senhora pergunta à amiga se aquilo que acabaram de ver poderia acontecer de verdade. "Sei lá", respondeu a outra, "mas quando acontecer, não estaremos mais aqui pra ver." Resposta sensata. Primeiro porque ninguém sabe ao certo se a tecnologia digital atingirá aquele grau de sofisticação mostrado no filme de Spike Jonze. Segundo porque as duas senhoras certamente há muito terão morrido quando os smartphones e computadores puderem oferecer um serviço de interação online como o do filme.

Aos que ainda não viram Ela e nada leram a respeito, resumo: é uma delicada, melancólica e inquietante comédia ciber-romântica na qual um recém-separado de carne e osso, Theodore (Joaquin Phoenix), apaixona-se pela voz e o jeito de falar de um sistema operacional chamado Samantha. Ela não é um autômato como os replicantes de Blade Runner e Gigolo Joe, o edipiano robô humanoide encarnado por Jude Law em A. I., Inteligência Artificial, mas um programa de computador que conversa e interage com o usuário, algo como uma extensão do aplicativo Siri, a assistente pessoal inteligente do iOS da Apple, só que "humanamente" inteligente e sensível. Além de sexy. Até um software vira um tesão com a voz de Scarlett Johansson.

Li em algum lugar que daqui a 30, 40 anos haverá um aplicativo como Samantha ao alcance de todos nós. Se for um quebra-galho full time e onipresente, uma super-Siri, com respostas e recomendações para tudo, beleza. Se uma vampe virtual, uma app-fatale capaz de virar a cabeça de clientes solitários e carentes como o Theodore de Ela, babau. Que não chegue a tal extremo a distopia da Singularidade (ou o momento hipotético em que a inteligência artificial irá superar a inteligência humana), até por ser grande o risco de a NSA, ciente da onisciência do aplicativo, com total acesso aos dados, e-mails e demais segredos de sua freguesia, transformá-lo numa Mata Hari. Como se já não bastassem as coletas de dados dos internautas repassados pelas plataformas de mídia social e aplicativos a empresas e anunciantes.

O filme se passa numa época indefinida, numa Los Angeles asséptica e high tech, com visual de Xangai (onde as externas foram rodadas), justo o oposto da Los Angeles de Blade Runner, que era uma versão degradada de Tóquio, com detalhes maias em sua regressiva arquitetura. Essa concepção de Xangai como protótipo da metrópole do futuro pode sugerir uma visão prospectiva menos sombria, menos pessimista, que a dos autores de Blade Runner, mas a perspectiva de um mundo onde seres humanos inteligentes e sensíveis como Theodore caiam de quatro por vozes movidas a algoritmos não deveria empolgar nem os mais fanáticos apologistas da cibercultura.

Se Samantha é um avatar avançado de Siri, Theodore em nada difere dos cibernautas do presente que vivem vicariamente num mundo à parte, como almas penadas do limbo digital em busca de uma saída distanciada, clean, para sua solidão. São zumbis, e não apenas usuários, das mídias sociais, viciados no Facebook, no Twitter e serviços afins. Diversos estudos recentes, e não tão recentes, sobre os efeitos negativos da convivência virtual revelam dados preocupantes. Conclusão unânime: quanto mais vazia nossa vida pessoal, maior a tendência para preenchê-la na realidade virtual. Quanto mais ocupados e ativos, menos nos deixamos seduzir pelo ciberescapismo.

Permanecer muito tempo nas redes sociais pode provocar insônia, ansiedade, estresse, distúrbios digestivos (revelação da última edição do Journal of Eating Disorders), anorexia, afetar a autoestima, incitar a inveja e o ciúme. A psicoterapeuta Sherri Campbell defende essa tese com ardor: "As mídias sociais nos dão um falso sentimento comunitário, uma falsa conectividade com o mundo e as pessoas. As trocas que nelas se processam são meros simulacros das relações interpessoais no mundo físico. Milhares de contatos, amigos, seguidores e curtições não valem o sucesso real, palpável, que podemos desfrutar no mundo real".

Apesar de ter um pezinho na autoajuda, Sherri Campbell fala com a autoridade de quem há tempos se dedica a pesquisar os motivos que levam as pessoas a sobrepor suas relações nas redes sociais às da realidade concreta.

Metade dos imoderados usuários do Facebook e do Twitter que ela entrevistou admitiu ter ficado, com o passar do tempo, mais ansiosa, frustrada e insatisfeita. Nas mídias sociais a vida dos outros parece perfeita e isso pode nos deixar complexados e deprimidos, ainda que o que os outros nos mostram seja apenas um instantâneo da realidade, eventualmente edulcorada, falsificada, "porque também produto de um complexo de inferioridade", acrescenta a psicoterapeuta, que, a exemplo de Christopher Carpenter, autor de Narcissism on Facebook (Narcisismo no Facebook), oferece duas alternativas aos acometidos de compulsão tecnológica: uma clínica de reabilitação (sem acesso à internet) e uma terapêutica reconexão ao mundo real, com frequentes tête-à-tête com amigos e parentes. Foi o que Theodore, o cibermissivista apaixonado de Ela, compulsoriamente fez.



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