quinta-feira, 30 de abril de 2015

Nem todo argentino gosta de futebol

Artigo de Agustín Arosteguy publicado em 06/06/14 no Brasil Post:

Argentino, modelo para colecionar

Há quase duas semanas me aconteceu algo que já tinha acontecido antes, mas que agora me chamou especial atenção - ou reparei pontualmente nisso. Talvez por estar no ano do mundial ou porque Marte deixou de estar retrógado depois de 80 dias, sei lá. A questão é que estava numa loja para comprar algumas coisas para minha casa nova e o dono, sabendo que eu era argentino, porque já tínhamos conversado antes, todo empolgado começou a me contar sobre seu fanatismo pelo Boca Junior e que um amigo que estava em Buenos Aires encontrou uma camiseta do tamanho certo para ele. Logo após, sem deixar muito espaço para uma possível saída, continuou dizendo, numa tentativa de provocar um diálogo ou até uma polêmica futebolística, que o que mais gostava dos times argentinos - sobre tudo do Boca Junior - era a estratégia de defesa que possuíam. Dito isso, fez uma pausa - como para me ceder a palavra - e para que assim me sentisse a vontade para falar como argentino amante acérrimo de futebol. Aí foi um constrangimento dos grandes, já que não tive outra alternativa senão cortar a onda dele e me reconhecer publicamente um completo ignorante no assunto. Expliquei a ele, sem anestesia, que na verdade eu não entendo nada de futebol. Diante disso, o caro amigo, cujo nome é Vinicius, ficou me olhando com uma expressão entre confuso e perplexo.

Tudo isso me levou à reflexão mais crua e dura. É que ninguém se surpreende se um argentino não gosta de comer churrasco ou pão com linguiça. Ninguém se horroriza se ele não gosta de chimarrão ou ainda, se esse argentino não pode nem provar o doce de leite porque acha enjoativo.

Prezados irmãos brasileiros, há um monte de assuntos sobre os quais se pode bater um papo com um argentino além do futebol, das torcidas organizadas, da violência, das armações da máfia ou se o Maradona é ou não melhor que o Pelé. Temos tantas coisas para falar e não precisamos ir longe: a música, com toda essa variedade de ritmos, batuques, ao mesmo tempo tão parecidos aos nossos e tão diferentes. O mar e a praia, que talvez não sejam tão lindas e quentes quantos as daqui, mas da para mergulhar à vontade. E por último, para só citar três casos, a arte culinária, que rende muito e favorece sem dúvida uma rica e extensa troca. Então, meus queridos façamos girar a roleta e festejemos o fato de sermos vizinhos.



quarta-feira, 29 de abril de 2015

Sua filha foi barbarizada por um menor mas ele é contra a redução da maioridade penal

Entrevista publicada no Estadão:

'Reduzir a maioridade penal é um erro', diz pai de Liana Friedenbach

Advogado Ari Friedenbach, vereador do PROS de São Paulo, que teve a filha morta por um adolescente, afirma que a discussão do tema é 'rasa' e que menores devem ser ressocializados

Bruno Ribeiro

O advogado Ari Friedenbach, de 54 anos, eleito vereador de São Paulo em 2012 pelo PPS, mas agora filiado ao PROS, decidiu partir para ataque à redução da maioridade penal no País.

“Vai causar um drama muito maior, é isso que eu acredito. Não só não vai resolver como a gente vai destruir a vida de jovens, e a grande maioria é recuperável”, diz. Ele afirma, entretanto, que acredita que o projeto será aprovado pelo Congresso, porque os “políticos só pensam na reeleição”, sem discutir o assunto com profundidade.

Ari já foi associado à lista das pessoas que defendiam a redução da maioridade penal. Ele é pai da estudante Liana Friedenbach, morta em 2003, aos 16 anos, depois de ser atacada, com o namorado, Felippe Caffé, de 19 anos, por um grupo de criminosos liderados por um adolescente que ficou conhecido pelo apelido Champinha (Roberto Aparecido Alves Cardoso, hoje com 28 anos, que continua internado em uma Unidade Experimental de Saúde na zona norte da capital paulista).

O advogado argumenta que a redução da maioridade para 16 anos faria apenas com que criminosos passassem a aliciar adolescentes ainda mais jovens, com 14 ou 15 anos, e defende que a prática de crimes na companhia de menores deveria ser penalizada. Mas afirma que menores que praticaram crimes hediondos, como Champinha, deveriam ser responsabilizados, com penas pré-determinadas por um juiz.

Ele critica ainda a proposta do governo de São Paulo, que quer aumentar o prazo de internação para jovens acima de 16 anos que cometem delitos, dizendo que isso “também não resolve” e ataca seu partido, que recentemente lançou uma enquete perguntando à população se a maioridade deveria ser reduzida. “Que partido é esse que não tem opinião?’, questiona.

A morte de Liana e Caffé chocou o País. Eles haviam decidido acampar juntos, escondidos dos pais, quando a quadrilha liderada por Champinha decidiu roubá-los. Caffé foi morto logo após o ataque. Liana foi morta com tiros e facadas depois de ser estuprada.

Confira a entrevista concedida em seu gabinete, no 11.o andar da Câmara Municipal de São Paulo, nesta quinta-feira, 23.

O sr. não defende mais a redução da maioridade penal?

Existem duas correntes, basicamente, que é o que você vê nesses programas policiais, que colocam essas pesquisas no ar, “a favor ou contra”. Eu sou radicalmente contrário a reduzir a maioridade penal. Mas também sou contra não se fazer nada. Minha proposta é a responsabilização do menor que comete crimes hediondos: latrocínio, homicídio, sequestro, estupro e roubo.

Roubo também?

Roubo porque é um possível latrocínio. Imagine o cara que vem com uma arma, fala “me dá seu celular”. Se não eu der, ele pode atirar e isso vai virar um latrocínio. É de extrema periculosidade. Para esses casos, e somente para esses casos, eu proponho a responsabilização. Isso significa o seguinte: o menor de idade, a partir dos 12 e abaixo dos 18 anos, deve responder criminalmente pelo seu ato. Por exemplo: se ele comete um estupro, e tem 14 anos, vai responder criminalmente . Por ser menor de idade, não seria condenado a 30 anos, como um adulto. Seria condenado a uma pena de dois terços do que seria para o maior. E, se ele for condenado a isso, iria cumprir pena em uma unidade prisional da Fundação Casa, não colocaria ele em hipótese nenhuma num presídio comum.

Em todo o período da pena?

Não, até completar 18 anos. Em uma unidade prisional da Fundação Casa, com todo o atendimento de ressocialização dela. Não sei se você conhece a Fundação Casa hoje, mas ela tem um trabalho muito legal. São unidades de pequeno porte, de até 56 internos, onde eles estudam, têm cursos profissionalizantes, atendimento psicológico, esportes, têm um atendimento muito decente. Tanto é que a reincidência de menores na criminalidade é de 20%, enquanto nos maiores de idade chega a 70%. É evidente que é muito diferente o trabalho desenvolvido na Fundação Casa do sistema prisional.

Mas isso é diferente de reduzir a maioridade penal?

Você fala hoje em reduzir para 16 anos qualquer ato, hoje chamado ato infracional de pequena periculosidade. O menor vai responder criminalmente por um furto, e vai para o sistema prisional com 16 anos. Aí, a chance de ele se recuperar é zero. Por outro lado, se continuar respondendo dentro do ECA, com toda a amenidade que tem o ECA para esses casos, um jovem de 14 ou 15 anos que comete um homicídio vai ficar até três anos internado, coisa que jamais acontece na Fundação Casa. Aliás, na prática, o prazo máximo de internação é de um ano. E você sai também dessa discussão se é cláusula pétrea ou não é cláusula pétrea (trecho da Constituição que não pode ser alterado).

O sr. acha que a maioridade penal é cláusula pétrea?

Entendo, como advogado, que é sim cláusula pétrea, que não pode mudar a idade penal através de uma emenda constitucional, só poderia mudar através de uma nova Constituição, e eu aposto o que você quiser que o Supremo Tribunal vai dizer a mesma coisa, depois de todo o processo legislativo isso vai ser barrado no Supremo. Porque sim, é cláusula pétrea. Eu defendo que é uma cláusula pétrea, que não se pode mudar e, pior do que isso, se hoje o maior de idade que recruta o menor de 16, 17 para assumir ou cometer o crime, vai passar a recrutar com 14, 15 anos. Na verdade, você vai criar um problema muito mais grave. O que está se imaginando uma solução vai na verdade se tornar um problema gravíssimo. O traficante vai usar o menor de 16 anos. Entendo que, com essa proposta, você vai atingir só quem precisa ser atingido e independe da idade, depende do crime que ele cometeu. E não adianta vir com esse discurso de alguns dos defensores do ‘não se deve fazer nada’, de que daqui a pouco estão prendendo criança de 8 anos. Criança de 8 anos não comete homicídio, não comete estupro. Isso é besteira. E se, infelizmente, acontecer de cometer, alguma coisa deve ser feita.

Mas a proposta do sr. não é inconstitucional por quê?

Porque eu não estou mexendo com a maioridade penal de 18 anos. Para esses casos, a gente vai penalizar de uma forma diferente e na Fundação Casa. Ele vai responder como menor, até com redução da pena em relação a um maior de idade, mas em um regime muito mais rigoroso (do que os demais internos da Fundação) e com penalização. “Você vai ficar dez anos preso. Chegou aos 18, ainda tem dois anos para cumprir, vai para o sistema prisional comum”. Mas de forma clara: você vai ficar dez anos preso, você vai ficar um ano. Ele tem de entrar sabendo que vai ficar X anos preso. Estou falando de coisas muito mais tranquilas, que ninguém fala, ninguém discute, no lugar dessa pirotecnia toda da redução da maioridade penal, que vai ser um grande erro. Rapidamente, não vai demorar 10 anos, para se perceber que foi um grande equívoco. Uma discussão que levou 20 anos para começar, vai levar mais 30 para mudar.

É a única coisa que poderia ser feita?

Há duas mudanças na legislação que são muito eficazes e muito simples, que não são a redução da maioridade penal. Não passam por essa gigantesca discussão e têm um efeito imediato muito melhor. Primeiro, maior que tiver menor junto cometendo crime, a pena do maior deveria aumentar, em um terço ou em 50%. Isso já faria o maior não querer o menor perto dele. Outra mudança que, acho, vai ter um efeito muito grande é que , hoje, o menor que comete um ato infracional, quando completa 18 anos, tem a coisa do ficha limpa, sem nenhuma pendência. Acho ótimo, adequado e concordo com isso. Porque amanhã ele vai procurar emprego e não vai aparecer uma ficha suja para ele. Agora, completou 18 anos e cometeu qualquer crime, o juiz teria que, por obrigação, puxar a ficha dele, saber se ele já cometeu algum ato infracional com o menor e, caso sim, já não responderia mais como réu primário. Essas duas pequenas mudanças, extremamente simples, já começariam a mudar muito o quadro do envolvimento de menores de idade com o crime.

O sr. não teve esse posicionamento sempre. O que mudou?

O crime da Liana foi em novembro de 2003. Eu diria que aproximadamente em março de 2004 eu comecei a desenvolver e defender esses pontos de vista que estou falando agora. De lá para cá, vou apresentando sempre que posso essa proposta. Acho que ela é muito mais eficaz, muito mais correta, porque ela não vai criminalizar pequenos atos infracionais, transformar eles em crimes e colocar eles (menores) em presídios que nós todos sabemos que são comandados pelo crime organizado, ou seja, vamos cada vez piorar nossa sociedade em vez de melhorar.

E a questão do tráfico, de menores detidos por participar do tráfico de drogas?

É uma questão que eu tenho certa dificuldade em colocar com esse tipo de crime. Tráfico de drogas é tudo o que envolve drogas. Do aviãozinho do tráfico, que é um coitado, até o grande traficante. Uma coisa é a gente falar de chefe do tráfico. O cara que traz a droga pela fronteira, o traficante que mora nos Jardins, não mora na favela. Esse sim é um cara perigoso para a sociedade. Agora, o aviãozinho do tráfico, é diferente. No interior, onde os juízes são mais conservadores, as internações na Fundação Casa chegam a 80% dos internos serem esses pequenos traficantes. Então, não dá para falar de tráfico de drogas de uma maneira genérica. Uma coisa é traficante, outra aviãozinho. Não sei como a gente faria para separar isso dentro da lei. Seria importante haver essa separação, porque são situações muito diferentes. É a cracolândia daqui: não adianta prender o cara que está vendendo pedrinha de crack, tem de prender quem está vendendo para ele. São pessoas que oferecem riscos muito diferentes à sociedade.

E o caso de menores de 18 anos diagnosticados como psicopatas?

Nossa lei é extremamente omissa, em nenhum momento fala do que se fazer com menor sociopata, psicopata. É uma omissão gravíssima do legislador. Por exemplo, o caso Champinha. Ele e outros tantos psicopatas que estiveram na Fundação Casa. Ele e outros como ele em uma unidade da Fundação Casa colocam em risco todos os demais internos também. É a história da maçã podre, vai apodrecer todo o cesto. A lei precisa ser clara com o que se faz com um jovem diagnosticado como sociopata. Porque precisa ter um tratamento diferenciado, ele jamais pode ficar misturado com os demais. Para que a gente não tenha que fazer acomodações legais, como foi o caso do Champinha, para não colocar ele em liberdade. A gente não pode em cada caso desses criar uma série de artimanhas legais – ainda que eu não ache que tenha tido qualquer ilegalidade no caso. Mas é discutível, tem gente que defende que houve acomodações não muito jurídicas, que eu não concordo, mas, para que não haja essa discussão, a lei tem de ser clara.

O que o sr. acha que deveria ser feito com um menor psicopata?

O menor psicopata não tem cura. Mais absurdo é que há uma pressão muito grande. Você pega esses psicólogos que fazem exames a cada seis meses nos menores, há uma pressão muito grande para que eles coloquem os jovens em liberdade. Eu já vi laudo do Champinha que ele pode ser colocado em liberdade porque tem um comportamento excelente. Qualquer analfabeto sabe que psicopata, quando está sob vigilância, se comporta. Você dá as costas e ele te mata na boa. Eles (psicólogos) sofrem pressões muito grandes para dar laudos, para não haver superlotação na Fundação Casa. Porque a Fundação Casa está no limite da superlotação. No caso de São Paulo, não é uma situação caótica a situação da Fundação Casa hoje, mas isso é porque ninguém fica lá três anos. O cara, um Champinha na vida, que não tiver matado uma menina de classe média que saia na imprensa, vai para a rua em um ano e vai continuar matando.

E como o sr. vê essa proposta do governo do Estado de São Paulo de aumentar o prazo de internação dos menores infratores?

Acho um erro. Na prática, eles vão continuar ficando um ano. Acho que seria eficaz se, quando ele vai para internação na Fundação Casa, ele já vai sabendo: você, vai ficar três anos. Você, dez. E você, um mês. Só que não é assim que acontece. Ele vai para lá e, conforme os laudos, vai ser posto em liberdade. Isso não sou eu quem está falando, é a própria presidente da Fundação Casa (Berenice Maria Gianella) que não me contradiz quando falo: hoje, ninguém fica um ano na Fundação Casa. Pode parecer... comercial (pausa). Mas o fato é que Lianas morrem todo dia. Então, a gente precisa ter medidas efetivas. A gente precisa parar de chamar de ato infracional quando a gente está falando de menor criminoso. São coisas diferentes. Ato infracional é quem rouba bicicleta. Quem dá tiro na cara é criminoso. Não estamos falando do mesmo tipo de pessoa. Temos menores que são criminosos. Nem todos são psicopatas – aliás, é uma minoria muito pequena. Mas temos um número expressivo de menores violentos. Que estão cometendo crimes violentos até porque sabem que, entre aspas, não vai acontecer nada. Um ano para quem é jovem, até pelo tempo de vida dele, é um tempo significativo. Mas cada coisa tem de ter uma medida certa. Acho que minha proposta, de responsabilização, acaba com essa coisa de que faltava uma hora, uma semana, acaba. Sou advogado e estudei isso na faculdade. São duas as funções da pena: o castigo efetivo e a ressocialização. Aqui, quando o cara vai para um presídio, ele não tem ressocialização. E a gente não pode pensar só em ressocialização. Tem de ter o castigo. Pô, você tirou a vida de alguém. Não é “tudo bem”.

Há muita gente que ache que as regras devem ficar como estão e nada deve ser mexido. Como o sr. tenta convencê-las?

Eu falo tudo isso que estou falando para você (risos). Mas tenho visto muita gente entender as propostas. O que acontece é que não pode ser aquela pesquisa tipo (José Luiz) Datena (apresentador do programa policialesco Brasil Urgente, da TV Bandeirantes) de a favor ou contra. 90% quer porque está todo mundo com medo da criminalidade. Mas ninguém pensa que isso não vai resolver. Vai causar um drama muito maior, é isso que eu acredito. Não só não vai resolver como a gente vai destruir a vida de jovens, e a grande maioria é recuperável. É separar: ‘você é recuperável, você não é, é um sociopata’. Agora, se é, vamos investir, vamos salvar esse jovens. Tem possibilidade. É óbvio, e sempre falo isso, a solução efetiva para o problema chama-se Educação. Educação, educação e educação. Enquanto a gente não tiver educação de qualidade, para as pessoas terem condições de se colocar no mercado de trabalho, de ter uma vida descente, a gente vai continuar criando criminosos. Mas, a partir do momento em que ele já é um criminoso, é outra situação. A longo prazo, (a solução) é investir a educação. A curto, é punir só quem deve ser punido. São duas coisas em paralelos. Não dá também para dizer: “ele não teve educação, então não vamos prendê-lo” se ele matou alguém. Tem de prender. É um argumento meio bobo esse dos direitos humanos de dizer que o pai era alcoólatra, a mãe trabalhava o dia inteiro se um crime é gravíssimo. Mas é óbvio que, sem educação, nunca vamos resolver o problema.

O sr. tem acompanhado as discussões no Congresso? Tem atuado de alguma forma? Como o sr. vê a atuação do seu partido (o Pros, que lançou uma pesquisa “sim” ou “não” sobre a redução da maioridade penal em sua campanha de TV) no tema?

Estou achando que caminha para a aprovação da redução da maioridade penal. A tendência é essa porque os políticos vão pelo clamor popular, o cara só quer saber de se reeleger, e não é bem assim. A população deve ser ouvida? Obviamente. Mas alguns temas precisam de mais profundidade para se debater. Essa discussão no Congresso tem sido rasa como um pires. Quem está discutindo isso não está se aprofundando e muitos não entendem absolutamente nada do que estão falando e não estão procurado mais informação para formar alguma coisa concreta, que vai ajudar a resolver o problema. O que acho que pode ajudar é essa proposta que eu estou falando agora. Tive a maior briga com meu partido. Mandei um e-mail para o partido todo, do presidente ao último filiado, desancando. Não sei se vocês viram na propaganda de terça. O partido, no auge da discussão da maioridade penal, fazendo uma enquete, você é a favor ou contra. Que partido é esse que não tem uma opinião formada a essa altura do campeonato? Que partido é esse que tem um Ari, e me desculpe a falta de modéstia, sou uma das pessoas que mais estudou o tema, e não sou ouvido. Não tenho feito outra coisa. Entrei na política para isso. Entrei na política com um objetivo muito claro, e foi fazer isso. Como é que agora vai parar para fazer consulta e vai formar sua opinião de acordo com o clamor popular? Não tem uma ideia do que quer? Acho que a gente tem de ter alguém. Modéstia à parte, eu sei do que estou falando. Há mais de uma década que estudo esse tema. Acho que construí a melhor proposta. Digo com zero modéstia, mas é porque eu acredito muito que esse é o caminho. Não existe outro caminho que não este. Morro de medo de, amanhã, você colocar um cara de 16 ou 17 anos, porque roubou uma bicicleta, e jogar em um presídio. O que se espera dele? E outra coisa que eu sempre insisto: presídio não pode ser o que a gente vê no Brasil. O cara um dia vai sair. Ele vai devolver para a sociedade aquilo que recebeu. Se o cara é tratado como um animal, vai sair dez vezes pior do que entrou. É obvio. O que se espera de um preso nessas masmorras que temos aqui? A gente tem de ter um sistema prisional decente, que realmente ressocialize. E ressocializar é ter trabalho, ter educação, não é ter trabalho como benefício. Como você vai ressocializar alguém cujo trabalho é ficar o dia fazendo sequestros por telefone?



terça-feira, 28 de abril de 2015

A difícil reconciliação entre turcos e armênios

No último dia 24 de abril, publicamos aqui um artigo sobre o centenário do genocídio armênio. O jornal britânico The Independent trouxe naquele dia, também, um excelente artigo de Robert Fisk que traça um panorama histórico detalhado do conflito e aponta a estreita porta que ainda pode ser aberta para uma reconciliação entre turcos e armênios.

O artigo foi traduzido e publicado no Carta Maior:

Genocídio Armênio: Os perigos da negação

Me lembro de uma senhora armênia descrevendo como militares turcos ateavam fogo a pilhas de bebês vivos. Até quando a Turquia negará o genocídio?

Às sete da noite desta sexta-feira, um grupo de homens e mulheres muito valentes se reuniu na Praça Taksim, no centro de Istambul, para organizar uma comemoração sem precedentes, e ademais comovedora. Homens e mulheres, turcos e armênios, se reuniram para recordar os mais de 1,5 milhão de cristãos armênios, homens, mulheres e crianças, assassinados pelos turcos otomanos no genocídio de 1915. Esse Holocausto armênio – o precursor direto do Holocausto judeu – começou há cem anos atrás, a poucos metros dessa mesma Praça Taksim, quando o governo da época sequestrou centenas de intelectuais e escritores armênios de suas casas e os preparou para a morte e a aniquilação de seu povo.

O Papa também irritou os turcos otomanos, ao classificar este – o mais terrível massacre da Primeira Guerra Mundial – como um ato de maldade, e um genocídio, por que isso era: uma deliberada e planejada operação para erradicar uma etnia. O governo turco – mas, graças a Deus, não todos os turcos – se mantiveram negando esse capítulo da história através dos tempos, de forma petulante e infantil, baseados na versão de que os armênios não foram mortos segundo um plano (a antiga desculpa de que “havia caos devido à guerra e não se podia ter controle sobre as consequências”), e que a palavra “genocídio” foi concebida somente depois da Segunda Guerra Mundial, e que aplicá-la sobre um caso anterior seria inadequado. Seguindo essa lógica, a Primeira Guerra Mundial não deveria ser a Primeira Guerra Mundial, já que não foi chamada de “Primeira Guerra Mundial” naquele momento.

Dois pensamentos vêm à mente, então, neste centenário da carnificina, da violação massiva e dos assassinatos de crianças em 1915. O primeiro é que, para um poderoso governo, de uma forte – e valente – nação europeia e da OTAN, como é a Turquia, continuar negando a verdade desta massiva crueldade humana significa que vale a pena insistir numa mentira criminosa. Contudo, mais de 100 mil turcos descobriram que têm avós armênias, ou bisavós – as mesmas mulheres sequestradas, escravizadas e estupradas nas marchas da morte, que partiram de Anatólia até o deserto da Síria – e os próprios historiadores turcos (desgraçadamente, não em quantidade suficiente) agora apresentam as provas documentadas detalhada das sinistras ordens de extermínio emitidas por Talat Pasha desde a capital antes conhecida como Constantinopla.

Entretanto, qualquer um que se oponha à negação do genocídio por parte do governo termina sendo vilipendiado. Durante quase um quarto de século, venho recebendo cartas de turcos sobre minhas opiniões a respeito do genocídio. Comecei em 1992, cavando com minhas próprias mãos os ossos e crânios de armênios massacrados fora do deserto da Síria. Alguns poucos correspondentes queriam expressar seu apoio. A maioria das cartas eram quase malignas. E temo que a contínua negação do governo turco poderia ser tão perigosa para a Turquia, como é a indignação dos descendentes armênios das vítimas. Me lembro de uma senhora armênia, bastante velha, descrevendo para mim como ela viu os militares turcos fazendo pilhas de bebês vivos para depois atear fogo sobre eles, e que os gritos que se escutavam depois eram como o som de suas almas indo ao céu. Não é exatamente isso – além da escravidão das mulheres – o que o Estado Islâmico (EI) está cometendo hoje contra seus inimigos étnicos, exatamente do outro lado da fronteira turca? A negação está cheia de perigos.

E nos podemos perguntar o que aconteceria se o atual governo alemão afirmasse que qualquer demanda para reconhecer os “eventos” de 1939-1945 – nos quais seis milhões de judeus foram assassinados – como um genocídio se tratava somente de “propaganda judia” e “mutilação da história e da lei”. Porém, isso é mais ou menos o que o governo turco disse na semana passada, quando a União Europeia pediu que o país reconhecesse o genocídio armênio. Para o Ministério de Relações Exteriores turco, a UE havia sucumbido à “propaganda armênia” sobre os “eventos” de 1915, e acabou “mutilando a história e a lei”. Se a Alemanha houvesse adotado tais imperdoáveis palavras sobre o Holocausto judeu, seriam tantos gases saindo dos escapamentos dos veículos diplomáticos em Berlim que não permitiria que as autoridades do país pudessem ver a debandada dos embaixadores de todos os países do mundo.

Porém, a pequena e valente comemoração desta sexta-feira na Praça Taksim é um sinal para a grande parte do mundo ocidental que se reunirá com os líderes turcos a poucos quilômetros de Istambul para honrar os mortos de Gallipoli, a extraordinária e brilhante vitória de Mustafá Kemal sobre os aliados, em 1915, na Primeira Guerra Mundial. Quantos deles recordarão que, entre os heróis turcos lutando pela Turquia em Gallipoli, havia um certo capitão armênio, Torossian, cuja própria irmã seria uma das vítimas do genocídio?

Minha intenção era a de informar sobre a comemoração em Taksim em companhia de amigos turcos. Mas o segundo pensamento que me vem à mente –e os amigos armênios que me perdoem – é que não estou muito interessado no que os armênios dizem e fazem neste centésimo aniversário. Quero saber o que pensam em fazer no dia seguinte ao do centésimo aniversário. Os sobreviventes armênios – os que puderam recordar – já estão todos mortos. Em 30 anos mais, os judeus de todo o mundo vão a encarar essa mesma profunda tristeza, quando seus últimos sobreviventes desapareçam do mundo, junto com seus testemunhos. Mas os mortos podem continuar vivendo, sobretudo quando seu estado de vítima é negado – uma maldição que os obriga a morrer uma e outra vez. Minha sugestão é que os armênios deveriam, agora, elaborar uma lista dos valentes turcos que salvaram suas vidas durante a perseguição de seu povo. Há pelo menos um governador de província, e alguns soldados e policiais turcos, que arriscaram suas próprias vidas para salvar os armênios naquele momento horrível da história turca. Recep Tayyip Erdogan, o primeiro-ministro triunfalista da Turquia, falou de sua dor pelo que aconteceu com os armênios, sem deixar de negar o genocídio. Se atreveria a negar o respaldo a um livro de homenagem às vítimas do genocídio armênio que trouxesse também uma lista dos valentes turcos que tentaram salvar a honra de sua nação em sua hora mais obscura?

Venho insistindo há anos sobre essa ideia com meus amigos armênios. Propus também aos armênios da comunidade em Detroit, na semana passada. Honrar os bons turcos. Infelizmente, todos aplaudem, mas não dizem nada.

* Jornalista e escritor britânico com sede em Beirute, premiado várias vezes por seu trabalho sobre o Oriente Médio. É um dos poucos repórteres ocidentais que fala árabe fluentemente. The Independent do Reino Unido. Especial para Página/12 da Argentina, 23.04.15.



segunda-feira, 27 de abril de 2015

Muçulmano estava entre cristãos etíopes executados pelo Estado Islâmico


A matéria é do IHU:

É muçulmano, mas escolhe morrer com os cristãos

Ele também estava entre os 28 etíopes assassinados (decapitados) pela Isis na Líbia e mostrados no enésimo vídeo de terror de Al Furgan, a máquina da propaganda do califado. Foi morto também ele, Jamal Rahman, migrante, mesmo sendo de família muçulmana. Por quê? Porque teria se oferecido como refém para não deixar os amigos cristãos.

A reportagem é de Domenico Agasso Jr., publicada pelo sítio Vatican Insider, 23-04-2015. A tradução é de Ivan Pedro Lazzarotto.

É uma história contada por Giorgio Bernardelli no “Mission Line”, revista do Pontifício Instituto de Missões Exteriores (PIME). Quem confirmou a notícia “foi uma fonte altamente longe de suspeitas: um membro da milícia do Al Shabab, os fundamentalistas islâmicos da Somália”.

Existem duas versões que explicam o ocorrido: uma se referindo a “um jornal on-line da Somália”: sustenta a “estranheza” dizendo que “havia sido convertido ao cristianismo durante a viagem”; a outra, que o PIME adota, é “muito mais verossímil, contada em ambientes jihadistas: o muçulmano Jamal “loucamente” teria se oferecido voluntariamente aos jihadistas como refém, por solidariedade com o amigo cristão com o qual estava viajando. Talvez pensasse que a presença de um muçulmano no grupo teria ao menos salvo a vida de outras pessoas”; não foi o que ocorreu: Jamal também foi assassinado, “como um renegado”.

Essa história e essa escolha de Jamal Rahman lembram aquelas de Mahmoud Al’ Asali, o professor universitário muçulmano que no último verão, em Mossul, “se declarou publicamente contra a perseguição de cristãos na cidade”. Ele também morreu para pagar pelo seu comportamento.



domingo, 26 de abril de 2015

Saber demais pode ser ruim

A matéria é da BBC Brasil:

O surpreendente lado ruim de ser inteligente

David Robson

Temos uma tendência a pensar em gênios como seres atormentados por angústias existenciais, frustrações e solidão – a escritora Virginia Woolf, o matemático Alan Turing e até a fictícia Lisa Simpson são estrelas solitárias, isoladas apesar de seu brilho.

A questão pode parecer um assunto que atinge apenas alguns poucos privilegiados – mas os conceitos e ideias por trás dessa impressão repercutem em quase todos nós.

Boa parte do sistema educacional ocidental é direcionada a melhorar a inteligência acadêmica. Apesar de suas limitações serem conhecidas, o Quociente de Inteligência (QI) ainda é a principal maneira de medir habilidades cognitivas. Cada vez mais gente gasta fortunas em atividades de treinamento do cérebro para tentar melhorar sua pontuação. Mas e se essa busca pela genialidade for uma tarefa para tolos?

As primeiras respostas para esses questionamentos surgiram há quse um século, no auge da Era do Jazz americana. Na época, o teste de QI ganhava popularidade após ter se provado útil nos centros de recrutamento de voluntários durante a Primeira Guerra Mundial.

Os altos e baixos de pequenos gênios

Em 1926, o psicólogo Lewis Terman decidiu usar a prova para identificar e estudar um grupo de crianças superdotadas. Ele selecionou 1,5 mil alunos da Califórnia com QI maior que 140 – 80 deles com mais de 170 de QI. O grupo ficou conhecido como os “Termites”, e os altos e baixos de suas vidas ainda são estudados hoje em dia.

Como era de se esperar, muitos dos Termites cresceram para fazer fama e fortuna. Nos anos 1950, eles ganhavam um salário médio que correspondia ao dobro do de pessoas “comuns”.

Mas, inesperadamente, muitas crianças no grupo de Terman preferiram profissões menos glamorosas, como policial, marinheiro ou datilógrafo. Os Termites também não foram particularmente mais felizes do que o cidadão americano comum, com os níveis de divórcio, alcoolismo e suicídio semelhantes ao da média da população do país.

A moral da história é que, na melhor das hipóteses, um grande intelecto não faz diferença em relação à sua satisfação com a vida. Na pior, ele pode significar uma sensação maior de vazio.

Isso não quer dizer que todo mundo com um QI alto seja um gênio torturado, como a cultura popular nos faz crer. Mas ainda é assim, é algo intrigante. Por que os benefícios de ter uma inteligência abençoada não aparecem a longo prazo?

Fardo pesado e preocupação excessiva

Uma possibilidade é a de que a consciência de alguém sobre seus próprios talentos intelectuais tenha se tornado uma carga pesada. De fato, nos anos 1990, quando alguns dos Termites tinham quase 80 anos, eles olhavam para trás e, em vez de se vangloriar de seus sucessos, diziam ter sido perseguidos pela sensação de que não corresponderam ao que esperavam atingir quando jovens.

Essa sensação de fardo – principalmente quando combinada com as expectativas dos outros – é uma constante para muitas outras crianças superdotadas. Um dos casos mais famosos – e tristes – é o da britânica Sufiah Yusof. Admitida na prestigiada Universidade de Oxford aos 12 anos, ela abandonou os estudos na área de Matemática antes de se formar e começou a trabalhar como garçonete. Depois disso, tornou-se garota de programa e ficou conhecida por recitar equações para os clientes durante o sexo.

Outra reclamação comum é a de que pessoas mais inteligentes geralmente têm uma visão mais clara sobre os problemas do mundo. Enquanto o resto de nós se mantém distante das crises existenciais, os gênios perdem o sono sofrendo pela condição humana e pelos erros dos outros.

A preocupação constante, de fato, pode ser um sinal de inteligência – mas não da maneira que os filósofos de poltrona imaginaram. Alexander Penney, da MacEwan University, no Canadá entrevistou estudantes universitários sobre vários tópicos e descobriu que aqueles com o QI mais alto realmente se sentiam mais ansiosos.

Mas curiosamente, a maioria das preocupações era banal e cotidiana. “Eles não se inquietavam por coisas muito profundas, mas se preocupavam mais frequentemente sobre mais coisas”, diz Penney. “Se algo ruim acontecia, eles passam mais tempo pensando naquilo.”

Ao examinar com mais atenção, Penney também descobriu que isso se relaciona com a inteligência verbal, testada em jogos de palavras nos exames de QI. Ele acredita que uma maior eloquência pode ajudar o indivíduo a verbalizar suas ansiedades e remoer mais seus pensamentos. O que não é necessariamente uma desvantagem. “Eles tendem a solucionar problemas mais rapidamente do que a maioria das pessoas”, afirma.

Pontos ‘cegos’

A verdade nua e crua, no entanto, é que uma maior inteligência não equivale a tomar decisões mais sábias. Na realidade, a situação pode até tornar as decisões mais equivocadas.

Keith Stanovich, da Universidade de Toronto, passou a última década preparando testes de raciocínio e descobriu que decisões justas e independentes não estão nem um pouco relacionadas ao QI.

Segundo ele, os indivíduos que se saíam melhor em testes cognitivos padrão são na realidade um pouco mais vulneráveis a terem um “ponto cego de predisposição”. Ou seja, eles têm menos capacidade de enxergar seus próprios defeitos, mesmo quando são capazes de criticar os pontos fracos dos outros.

Eles também tendem a ser vítimas da “ilusão do apostador” – a ideia de que se uma moeda cai indicando “cara” dez vezes, ela terá mais chances de cair em “coroa” na 11ª vez.

Uma tendência a confiar mais nos instintos do que no pensamento racional pode explicar porque um número surpreendente de membros da associação britânica de superdotados Mensa acredita em atividades paranormais. Ou por que alguém com um QI de 140 têm duas vezes mais chances de estourar seu cartão de crédito.

Stanovich enxerga esses vieses em todas as camadas da sociedade. “Existe muita irracionalidade no mundo de hoje – pessoas fazendo coisas irracionais apesar de terem uma inteligência mais que adequada”, afirma. “Essas pessoas que ficam espalhando memes antivacinação para pais ou disseminando erros de informação na Internet são em geral pessoas com uma inteligência e uma educação acima da média.” Obviamente, pessoas inteligentes podem ser perigosamente, e bobamente, enganadas.

O lado bom

Portanto, se a inteligência não leva a decisões racionais ou a uma vida melhor, quais as suas vantagens? Igor Grossmann, da Universidade de Waterloo, no Canadá, acredita que temos que prestar mais atenção a um conceito antiquado: a sabedoria.

Sua abordagem é mais científica do que parece. “O conceito de sabedoria tem uma qualidade etérea”, admite. “Mas se olharmos para a pura definição de sabedoria, muitos vão concordar que se trata da ideia de alguém que pode fazer um julgamento bom e sem amarras”.

Em um experimento, Grossmann apresentou a voluntários vários dilemas sociais – que iam desde o que fazer sobre a guerra pela Crimeia a crises que leitores descrevem em colunas de aconselhamentos sentimentais de jornais.

Conforme os voluntários falavam, um painel de psicólogos julgava seus argumentos e sua tendência a uma ideia preconcebida.

Os que mais pontuaram acabaram predizendo maior satisfação com a vida, mais qualidade de relacionamento, e menos ansiedades e preocupações – todas as qualidades que parecem faltar a pessoas enquadradas no conceito clássico de inteligência.

Crucialmente, Grossmann descobriu que um alto QI não necessariamente significa maior sabedoria.

Aprender a saber

No futuro, empregadores podem começar a empregar testes como os de Grossmann para examinar outras capacidades intelectuais em vez do QI. A área de recursos humanos do Google, por exemplo, já anunciou que planeja avaliar candidatos com base em qualidades como “humildade intelectual”, em fez de pura proeza cognitiva.

Felizmente, a sabedoria pode vir do treino, segundo Grossmann. Ele ressalta que nós normalmente temos mais facilidade em deixar para trás nossas predisposições quando levamos outras pessoas em consideração em vez de nós mesmo.

Com isso, ele descobriu que simplesmente falar sobre seus problemas na terceira pessoa (“ele” ou “ela” em vez de “eu”) ajuda a criar a distância emocional necessária, diminuindo preconceitos e levando a argumentos mais sábios. Novos estudos devem gerar novos truques semelhantes.

O desafio vai fazer com que as pessoas admitam seus próprios defeitos. Mesmo se você conseguiu repousar sobre os louros da sua inteligência durante toda a vida, pode ser muito difícil aceitar que ela vem atrapalhando seu julgamento. Como disse o filósofo Sócrates, “o sábio é aquele que pode admitir que não sabe nada”.



sábado, 25 de abril de 2015

A tragédia de Gallipoli, 100 anos depois


Há exatos 100 anos, no dia 25 de abril de 1915, começava a campanha terrestre que passou para a história da humanidade como a batalha de Gallipoli (ou de Çanakkale, como os turcos a chamam), que duraria pouco menos de 9 meses e consumiria cerca de 500 mil vítimas.

A Primeira Guerra Mundial havia começado no dia 28 de julho de 1914, como relembramos aqui, e de um lado estava o Império Britânico com suas colônias e seus aliados tradicionais (os mais importantes - naquele momento - eram a França e a Rússia), e do outro a Alemanha, o Império Austro-Húngaro e o Império Otomano.

Todos os Impérios listados no parágrafo acima seriam dissolvidos no século XX. O Britânico resistiria até a Segunda Guerra (1939-1945), mas o Austro-Húngaro e o Otomano se esfacelariam após o fim da Primeira.

O Império Otomano se transformou, com muita perda de possessões, na atual Turquia, em cujo território fica a península de Gallipoli, que se converteria na carnificina cujo centenário é tristemente lembrado hoje.

Os britânicos acreditavam que era de vital importância estratégica a conquista da península, o que lhes garantiria uma rota segura para o abastecimento da Rússia, o controle do estreito de Dardanelos e a conquista de Istambul, capital do Império Otomano.

Em 18 de março de 1915, um ataque naval confuso e precipitado havia sido ordenado pelo então Primeiro Lorde do Almirantado britânico, Winston Churchill, que mais tarde seria o grande líder dos aliados contra a Alemanha nazista na guerra que se seguiu.

A resistência turca foi ferrenha e a tentativa de um desembarque naval resultou num retumbante fracasso.

A invasão por terra começou no dia 25 de abril de 1915, especialmente com forças australianas e neozelandesas, cujos países haviam sido - até alguns anos antes - colônias do Império Britânico.

Embora tenha estabelecido cabeças-de-ponte no território de Gallipoli, o exército aliado mal conseguiu avançar frente à feroz resistência otomana, comandada por Mustafá Kemal.

No combate corpo-a-corpo, centenas de milhares de soldados de ambos os lados foram massacrados, expostos que eram à linha de tiro do adversário sem nenhuma piedade.

A batalha de Gallipoli terminou com a derrota das forças aliadas, mas forjou dois grandes líderes mundiais e o sentimento de identidade nacional da Austrália e da Nova Zelândia.

Churchill, diante da fragorosa derrota, renunciaria ao Almirantado e, após um tempo recluso, decidiu combater com a Infantaria nas trincheiras europeias. 

Isso lhe devolveu o amor próprio e o respeito de seus pares, preparando-o para ser o grande líder aliado que venceria a Segunda Guerra Mundial.

Atatürk, o "Pai da Turquia"
Mustafá Kemal, grande político e estrategista militar, se tornaria no grande líder da formação da Turquia, abolindo o califado e o sultanato, além de modernizar e ocidentalizar o país que até hoje vive às turras com a estrutura laica e a influência islâmica.

Kemal chegou ao ponto de abolir o alfabeto árabe e transliterar o idioma turco para o alfabeto latino, a fim de adequá-lo ao mundo ocidental.

Não por acaso, portanto, o grande comandante otomano passaria para a história acrescentando o apelido de Atatürk, que significa "pai dos turcos".

Por outro lado, as imensas perdas humanas que sofreram Austrália e Nova Zelândia sob o comando desastrado de oficiais britânicos fizeram com que os dois povos recém-independentes reforçassem sua identidade nacional.

Gallipoli aglutinou a tragédia comum e funcionou, portanto, como uma espécie de "mito fundador" da nacionalidade de australianos e neozelandeses.

ANZAC (Australian and New Zealand Army Corps) era o nome do contingente de ambos os países que combateu em Gallipoli, que até hoje relembram a tragédia no ANZAC Day que é celebrado todo dia 25 de abril.

Gallipoli foi nome, também, de um excelente (impactante e triste) filme de 1981, com a melancólica trilha sonora do Adágio de Albinoni, dirigido por Peter Weir e estrelado pelo então novato Mel Gibson, cujo trailer e íntegra (com legendas) podem ser vistos abaixo:



Nada de novo, infelizmente. Milhares de jovens perdendo suas vidas na estupidez de uma guerra ordenada por senhores engravatados.



sexta-feira, 24 de abril de 2015

100 anos depois do genocídio armênio

O Império Otomano foi a potência muçulmana que dominou por muitos séculos boa parte do Oriente Médio, da África do Norte, da Ásia Menor e do Leste Europeu.

Era contra os otomanos que as Cruzadas se batiam naquilo que chamavam de libertação de Jerusalém dos não-cristãos, entre os séculos XI e XIII.

Responsáveis pela queda de Constantinopla em 1453, os otomanos conquistaram o antigo (e cristão) Império Bizantino e faltou pouco para que islamizassem todo o continente europeu, cujos reinos cristãos se uniram e venceram a batalha de Lepanto em 1571, o que impediu a expansão islâmica para o Ocidente.

No início do século XX, o Império Otomano havia perdido muito de sua antiga glória e poder, mas mesmo assim era fundamental no jogo geopolítico da época, pois ainda dominava vastas regiões do Oriente Médio e Ásia Menor.

Entre essas regiões estava a Armênia, a primeira nação que se declarou oficialmente cristã (dentro do que se podia entender como "religião oficial" na época) no ano de 301 d. C.

Encravados que estavam entre russos e otomanos, a identidade armênia foi forjada na fricção entre as duas potências e construída, em enorme parte, com seus fundamentos cristãos, o que não impediu que boa parte do seu território fosse tomado pelo Império islâmico no século XVI.

A convivência entre cristãos e muçulmanos nunca foi fácil, até que - no início da Primeira Guerra Mundial - os armênios se aliaram aos russos para combater o Império Otomano, que havia entrado no conflito ao lado da Alemanha e do Império Austro-Húngaro.

Na noite de 24 de abril de 1915, um domingo, o governo otomano prendeu e executou cerca de 600 líderes e intelectuais armênios, e por isso esta data é considerada como o marco inicial daquilo que ficou conhecido como o "genocídio armênio".

Embora as estatísticas continuem polêmicas, estima-se que, nos dois anos que se seguiram, cerca de 1.500.000 de armênios foram assassinados das mais diferentes maneiras, por cremação, afogamento, crucificação, fome, gás tóxico, e outras modalidades de crueldade que ficaram mais conhecidas na Segunda Guerra Mundial.

O Império Otomano estava no meio de uma guerra que ia lhe custar a própria sobrevivência como país. No dia seguinte (25 de abril de 1915) começaria a invasão britânico-francesa da península turca de Gallipoli, na qual morreriam - inútil e estupidamente - 500.000 soldados dos dois lados.

Insuflada pelo desejo armênio de independência e pelo ódio religioso, a reação otomana perpetraria em proporções assustadoras o primeiro genocídio do século XX.


Oficial turco provocando crianças armênias famintas,
fingindo oferecer-lhes pão.

A derrota no fim da Primeira Guerra marcou a ruína do Império Otomano, cuja maior parte do território foi assumida pelo país que hoje conhecemos como Turquia.

Os armênios não tiveram paz, entretanto. Após novo conflito com a nascente nação turca, que lhe abocanhou boa parte do território, a Armênia foi incorporada à União Soviética em 1922, como uma das 15 Repúblicas Socialistas que formaram a antiga URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas).

País que tem o Monte Ararate como símbolo nacional, o que nunca faltou na história da Armênia foram dilúvios de toda espécie, afinal.

Os turcos jamais aceitaram que se usasse a palavra "genocídio" para descrever o massacre dos armênios. Sua principal defesa é a de que se tratava de um período de guerra no qual a barbárie e a traição corriam soltas.

Embora muitos países, como o Brasil, evitem o uso dessa palavra para evitar melindres diplomáticos com a Turquia, o fato é que a maior parte da comunidade internacional e quase a totalidade dos historiadores não-turcos concordam que o holocausto que começou naquela noite de 2015 configura um genocídio.

Apenas 10 países reconhecem oficialmente o genocídio armênio: Argentina, Bélgica, Chile, Chipre, França, Canadá, Alemanha, Grécia, Itália e Lituânia. 

Como você percebeu, também Israel e Estados Unidos dão às costas ao nome "genocídio" para manter boas relações com os turcos.

Alguns dias atrás, inclusive, o papa Francisco foi severamente criticado pelo governo turco por ter utilizado o termo "genocídio" em missa concelebrada com o patriarca Karekin II, da Igreja Ortodoxa Armênia.

O pontífice romano foi incisivo em sua fala: "Não podemos nos silenciar sobre o que vimos e ouvimos".

Curiosamente, apesar do centenário que hoje tristemente se relembra, esta declaração papal foi vista como inoportuna, pois enfraquece politicamente a Turquia num momento difícil em que o seu maior inimigo é o Estado Islâmico que lhe ameaça as fronteiras com a Síria e o Iraque.

De qualquer maneira, o genocídio armênio precisa ser relembrado para que, a exemplo de tantos outros massacres que maculam a história da humanidade, jamais seja repetido.

Este risco, infelizmente, está sempre batendo à porta de um planeta ainda contaminado pelo fanatismo e pela barbárie. O horror, ah, o horror...


Mosteiro de Khor-Virap, na fronteira com a Turquia tendo o Monte Ararate ao fundo.
Desde 642 d. C., é testemunha da história da Armênia, sempre esperando dias melhores.



quinta-feira, 23 de abril de 2015

John Travolta defende Cientologia contra acusações de documentário

A matéria foi publicada no Brasil Post:

John Travolta diz que segue a Cientologia porque "funciona"

O ator John Travolta, uma das mais famosas personalidades da Igreja da Cientologia ao lado de Tom Cruise, afirmou nesta segunda-feira que a ignorância está por trás das críticas a esta crença e que a segue porque "funciona". O ator defendeu a Cientologia em declarações concedidas ao programa Good Morning América, da emissora americana ABC, enquanto fazia a promoção de seu próximo filme, The Forger.

Travolta rebateu as recentes desqualificações contra a Cientologia motivadas pela estreia na HBO do documentário Going Clear: Scientology and the Prison of Belief, no qual um grupo de antigos fiéis dessa crença, entre eles o diretor de cinema Paul Haggis, falam dos supostos maus-tratos que sofrem seus membros. "Fui parte (da Cientologia) durante quarenta anos, desfrutei cada minuto e a minha família também. É algo fantástico pra mim, salvei vidas, salvei minha própria vida em várias ocasiões", disse Travolta, que considera que a campanha de desprestígio ocorre porque "quando algo funciona bem se transforma em alvo de crítica".

O ator afirmou que foi sua fé que o ajudou a superar a perda de seu filho Jett, morto por uma apoplexia em 2009, com apenas 16 anos, e convidou a audiência do Good Morning America a se informar antes de opinar sobre o assunto. "As pessoas não a compreendem. Tem que levar um tempo e ler um livro, esse é meu conselho. A menos que façam isso, elas estarão especulando. Acho isso um erro", defendeu.

Em Going Clear: Scientology and the Prison of The Belief são relatados abusos físicos e psicológicos como parte do funcionamento dessa religião, criada em 1954 pelo escritor americano L.R Hubbard, além das pressões sofridas pelos fiéis que resolvem abandoná-la.

Essas pessoas passam por um processo de "desligamento". Qualquer parente ou amigo que pertence à Cientologia é obrigado a lhe dar as costas. Certos castigos podem ser muito humilhantes, como limpar o chão de um banheiro com a língua.

Boa parte do documentário trata sobre o papel de Cruise e Travolta na hora de recrutar membros, obter fundos e de como a organização controlou as vidas de ambos. A Igreja da Cientologia qualificou o Going Clear: Scientology and the Prison of The Belief de "propaganda de primeira categoria", baseado em comentários de pessoas desonestas, hipócritas e que atuam de forma oportunista.



quarta-feira, 22 de abril de 2015

Justiça catarinense suspende "lei da Bíblia"

A informação é da Folha de S. Paulo:

Justiça decide suspender 'lei da Bíblia' em escolas de Florianópolis

LULY ZONTA

O Tribunal de Justiça de Santa Catarina suspendeu uma lei municipal em Florianópolis que obriga escolas públicas e particulares da capital catarinense a manter cópias da Bíblia em suas bibliotecas. Para o juiz, a lei "é uma afronta à liberdade religiosa".

A lei, publicada há um mês no "Diário Oficial" do município, é de autoria do vereador Jerônimo Alves (PRB), bispo da Igreja Universal do Reino de Deus.

O texto determinava que houvesse três exemplares da Bíblia, em texto, áudio e braile, "em local de destaque" nos colégios de ensino fundamental e médio, inclusive da rede privada.

A lei foi considerada inconstitucional e suspensa, liminarmente. Segundo o TJ, o desembargador Lédio Rosa de Andrade, relator na Adin (Ação Direta de Inconstitucionalidade) ajuizada pelo Ministério Público, reconheceu vício formal e material na lei.

O relator também apontou risco de ofensa aos direitos e valores extrapatrimoniais das crianças e adolescentes nas escolas, bem como aumento de despesas para a administração pública.

"Esse tipo de imposição é uma afronta à liberdade religiosa e levará, sem dúvida, à intolerância e ao sectarismo, senão ao fundamentalismo, responsável por inúmeras guerras e matanças na história da humanidade", diz trecho da decisão.

Ainda não há prazo para julgamento do mérito da ação.

O projeto de lei 9.734 sempre suscitou polêmica. O prefeito Cesar Souza Jr. (PSD) teve o veto ao projeto derrubado pela Câmara. Assim como a prefeitura, o Sindicato das Escolas Particulares de Santa Catarina ameaçava acionar a Justiça contra a proposta.

"A Bíblia hoje é o livro mais lido no mundo, por ser um livro histórico e de consulta, onde as pessoas deveriam ter acesso. Esse seria o principal objetivo do projeto, sem mexer na grade curricular ou querer inserir a religião no ensino, pois não é o nosso intuito", argumentou o vereador. Ele afirma que irá se reunir com sua assessoria jurídica antes de decidir o que fazer.

Na semana anterior à publicação da lei catarinense, o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, ajuizou no Supremo Tribunal Federal (STF) ações diretas de inconstitucionalidade questionando leis estaduais similares no Amazonas, Rondônia, Rio Grande do Norte, Mato Grosso do Sul e Rio de Janeiro.



terça-feira, 21 de abril de 2015

A "epidemia" alemã de suicídios no fim da 2ª Guerra

Família Goebbels com Hitler em 1938:
em 1945 os adultos se suicidaram,
as crianças foram assassinadas.
E isto é só uma pequena parte
do horror que se seguiu ao fim
da Segunda Guerra Mundial.
Artigo interessante publicado n'O Globo de 14/03/15:

Suicídios contaminaram Alemanha nos dias finais da Segunda Guerra

Livro revela que exemplos de Hitler e Goebbels não foi fenômeno restrito à cúpula nazista

POR GRAÇA MAGALHÃES-RUETHER

BERLIM - O lugar onde o pior ditador do século XX encontrou o seu fim fica no subsolo de um estacionamento de carros, junto a um prédio de apartamentos simples, de arquitetura despojada típica da era comunista, no centro de Berlim. A aparência banal do terreno que fica sobre o bunker do Führer é intencional, projetada pelo regime comunista da extinta República Democrática Alemã, onde ficava essa parte da rua Wilhelm no período de 1949 até 1989. No bunker onde a cúpula do regime nazista procurou proteção quando a derrota já parecia inevitável, ocorreram cenas dramáticas nos últimos dias da Segunda Guerra Mundial, que terminaram com a morte de todos. Mas o clima de tragédia dos derrotados não ficou limitado à cúpula: contaminou a Alemanha. Num livro sobre como os alemães reagiram à derrota nas semanas e meses de transição, pouco antes da chegada dos vencedores, o historiador Florian Huber revela que o suicídio de Hitler e Goebbels não foi um caso isolado, mas parte de uma histeria nacional que tomou conta da Alemanha.

— O mito do soldado nazista que lutou por sua ideologia racista até a última gota de sangue precisa ser revisto — contou Huber em entrevista ao GLOBO, pouco depois de ler trechos da obra “Kind, versprich mir, dass du dich nicht erschiesst” (“Criança, prometa-me que não vais te suicidar”, em tradução livre), escrita em forma de reportagem, no salão literário da Casa Bertolt Brecht, em Berlim.

SEM VIDA DEPOIS DO FÜHRER

Pouco depois do suicídio de Hitler e Eva Braun, Joseph e Magda Goebbels mataram primeiro as filhas Helga, de 12 anos, Hilde, 11 anos, Holde, 8 anos, Hedda, 6 anos, e Heide, de 4 anos, bem como o único filho, Helmut, de 9 anos (todos os nomes começavam com H em homenagem a Hitler), antes de dar fim às suas próprias vidas. “A vida no mundo que vai chegar depois do Führer e do nacional-socialismo não vale a pena”, escreveu Magda na carta de despedida ao seu filho mais velho, Harald Quandt, o único que sobreviveu. Harald (1921-1967), que por parte de pai pertencia à familia dos magnatas da empresa BMW, era filho do primeiro casamento de Magda com o industrial Günther Quandt, de quem ela se divorciou para casar, mais tarde, com o nazista Joseph Goebbels.

Segundo Huber, o suicídio coletivo no centro do poder nazista começou já em janeiro de 1945, quando nem o próprio ditador conseguia acreditar que seria possível uma vitória. No livro, o historiador diz que a “histeria nacional de suicídio” é o capítulo mais obscuro da história do Terceiro Reich. Foram dezenas de milhares de suicídios em toda a Alemanha. Só em Berlim, mais de seis mil pessoas suicidaram-se nos últimos dias da guerra. O clima de medo era não somente em relação aos soviéticos: também as grandes cidades ocidentais, como Munique ou Colônia, que foram libertadas pelos aliados, caíram na febre da maior onda de suicídio do mundo moderno.

Os números, no entanto, são apenas aproximados, porque nunca houve um levantamento exato dos casos, que até agora não tinham despertado atenção. Eram homens e mulheres que entraram em pânico por medo do futuro em um país ocupado, depois de uma ditadura durante a qual haviam esquecido qualquer resquício de humanidade.

— De um lado havia o confronto com um mundo que estava desmoronando. Depois de mais de 12 anos de regime nazista, as pessoas se deparavam com o nada, como se o mundo tivesse acabado. Mas havia também a convicção da culpa que haviam acumulado nesses anos e o medo terrível de que os inimigos vitoriosos na guerra praticassem contra elas as mesmas atrocidades que os nazistas haviam cometido contra os judeus — explica Huber.

No cemitério de Demmin, cidade que tem hoje 12,2 mil habitantes, um monumento lembra a tragédia que tomou conta do lugar no início de 1945. Quando os soviéticos atingiram Demmin, no estado de Mecklemburgo-Pomerânia Ocidental, 230 km ao norte de Berlim, um pânico coletivo tomou conta da população. Em apenas três dias, quase mil pessoas se mataram.

— Mães e pais matavam os filhos por afogamento, estrangulamento ou com um tiro na cabeça, para depois fazer o mesmo consigo. A tragédia marcou para sempre a vida de muitas pessoas que conseguiam matar os filhos mas depois não tinham coragem de se matar — revela Huber.

Apenas um homem de Demmin, entre as centenas que sobreviveram depois de matar a família (e não ter tido coragem de tirar a própria vida), foi julgado pelo crime: o assassinato da esposa e dos dois filhos a tiros. O julgamento terminou com absolvição, porque os juízes consideraram o pai vítima de uma situação extrema, sem culpabilidade e isento de pena, do ponto de vista jurídico.

As vítimas da tragédia de Demmin estão sepultadas em uma cova coletiva. Os mortos eram enterrados apenas com a roupa que usavam no momento final ou em caixões de papelão — com tantos cadáveres em tão pouco tempo, não havia mais caixões de madeira disponíveis. As lápides, improvisadas, às vezes nem revelam os nomes, apenas descrições sobre a morte, como “menina enforcada pelo avô”, “menino afogado pela mãe” ou “crianças levadas pela mãe no suicídio”.

Manfred Schuster tinha 10 anos quando foi testemunha da tragédia de Demmin. Ele viu uma mãe pular no rio Peene, tendo os filhos pequenos fixados junto ao próprio corpo com a ajuda de uma corda de varal, usada para pendurar roupas.

— Duas das crianças conseguiram se desamarrar e nadar até a margem, de onde observaram a última luta dos irmãos para não afundar nas águas junto com a mãe — lembra Schuster, hoje com 80 anos, filho de um soldado da Wehrmacht.

SUICÍDIOS ERAM ROTINA NO PÓS-GUERRA

Karl Schlosser, também de 80 anos, é o último sobrevivente das famílias suicidas. Ele lembra como conseguiu escapar da tentativa da mãe de matá-lo com uma navalha de barbear.

— Minha mãe preferiu matar os dois filhos e seu pai, meu avô, para depois se suicidar, em vez de viver em uma cidade dominada pelas tropas do ditador soviético Josef Stalin — recorda Schlosser, que acompanhou a “epidemia de suicídio” em sua cidade natal como a principal rotina do final da guerra.

Todos os dias, ele via corpos sendo levados pela correnteza do rio, adultos e crianças enforcados que ainda estavam pendurados nas árvores ou pessoas mortas com a fisionomia desfigurada por causa do veneno que haviam tomado ou recebido dos parentes próximos. O veneno mais consumido era o cianureto de potássio, e, segundo Schlosser, as pessoas falavam sobre o cianureto na taça de vinho tinto como se fosse um pouco de leite no café.

— Toda a elite do regime nazista tinha doses de cianureto que planejava usar para o caso de cair nas mãos do inimigo. Com esse veneno, alguns condenados no Tribunal de Nuremberg evitaram uma execução, morrendo antes — explica o historiador e autor do livro. — Esse veneno era muito popular porque qualquer farmacêutico conseguia produzi-lo artesanalmente e porque ele oferecia a possibilidade de uma morte rápida.

Huber esteve na região do Palatinado, no Sudoeste da Alemanha, e teve a ideia de escrever o livro ao recordar as narrativas do seu pai, que tinha 11 anos quando a guerra acabou na região. Os soldados alemães tinham ido embora, os americanos eram esperados, mas não haviam ainda chegado, e as pessoas começaram a acabar com suas vidas como se tivessem perdido o equilíbrio mental.

— Meu pai contava que havia um clima de profunda incerteza, talvez porque as pessoas, no fundo, já soubessem que quase tudo que era lei no regime nazista passaria a ser visto como crime contra a Humanidade — conta Huber.



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