domingo, 1 de junho de 2008

O evangelho de Lucas - parte 29

Depois da parábola do rico e Lázaro, que finaliza Lucas 16, o capítulo 17 começa com uma dura advertência de Jesus a respeito dos escândalos ou tropeços daqueles que afirmam segui-lo. A palavra traduzida literalmente por "escândalo" é σκάνδαλον - skandalon - que significava originalmente uma armadilha, ou uma pedra de tropeço. De fato, é uma tremenda responsabilidade seguir a Jesus, mas chama a atenção o fato de que Jesus diz que é inevitável que escândalos aconteçam. Afinal, a igreja é composta de seres humanos, e seres humanos são falhos por natureza (para uma ampliação deste tema, leia outro artigo deste blog clicando aqui).

A seguir (vv. 3-4), Jesus fala da importância do perdão, mesmo diante de alguém que peque 7 vezes num mesmo dia, e se apresente diante de nós dizendo que está arrependido e por isso peça o nosso perdão. Obviamente, Jesus está fazendo uso de uma hipérbole, uma figura de linguagem em que o manifesto exagero ajuda a fortalecer a importância da idéia que se quer expressar. Este não era um recurso comum aos pregadores daquele tempo e, talvez por isso mesmo, os discípulos pediram-lhe que lhes aumentara a fé (v. 5), ao que Jesus comparou a fé com um grão de mostarda (v. 6), a menor das sementes, que, entretanto, se tornava numa árvore. O fato de Jesus usar como exemplo a amoreira mostra que ele estava nas regiões baixas da Galiléia, onde havia muitas amoreiras. Aí ele aproveita para reforçar a sua condição de Senhor e a nossa de servos. Não nos compete ir à frente de Jesus, mas servi-lo antes de qualquer coisa (vv. 7-8), e não devemos esperar agradecimento por isso (v. 9), pois não estamos fazendo nada mais do que a nossa obrigação de discípulos. Somos, pois, "servos inúteis", na tradução da expressão δουλοι αχρειος - doulos achreios – e por "inútil" deve-se entender alguém que não tem mérito algum para estar onde está, o que é o caso do cristão diante da graça de Deus.

É interessante verificar que Jesus falou de gratidão no v. 9, ou seja, Deus não precisa agradecer-nos por segui-lo, e a cura dos dez leprosos quando passava pelo meio de Samaria e da Galiléia (vv. 11-19) mostra o outro lado da gratidão, a nossa para com Deus. Quando Jesus entra em uma aldeia, dez leprosos vão ao seu encontro (v. 12), gritando e clamando de longe pela misericórdia do Mestre (v. 13), já que a Lei lhes impedia de estar próximos de pessoas sadias (Levítico 13:46). Curiosamente, Jesus não faz nada a princípio, mas lhes recomenda que se apresentassem aos sacerdotes (v. 14). Deve ter sido frustrante para os leprosos o fato de não obterem a cura imediatamente, fosse por uma palavra ou por um gesto de Jesus, mas a Sua ordem exigia deles fé. E eles mostraram fé, ao dirigir-se ao templo para se apresentarem aos sacerdotes. Esta era uma maneira, também, de Jesus dar testemunho público de suas obras aos sacerdotes judeus. No trajeto, foram curados. Isto lembra a experiência de Naamã, o general sírio a quem Eliseu ordenara que se banhasse 7 vezes no Jordão (2 Reis 5:1-19). Estas passagens trazem profundos ensinamentos, entre os quais a consciência de que a fé não é um momento, um instante, mas uma trajetória. E foi assim que os leprosos foram curados. Certamente, demorou algum tempo e se lhes exigiu muito do físico, o fato de se apresentarem aos sacerdotes, mas apenas um dos leprosos retornou (v. 15), e era justamente o samaritano (v. 16). Ora, samaritanos e judeus se odiavam, como já estudamos na parábola do bom samaritano, mas esta passagem (que, reforce-se, não é uma parábola) revela que entre os 10 leprosos havia 9 judeus e 1 samaritano unidos na sua desgraça, comungando da mesma doença e do mesmo desespero por cura. Isto nos mostra como o preconceito não tem razão de existir quando as pessoas estão no seu estado mais animal, mais puro, por assim dizer, ainda que sua situação seja vista como a mais repugnante impureza. Os 10 já estavam segregados da sociedade, e não havia razão para que se discriminassem entre si. Por isso clamaram juntos pela salvação de Jesus. Afinal, é o preconceito que é doentio. Entretanto, somente um deles, o samaritano, retornou para agradecer, e o fez de maneira simples e humilde, prostrou-se com o rosto em terra e agradeceu, ao que Jesus ironizou, perguntando pelos outro nove (v. 17). Só deu glória a Deus aquele que era estrangeiro (v. 18), mas este sim obteve o favor completo de Jesus, pois voltou para casa literalmente são e salvo (v. 19). Essa história nos mostra que, infelizmente, a ingratidão faz parte da depravação humana, e que é lamentavelmente normal que as pessoas não mostrem gratidão a quem lhes fez algum bem. Isso não deve nos surpreender nem nos desanimar, quando nos deparamos com os ingratos da vida, afinal o próprio Jesus passou por isso e a vida prosseguiu.

O final do capítulo 17 é reservado para os acontecimentos finais. Primeiramente, os discípulos perguntam ao Mestre sobre o Reino de Deus, ao que Ele lhes respondeu dizendo que o Reino de Deus não viria em visível aparência (v. 20) naqueles dias, pois estava dentro deles (v. 21) e dentro de nós. Charles Chaplin foi um dos maiores gênios do século XX, e, até onde se sabe, era ateu. Entretanto, no seu maravilhoso filme "O Grande Ditador" (1940), ele coloca na boca do ditador Hynkel (a triste paródia de Hitler), o último discurso, em que estas palavras de Jesus são lembradas:

O último discurso

Sinto muito, mas não pretendo ser um imperador. Não é esse o meu ofício. Não pretendo governar ou conquistar quem quer que seja. Gostaria de ajudar – se possível – judeus, o gentio... negros... brancos.

Todos nós desejamos ajudar uns aos outros. Os seres humanos são assim. Desejamos viver para a felicidade do próximo – não para o seu infortúnio. Por que havemos de odiar e desprezar uns aos outros? Neste mundo há espaço para todos. A terra, que é boa e rica, pode prover a todas as nossas necessidades.

O caminho da vida pode ser o da liberdade e da beleza, porém nos extraviamos. A cobiça envenenou a alma dos homens... levantou no mundo as muralhas do ódio... e tem-nos feito marchar a passo de ganso para a miséria e os morticínios. Criamos a época da velocidade, mas nos sentimos enclausurados dentro dela. A máquina, que produz abundância, tem-nos deixado em penúria. Nossos conhecimentos fizeram-nos céticos; nossa inteligência, empedernidos e cruéis. Pensamos em demasia e sentimos bem pouco. Mais do que de máquinas, precisamos de humanidade. Mais do que de inteligência, precisamos de afeição e doçura. Sem essas virtudes, a vida será de violência e tudo será perdido.

A aviação e o rádio aproximaram-nos muito mais. A própria natureza dessas coisas é um apelo eloqüente à bondade do homem... um apelo à fraternidade universal... à união de todos nós. Neste mesmo instante a minha voz chega a milhares de pessoas pelo mundo afora... milhões de desesperados, homens, mulheres, criancinhas... vítimas de um sistema que tortura seres humanos e encarcera inocentes. Aos que me podem ouvir eu digo: Não desespereis! A desgraça que tem caído sobre nós não é mais do que o produto da cobiça em agonia... da amargura de homens que temem o avanço do progresso humano. Os homens que odeiam desaparecerão, os ditadores sucumbem e o poder que do povo arrebataram há de retornar ao povo. E assim, enquanto morrem homens, a liberdade nunca perecerá.

Soldados! Não vos entregueis a esses brutais... que vos desprezam... que vos escravizam... que arregimentam as vossas vidas... que ditam os vossos atos, as vossas idéias e os vossos sentimentos! Que vos fazem marchar no mesmo passo, que vos submetem a uma alimentação regrada, que vos tratam como gado humano e que vos utilizam como bucha de canhão! Não sois máquina! Homens é que sois! E com o amor da humanidade em vossas almas! Não odieis! Só odeiam os que não se fazem amar... os que não se fazem amar e os inumanos!

Soldados! Não batalheis pela escravidão! Lutai pela liberdade! No décimo sétimo capítulo de São Lucas está escrito que o Reino de Deus está dentro do homem – não de um só homem ou grupo de homens, ms dos homens todos! Está em vós! Vós, o povo, tendes o poder – o poder de criar máquinas. O poder de criar felicidade! Vós, o povo, tendes o poder de tornar esta vida livre e bela... de fazê-la uma aventura maravilhosa. Portanto – em nome da democracia – usemos desse poder, unamo-nos todos nós. Lutemos por um mundo novo... um mundo bom que a todos assegure o ensejo de trabalho, que dê futuro à mocidade e segurança à velhice.

É pela promessa de tais coisas que desalmados têm subido ao poder. Mas, só mistificam! Não cumprem o que prometem. Jamais o cumprirão! Os ditadores liberam-se, porém escravizam o povo. Lutemos agora para libertar o mundo, abater as fronteiras nacionais, dar fim à ganância, ao ódio e à prepotência. Lutemos por um mundo de razão, um mundo em que a ciência e o progresso conduzam à ventura de todos nós. Soldados, em nome da democracia, unamo-nos!

Hannah, estás me ouvindo? Onde te encontrares, levanta os olhos! Vês, Hannah? O sol vai rompendo as nuvens que se dispersam! Estamos saindo da treva para a luz! Vamos entrando num mundo novo – um mundo melhor, em que os homens estarão acima da cobiça, do ódio e da brutalidade. Ergue os olhos, Hannah! A alma do homem ganhou asas e afinal começa a voar. Voa para o arco-íris, para a luz da esperança. Ergue os olhos, Hannah! Ergue os olhos!

Chaplin pagou um preço caro pela ousadia de pregar a igualdade no último discurso do Grande Ditador. Foi acusado de comunista pelos americanos e perseguido na "caça às bruxas" promovida pelo senador McCarthy, o que levou-o a se auto-exilar na Europa, de onde só retornou aos EUA em 1971 para receber um Oscar honorário.

Retornando aos versículos finais de Lucas 17, Jesus ensina aos discípulos que chegaria o dia em que muitos desejariam ver um dos dias do Filho do Homem, mas não o veriam (v. 22). Isto pode tanto ser entendido em retrospectiva, ou seja, chegaria o dia em que os discípulos relembrariam os dias da presença física de Jesus na Terra, como também para nós hoje em dia, que temos a oportunidade de estar com Cristo todos os dias, particularmente ou em adoração coletiva, mas chegará o dia em que isto não mais acontecerá. Devemos estar alertas porque ninguém vai dizer "Ei-lo aqui" ou "Ei-lo" ali", pois o dia do Filho do Homem virá como um relâmpago que rasga o céu de uma extremidade à outra (v. 24), de surpresa, como nos dias de Noé (v.26), em que o povo comia, bebia e festejava até o dia em que Noé entrou na arca e veio o dilúvio (v. 27). O mesmo aconteceu nos dias de Ló (v. 29), e não devemos ter a atitude de sua mulher (v. 32), que olhou para trás, dando valor aos bens e prazeres terrenos em detrimento da glória que nos está reservada nos céus. Por fim, ele usa uma alegoria de difícil interpretação, dizendo que "onde estiver o corpo, aí se ajuntarão também os abutres" (v. 37). Há várias interpretações, inclusive com águias no lugar de abutres, representando o império romano, tendo como corpo o cadáver crucificado de Cristo, mas a que melhor se encaixa no contexto, a meu ver, é a de que o corpo é um cadáver que representa o fim de Israel, o reino de Deus na Terra, e ali se reuniriam as águias comandadas por Cristo para o final dos tempos. Esta imagem também pode ser entendida como uma percepção, por parte do crente, dos sinais da vinda de Jesus. Numa imagem deveras negativa, assim como os abutres localizam o corpo putrefato, os crentes devem saber localizar e interpretar os sinais da parusia, a segunda vinda de Cristo.

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