Páginas

sábado, 15 de março de 2008

Carta aos Romanos - 10

Antes de começar a análise de Romanos 9, há um tema que Paulo vem desenvolvendo até aqui e que está intimamente relacionado ao que ele diz neste capítulo, a respeito de Efésios 2:8, sobre o fato da graça ou da fé (ou ambas) ser (serem) dom (dons) de Deus.

Efésios 2:8 Porque pela graça sois salvos, por meio da fé; e isto não vem de vós, é dom de Deus.

Primeiramente, uma análise textual do grego utilizado por Paulo, segundo Barnes ("Albert Barnes' Notes on the Bible"):

E isto não vem de vós: Quer dizer, a salvação não provém de nós mesmos. A palavra traduzida como "isto" - τοῦτο touto – indica o gênero neutro, e a palavra "fé" - πίστις pistis – está no feminino. A palavra "isto", portanto, não se refere especificamente a "fé", como sendo dom de Deus, mas à "salvação pela graça", da qual Paulo vinha falando. Esta é a interpretação da passagem que é a mais óbvia, e que modernamente é considerada a única verdadeira; como diz Bloomfield. Muitos críticos, entretanto, como Doddridge, Beza, Piscator, e Crisóstomo, sustentam que a palavra "isto" (τοῦτο touto) se refere a "fé" (πίστις pistis); e Doddridge alega que este uso é comum no Novo Testamento. Do ponto de vista da gramática, esta opinião é certamente duvidosa, se não insustentável; mas do ponto de vista da teologia esta é uma questão de muito pouca importância.

Independentemente do fato desta passagem provar esta ou aquela posição, é certamente verdadeiro que fé é dom de Deus. Ela existe na mente somente quando o Espírito Santo lá a incute, e é, juntamente com todas as outras qualidades cristãs, diretamente ligada ao agente de Deus no coração. Esta opinião, entretanto, não milita absolutamente a favor da doutrina de que o homem "crê" por si só. Não é Deus que "crê" por ele, porque isto é impossível. É a sua própria mente que, de fato, crê, ou que exercita a fé; veja, por exemplo, Romanos 4:3. Da mesma maneira, "arrependimento" é algo que deve ser dirigido diretamente a Deus. Não é um dos frutos da operação do Espírito Santo na alma. Mas o Espírito Santo não se "arrepende" por nós. É a nossa "própria mente" que se arrepende; nosso próprio coração que sente; nossos próprios olhos que choram – e sem isso não poderia haver arrependimento verdadeiro. Ninguém pode se arrepender pelo outro; e Deus não pode nem deveria se arrepender por nós. Ele não fez nada errado, e se o arrependimento tem que ser exercitado, ele deve ser exercitado, portanto, por nossa própria mente. Quanto à fé, Deus não pode crer por nós. "Nós" devemos crer ou "nós" seremos condenados. Entretanto, isto não causa conflito nenhum com a opinião de que se nós exercitamos a fé, a inclinação, o desejo para fazer isto deve ser ligada ao agente de Deus no coração. Eu não contenderia, portanto, com a construção gramatical desta passagem, com respeito ao ponto teológico nela contido; isto ainda concorda melhor com a construção gramatical óbvia, e com a estrutura da passagem para entender que a palavra "isto" está se referindo não a "fé" somente, mas a "salvação pela graça". Também Calvino entende assim, no que é acompanhado por Storr, Locke, Clarke, Koppe, Grócio e outros.

Em resumo, Barnes entende que, embora o sentido da frase seja de que a salvação é dom de Deus, e não a fé propriamente, pelo menos no contexto do que Paulo diz neste versículo, a fé não pode ser excluída desta perspectiva de que ela, também, é dom de Deus. Eu acho que um outro texto de Paulo, na carta aos filipenses, deixa esta idéia mais clara:

Filipenses 1:28 e que em nada estais atemorizados pelos adversários, o que para eles é indício de perdição, mas para vós de salvação, e isso da parte de Deus;
Filipenses 1:29 pois vos foi concedido, por amor de Cristo, não somente o crer nele, mas também o padecer por ele,

Nestes versículos, "crer" (logo, "fé") é "concessão" (logo, "dom") de Deus ao pecador. A palavra grega traduzida por "concedido" aqui é χαρίζομαι (charizomai), ou seja, conceder uma graça, um dom, uma forma verbal de χάρις (charis), dom, favor, graça, de onde vem nossa atual palavra "carisma", conforme diz o Dicionário Houaiss:
Acepções
■ substantivo masculino
1 Rubrica: teologia.
dom extraordinário e divino concedido a um crente ou grupo de crentes, para o bem da comunidade
Etimologia
gr. khárisma,atos 'graça; favor, benefício' pelo lat. charísma,àtis 'dom da natureza, graça divina'

Assim, me parece que há evidências suficientes para se afirmar que a fé é dom de Deus, havendo aqui um aparente paradoxo: afinal, qual é a atitude humana diante da crença, ela é facultativa ou compulsória? Se Deus é, de alguma forma, o motor da fé no coração do homem, cabe a ele dizer o "sim" (o "concordar" com a fé) de livre e espontânea vontade? Existe o "livre arbítrio" do homem, ou a graça de Deus é irresistível? Aqui há pano para um caminhão de mangas, camisas e camisolas, mas eu creio que a graça de Deus é irresistível. Não me parece que o homem tenha poder para se contrapor à eleição de Deus (e aqui também misturamos este caldeirão - já conturbado de ingredientes - com a predestinação). Afinal, Lucas faz uma ligação entre fé e predestinação em Atos 13:48 – "Os gentios, ouvindo isto, alegravam-se e glorificavam a palavra do Senhor; e creram todos quantos haviam sido destinados para a vida eterna".

A pergunta é: "o homem pode dizer não à salvação pela graça concedida por Deus?" Esta é uma pergunta que nos parece estranha também, pois não conseguimos imaginar que alguém possa dizer não à graça salvadora de Deus. Vemos todos os dias pessoas sendo apresentadas ao evangelho de Cristo, e muitos deles dizem um "não" circunstancial, mas não é esta exatamente a questão. Afinal, quando Deus quer alguém da maneira que diz aos profetas, por exemplo:

Jeremias 31:3 De longe o Senhor me apareceu, dizendo: Pois que com amor eterno te amei, também com benignidade te atraí.

Oséias 11:3 Todavia, eu ensinei aos de Efraim a andar; tomei-os nos meus braços; mas não entendiam que eu os curava.
Oséias 11:4 Atraí-os com cordas humanas, com laços de amor; e fui para eles como os que tiram o jugo de sobre as suas queixadas, e me inclinei para lhes dar de comer.

É possível resistir a esta atração? É possível livrar-se desses "laços de amor", dessas "cordas humanas" de Deus?

Eu entendo que não. Simplesmente não consigo imaginar o homem dizendo não à salvação de Deus, e me parece que a Bíblia apresenta fortes evidências de que a graça de Deus é irresistível. Irresistível talvez não no sentido de "forçar", "obrigar" a pessoa a crer, ou seja, "vencer", mas no sentido de "convencer" de tal forma que não reste ao homem outra alternativa senão dizer "sim". Dentro do contexto de Romanos 8:28-30, daqueles "que são chamados segundo o seu propósito", ou seja, que os conheceu e os predestinou e os chamou e os justificou e os glorificou. Este trecho também está relacionado com Romanos 9, em que Paulo retoma a questão dos judeus e fala da rejeição de Israel como povo escolhido para levar o conhecimento de Deus a todos os povos. Numa possível analogia com o que havia acontecido com Nabucodonosor (Daniel 4:31) e Belsazar (Daniel 5:24-28), havia passado de Israel o reino.

Em especial nos versículos 14 a 24 de Romanos 9, Paulo defende o direito de Deus fazer o que bem quiser em relação aos homens, citando o que Deus disse a Moisés exatamente no momento em que o Todo-Poderoso lhe mostrou sua glória (Êxodo 33:19): "Terei misericórdia de quem me aprouver ter misericórdia e compadecer-me-ei de quem me aprouver ter compaixão" (v. 15), continuando no versículo seguinte: "Assim, pois, não depende de quem quer ou de quem corre, mas de usar Deus a sua misericórdia", finalizando o raciocínio no v. 18, "logo, tem ele misericórdia de quem quer e também endurece a quem lhe apraz". Aí, no v. 19, Paulo fala especificamente de resistir à vontade de Deus, argumentando: "Tu, porém, me dirás: De que se queixa ele ainda? Pois quem jamais resistiu à sua vontade?". Esta é a tradução Almeida Revista e Atualizada, que não ajuda muito na compreensão. Vejamos outras versões, portanto:

Mas algum de vocês me dirá: 'Então, por que Deus ainda nos culpa? Pois, quem resiste à sua vontade?' (NVI)

Objetarás: Por que ele se queixa, se ninguém pode opor-se à sua decisão? (Bíblia do Peregrino)

Dir-me-ás então: por que ele ainda se queixa? Quem, com efeito, pode resistir à sua vontade? (Bíblia de Jerusalém)


Na argumentação paulina, de forte influência socrática, com perguntas e respostas logicamente concatenadas, ele já adianta uma possível objeção à liberdade absoluta de Deus decidir os destinos humanos, a de que Ele não poderia culpar ninguém, já que todos os destinos – para o bem e para o mal – estariam previamente traçados. Paulo, então, faz a analogia com o oleiro, dizendo "Quem és tu, ó homem, para discutires com Deus?", ou seja, quem somos nós, humanos, para discutirmos os desígnios da soberania de Deus que, como o oleiro, faz do mesmo barro vasos para honra e para desonra (v. 21) segundo lhe apraz? Contextualizando, Paulo está falando aos judeus convertidos de Roma sobre a rejeição de Israel e a acolhida dos gentios, que passam também a ser (co-)destinatários da graça de Deus, indistintamente. Para tanto, ele cita Oséias e Isaías, mostrando que Deus chamaria "povo meu ao que não era meu povo; e amada, à que não era amada" (Oséias 2:23), segundo a Sua soberania. Paulo ainda aponta, nos versos finais do capítulo 9, a razão para esta, digamos, "inversão na lógica" do plano de Deus. Os gentios, que não buscavam a justificação e cujas obras os condenavam, conseguiram alcançá-la pela fé. Já os judeus, que confiavam nas obras da Lei, não conseguiram alcançá-la porque não a buscaram pela fé, e tropeçaram na pedra de escândalo, Jesus Cristo e o evangelho da graça por Ele inaugurado, e aquele que nele crê não será confundido (v. 33), o que remete, também, à questão da perseverança dos santos. Afinal, quem realmente crê em Cristo, pode ser confundido? A Bíblia diz que não.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Obrigado por visitar O Contorno da Sombra!
A sua opinião é bem-vinda. Comentários anônimos serão aprovados desde que não apelem para palavras chulas ou calúnias contra quem quer que seja.
Como você já deve ter percebido, nosso blog encerrou suas atividades em fevereiro de 2018, por isso não estranhe se o seu comentário demorar um pouquinho só para ser publicado, ok!
Esforçaremo-nos ao máximo para passar por aqui e aprovar os seus comentários com a brevidade possível.