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segunda-feira, 30 de junho de 2008

Justiça no pensamento aristotélico - 3

3) ÉTICA E JUSTIÇA EM ARISTÓTELES

Como lembra Paulo Nader, “diferentemente de seu mestre (Platão), que situava as questões filosóficas num plano de profunda abstração, Aristóteles procurava ligar-se mais aos fatos empíricos, na contemplação dos fenômenos sociais[1]. Para tanto, o estagirita concentra-se na questão da virtude (areté), do agir virtuoso, como referencial da conduta humana desejável e esperada. A sociedade grega, já significativamente desenvolvida para os padrões da época, não consegue mais ver-se explicada de maneira abstrata, etérea, e as antigas interpretações míticas não mais dão conta das necessidades reais da organização da vida em sociedade. Falando sobre a origem da democracia grega, Werner Jaeger traça o retrato dessa transformação:
“Antes de chegar a ela, assistimos ao desenvolvimento de uma série de graus intermediários, dos quais o mais antigo é uma espécie de aristocracia. Esta, porém, já não é a mesma de outrora. A diké constitui-se em plataforma da vida pública, perante a qual são considerados “iguais” grandes e pequenos. Os próprios nobres tinham de submeter-se ao novo ideal político que surgiu da consciência jurídica e se tornou medida para todos. Nas épocas seguintes de lutas sociais e violentas revoluções, até os nobres se viram constrangidos a procurar amparo nela. Na própria linguagem manifesta-se a formação do novo ideal. Encontramos, desde os tempos mais recuados, uma série de palavras que designam certos gêneros de delitos, como adultério, assassínio, rapto, furto. Mas falta-nos um conceito genérico para designar a propriedade pela qual evitamos aquelas transgressões e nos mantemos dentro dos justos limites. Para esse efeito a nova idade criou o termo abstrato Dikaiosýne, tal como na época do mais alto apreço pelas virtudes combativas se criaram substantivos correspondentes à destreza guerreira, à valentia nos combates pugilísticos, etc., termos ausentes nas línguas modernas. O novo termo proveio da progressiva intensificação do sentimento da justiça e da sua expressão num determinado tipo de homem, numa certa areté. Originariamente, as aretai eram tipos de excelências que se possuíam ou não. Nos tempos em que a areté de um homem equivalia à sua coragem, colocava-se no centro este elemento ético, e todas as outras excelências que um homem possuísse se subordinavam a ele, e deviam por ao seu serviço. A nova dikaiosýne era mais objetiva. Tornou-se a areté por excelência, desde o instante em que se julgou ter na lei escrita o critério infalível do justo e injusto. Pela fixação escrita do nomos, isto é, do direito consuetudinário válido para todas as situações, o conceito de justiça ganhou conteúdo palpável. Consistia na obediência às leis do Estado, como mais tarde a “virtude cristã” consistiria na obediência às ordens do divino.”[2]
Diante deste quadro, Aristóteles é o primeiro pensador sobre a questão da Justiça propriamente dita, em essência e como práxis. A ela dedica boa parte da sua monumental obra. Marilena Chauí o considera “o criador da filosofia prática. Não que antes dele as questões éticas não houvessem sido discutidas e tratadas... Aristóteles é o fundador da filosofia prática porque demarcou o campo da ação humana e distinguiu, pelo método e pelo conteúdo, o saber prático e a técnica fabricadora, assim como o saber teorético e o prático[3]

Para Aristóteles, o conhecimento (e a prática) da justiça passa pelo viver ético, pelo agir virtuoso. Já no Livro II de sua Ética a Nicômacos, há um trecho em que o estagirita expressa o intuito, o propósito, o objeto e o sujeito do estudo da ética:

“Estou falando da excelência moral, pois é esta que se relaciona com as emoções e ações, e nestas há excesso, falta e meio termo. Por exemplo, pode-se sentir medo, confiança, desejos, cólera, piedade, e, de um modo geral, prazer e sofrimento, demais ou muito pouco, e, em ambos os casos, isto não é bom: mas experimentar estes sentimentos no momento certo, em relação aos objetos certos e às pessoas certas, e de maneira certa, é o meio termo e o melhor, e isto é característico da excelência. Há também, da mesma forma, excesso, falta e meio termo em relação às ações. Ora, a excelência moral se relaciona com as emoções e as ações, nas quais o excesso é uma forma de erro, tanto quanto a falta, enquanto o meio termo é louvado como um acerto; ser louvado e estar certo são características da excelência moral. A excelência moral, portanto, é algo como eqüidistância, pois, como já vimos, seu alvo é o meio termo. Ademais é possível errar de várias maneiras (com efeito, o mal pertence à categoria do limitado, segundo a imaginação dos pitagóricos, e o bem à categoria do limitado), ao passo que só é possível acertar de uma maneira (também por esta razão é fácil errar e difícil acertar – fácil errar o alvo, e difícil acertar nele); também é por isto que o excesso e a falta são características da deficiência moral, e o meio termo é uma característica da excelência moral, pois
‘a bondade é uma só, mas a maldade é múltipla’[4]
Percebemos, pois, que por virtude, Aristóteles entende uma prática. A virtude não é, portanto, apenas e tão-somente natureza; e não haveria um aprendizado suficientemente eficaz para garantir a ação virtuosa. A virtude, contudo, seria a plenitude da excelência moral, e desta maneira não poderia existir em seres incompletos ainda em formação, como as crianças. A virtude não é congênita. A excelência moral, revelada pela prática da virtude, seria, antes de tudo, uma disposição de caráter. Para o exercício da virtude seria, pois, necessário conhecer, ponderar, julgar, discernir, raciocinar, calcular e também deliberar, o que implica numa atitude essencialmente prática. Contrariamente às tradições socrática e platônica, não se entende que o mero conhecimento do bem possa dirigir a ação justa. A virtude, vista como excelência moral, teria que corresponder à noção de uma razão reta relacionada às questões da conduta. Ora, tal disposição do caráter humano teria por pressuposto a precedência de uma escolha dos atos que devem ser praticados; e de um hábito afirmado e confirmado pela repetição, o que leva à ação reta. Nesse sentido, pode-se dizer que, na Ética de Aristóteles, a virtude é, antes de tudo, um hábito – hábito este construído pela íntima relação entre potência e ato:

“Além disso, em relação a todas as faculdades que nos vêm por natureza recebemos primeiro a potencialidade, e, somente mais tarde exibimos a atividade (isto é claro no caso dos sentidos, pois não foi por ver repetidamente ou repetidamente ouvir que adquirimos estes sentidos; ao contrário, já os tínhamos antes de começar a usufruí-los, e não passamos a tê-los por usufruí-los); quanto às várias formas de excelência moral, todavia, adquirimo-las por havê-las efetivamente praticado, tal como fazemos com as artes. As coisas que temos de aprender antes de fazer, aprendemo-las fazendo-as – por exemplo, os homens se tornam construtores construindo, e se tornam citaristas tocando cítara; da mesma forma, tornamo-nos justos praticando atos justos, moderados agindo moderadamente, e corajosos agindo corajosamente. Essa asserção é confirmada pelo que acontece nas cidades, pois os legisladores formam os cidadãos habituando-os a fazerem o bem; esta é a intenção de todos os legisladores; os que não a põem corretamente em prática falham em seu objetivo, e é sob este aspecto que a boa constituição difere da má.”[5]
Este excerto confirma a perspectiva aristotélica da virtude como algo essencialmente prático; uma razão prática, na exata medida em que a ação não depende necessariamente do conhecimento teórico; mas que é decorrência natural do hábito, pela ação propositalmente exercitada e repetida, mediante uma faculdade já existente, em potência, no caráter do homem. O comportamento seria, desta forma, o grande diferencial da ética; o modo de agir, a conduta perante os outros, perante si próprio, diante dos que são próximos, frente à Humanidade. A natureza da reta razão estaria potencialmente presente no homem; caberia à trajetória da vida, através de escolhas traduzidas em ações, realizar tal potência. Esta deliberação exige, entretanto, a presença de consciência e discernimento, além de uma disposição anterior para a mediania, para a mediedade – ou seja, uma predisposição para a moderação. Em geral, a escolha estaria subordinada às emoções e às faculdades da alma. Neste caso, a tendência mais prudente – e, conseqüentemente, mais sábia – seria recorrer àquilo que Aristóteles define como justo meio; uma conduta sempre eqüidistante entre dois extremos.

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[1] NADER, Paulo. Filosofia do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 2003, 14ª ed.,pág. 110
[2] JAEGER, Werner. Paidéia. A Formação do Homem Grego. São Paulo: Martins Fontes, 2003, 4ª ed., 2003, págs. 137/138.
[3] CHAUI, Marilena. Introdução à História da Filosofia. São Paulo: Companhia das Letras, 2ª ed., 2005, pág. 440
[4] ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1996, pág. 144
[5] ARISTÓTELES. idem, ibidem, págs. 137/8

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