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sexta-feira, 28 de março de 2008

O evangelho de Lucas - parte 15

O capítulo 11 de Lucas é marcado por dois temas principais: a oração e o apego à religiosidade. Dentro do seu estilo próprio de contrastar a nova e a velha aliança de Deus com os homens, Lucas mostra as duas formas de, digamos, abordagem deste relacionamento. De um lado, a maneira simples, espontânea e prática com que Jesus ensina seus discípulos a orar. De outro lado, a maneira complicada, ritualística e formalista dos fariseus e intérpretes da lei. Primeiramente, quando Jesus estava orando, dando o exemplo de uma vida de oração, Ele é indagado por um discípulo sobre como devia orar (v. 1). Aparentemente, João Batista também havia ensinado seus discípulos a orar e os discípulos de Cristo sentiam a necessidade de ter uma oração que os identificasse como Seus seguidores. Então, Jesus ensina uma versão do Pai Nosso (vv. 2-4), um pouco diferente daquela de Mateus 6:9-13, que também foi ensinada dentro de outro contexto, o Sermão da Montanha. Os estudiosos da cronologia dos evangelhos sugerem que a oração do Pai Nosso em Mateus foi ensinada por ocasião da segunda Páscoa que Jesus passou com os seus discípulos, e a oração ensinada em Lucas aconteceu pouco depois da terceira Páscoa em que eles estavam juntos (a quarta seria a da Paixão e Ressurreição). Há variações nos manuscritos daquele tempo, mas em geral, todos buscam harmonizar a oração do Pai Nosso com aquela transcrita em Mateus.

Ainda dentro desse espírito de oração, Jesus ensina outra parábola, a do amigo inoportuno (vv. 5-8), que procura ajuda tarde da noite para ter o que dar de comer a outro amigo que chegou de viagem. A hospitalidade era algo fundamental para aquele povo e aquela cultura. As dificuldades de comunicação e transporte faziam com que as paradas em cada viagem dependessem da hospitalidade de conhecidos e mesmo de estranho. A Bíblia é cheia desses episódios, e não por outra razão o escritor de Hebreus aconselhou a praticar a hospitalidade, "porque por ela alguns, sem o saberem, hospedaram anjos" (Hebreus 13:2). Entretanto, o que Jesus quer frisar aqui é a necessidade de insistir na oração, sem desanimar. Mais uma vez, Ele mostra a Pessoalidade de Deus, dentro do antropomorfismo que caracteriza as descrições de Deus nas narrativas bíblicas, ou seja, aparentemente, e apenas para fins didáticos, Deus tem um comportamento tipicamente humano, permitindo-se importunar a altas horas da noite para atender os Seus filhos que oram sem cessar. Os versículos seguintes (9-13) reforçam esta idéia, comparando Deus a um Pai que zela pelas necessidades de Seus filhos, e que se um deles pede um peixe, Ele certamente não lhe dará uma cobra. Por fim, Jesus complementa: "Se vós, pois, sendo maus, sabeis dar boas dádivas aos vossos filhos, quanto mais dará o Pai celestial o Espírito Santo àqueles que lho pedirem?" (v. 13). Além de também ter sido referido no contexto do Sermão da Montanha (Mateus 7:9-11), este é um versículo muito utilizado pelos teólogos pentecostais para fundamentarem o batismo no Espírito Santo, um sinal visível pelo dom de línguas, mas Jesus está claramente se referindo à oração, a um auxílio maior e mais efetivo do Espírito Santo em momentos de suprema dificuldade. No texto correlato de Mateus 7:11, Jesus diz que o Pai "dará coisas boas", certamente se referindo a tudo o que Deus tem de bom para dar ao Seus filhos. Desta maneira, com todo o respeito aos irmãos pentecostais, não há substrato firme para se construir uma teologia do batismo no Espírito Santo com base neste versículo.

Em seguida, Lucas narra a expulsão "de outra feita", de um demônio que havia deixado mudo um homem (vv. 14-23). Nas prováveis versões correspondentes de Mateus 12:22-30 e Marcos 3:20-27, o homem além de mudo, havia ficado cego. Expulso o demônio, o homem volta a falar, para espanto de todos que presenciaram a cena, inclusive "alguns dentre eles" (os fariseus, segundo Mateus 12:24) murmuravam insinuando que Jesus fazia isso pelo poder de Belzebu, "o maioral dos demônios" (v. 15). Belzebu é um nome atribuído a Satanás que surge apenas no Novo Testamento, mas muitos vêem sua origem no Velho Testamento, nesta passagem:

2Reis 1:2 Ora, Acazias caiu pela grade do seu quarto alto em Samária, e adoeceu; e enviou mensageiros, dizendo-lhes: Ide, e perguntai a Baal-Zebube, deus de Ecrom, se sararei desta doença.
2Reis 1:3 O anjo do Senhor, porém, disse a Elias, o tisbita: Levanta- te, sobe para te encontrares com os mensageiros do rei de Samária, e dize-lhes: Porventura não há Deus em Israel, para irdes consultar a Baal-Zebube, deus de Ecrom?


Belzebu provavelmente era uma corruptela de Baal-Zebube (literalmente, o "deus-mosca", que por sua vez derivara de Baal). Possivelmente, o culto a Belzebu perdurara em alguma tribo vizinha, e os judeus o identificavam com Satanás. Assim, era uma enorme ofensa que faziam a Jesus ao compará-lo, ainda que veladamente, com o próprio diabo. Sugeriam, portanto, que o diabo havia voluntariamente se afastado do homem mudo (e cego), apenas para que Jesus fosse exaltado. Jesus imediatamente mostra que sabia o que eles estavam dizendo, e mostra que Satanás não podia dividir-se contra si mesmo, e que Ele, o Mestre, era claro e franco inimigo do diabo, terminando por dizer que o demônio podia, sim, voltar à pessoa de onde saíra, porque não encontrava repouso fora (v. 24), e, voltando, encontrava a casa (pessoa) varrida e ornamentada (v. 24), pelo que levava, ainda, mais sete espíritos piores com ele, tornando o novo estado do homem pior do que o primeiro (v. 26). Logo, era necessário tomar cuidado com esta casta de demônios. Mal terminara de falar essas palavras, uma mulher diz que bem-aventurada era aquela que o havia concebido (Maria) e os seios que o haviam amamentado (v. 28). Jesus responde dizendo que "bem-aventurados são os que ouvem a palavra de Deus e a guardam", mostrando que não se justifica a pretensão católica de atribuir a Maria uma condição a que ele não aspirou, e que o próprio Mestre considerou secundária diante da prática efetiva do evangelho. Diante da multidão que lhe pedia sinais, Jesus fala apenas do sinal de Jonas (vv. 29-30), que era obviamente uma linguagem cifrada que somente seria entendida após sua ressurreição, e os três dias que estaria no ventre da terra (o "peixe grande" de Jonas) após sua crucificação. Este seria um sinal amargo, pois o juízo já teria sido feito sobre o povo de Israel, ao contrário do profeta Jonas, que, não sendo ninivita, não mostrando-lhes nenhuma simpatia, fez uma pregação curta e seca, desacompanhada de sinais, mas todo o povo de Nínive aproveitou o tempo oportuno e se arrependeu, naquele que pode ser chamado de sucesso profético mais indesejado da história bíblica. A comparação entre os ministérios de Jesus e de Jonas revela um total êxito do último, enquanto o do primeiro termina (humanamente falando) em fracasso, em morte de cruz. Os três dias que se passariam até a ressurreição revelariam, entretanto, que o ministério de Jesus foi muito mais valioso e poderoso do que o de Jonas, mas os judeus só o perceberiam quando ele houvesse terminado.

Por fim, dando seqüência ao contraste que Lucas propõe entre a espontaneidade dos discípulos de Cristo e o ritualismo formalista dos fariseus, Jesus é convidado para almoçar na casa de um fariseu (v. 37). Curiosamente, este é o único almoço registrado na Bíblia e, por conseguinte, na vida pública de Jesus. Os jantares e ceias são mais comuns. O almoço na casa do fariseu foi um episódio em que Jesus proferiu profundas condenações dos fariseus e dos intérpretes da lei. Certamente, foi um momento muito constrangedor para essas duas categorias de judeus que se julgavam privilegiadas no contexto da sociedade em que viviam. Depois de condenar o seu formalismo, comparando-os a sepulcros invisíveis por cima dos quais as pessoas caminhavam sem perceber o que estava abaixo (vv. 38-44), os intérpretes da lei confrontam Jesus, dizendo que, falando assim, Ele também os estava ofendendo (v. 45). O Mestre não usa meias palavras, nem faz média com eles. Pelo contrário, também os acusa de atarem fardos pesados demais para as pessoas carregarem (v. 46), e os chama de assassinos dos profetas (vv. 47-51), censurando-os por não apenas não entrarem no reino dos céus, mas também impedirem que outros entrem (v. 52). As palavras de Jesus foram muito duras, e certamente isto fez com que fariseus e doutores da lei se unissem para conspirar contra Ele (vv. 53-54). O "jogo" estava sendo jogado e, mesmo no campo do adversário, Jesus havia se colocado num "time" diferente daquele dos fariseus.

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