6) AMIZADE E JUSTIÇA, A TÍTULO DE CONCLUSÃO
É interessante verificar, também, como Aristóteles desenvolve a sua idéia de amizade como expressão de justiça. Como bem reparou Bittar:
“Para Aristóteles, amizade (philía) e justiça (dikaiosýne) estão estreitamente ligadas, podendo-se mesmo dizer que a primeira é que se mostra como sendo o verdadeiro liame que mantém a coesão de todas as cidades-estado. Se comparadas, uma e outra, aquela há de ser colocada como o verdadeiro assento da paz nas relações entre as diversas cidades-estado, motivo pelo qual se deve dizer que a amizade concorre preventivamente para o bem do convívio social. A amizade é louvada pelos legisladores, e sua semântica assemelha-se àquela da concórdia entre as cidades. De fato, é a amizade (philía) elemento de importância para a reciprocidade inerente ao convívio social, ao qual o homem está predisposto por natureza, motivo pelo qual recebe amplo tratamento no contexto da Ethica Nicomachea.” [1]
Já no Livro IV da Ética a Nicômaco, Aristóteles recorre a uma categoria introdutória, para posteriormente desenvolver o tema da amizade. Diz o estagirita que, na sociedade, mais especificamente nas reuniões e nos encontros que propiciam o convívio, existiriam algumas pessoas a quem se poderia considerar amáveis. Esta acepção de amabilidade – originada, talvez, da intenção afável - corresponderia a um determinado comportamento padrão que revela, por assim dizer, uma predisposição em relação ao outro, para aceitá-lo, conhecê-lo, agradá-lo, de maneira também a, reciprocamente, ser bem-vindo e bem aceito. Essa disposição, nas palavras de Aristóteles, “ainda não recebeu um nome, embora ela se assemelhe muito à amizade”[2]
O filósofo prossegue dizendo que, “as pessoas amáveis convivem com as demais da maneira certa, mas é com vistas ao que é honroso e conveniente que elas visam a não causar desgostos ou a contribuir para o prazer. Elas parecem efetivamente preocupadas com os prazeres e desgostos no convívio social, e sempre que não lhes for honroso ou for prejudicial contribuir para o prazer, elas se recusarão a fazê-lo”[3] .
É no Livro VIII da Ética a Nicômaco, entretanto, que Aristóteles se aprofunda no mister de examinar a natureza da amizade. De imediato, esclarece que amizade supõe convívio, semelhança, tempo e intimidade. Se consideramos o amor como emoção, a amizade seria disposição de caráter, o que justificaria a racionalidade com que escolhemos o elenco dos nossos amigos. Amizade pressupõe, pois, uma espécie de pacto de reciprocidade, afeição e generosidade no sentimento, como se, uma vez rodeados de amigos, fôssemos mais capazes para melhor agir. Como diz Aristóteles (grifo nosso):
“Mesmo quando viajamos para outras terras podemos observar a existência generalizada de uma afinidade e afeição natural entre as pessoas. A amizade parece também manter as cidades unidas, e parece que os legisladores se preocupam mais com ela do que com a justiça; efetivamente, a concórdia parece assemelhar-se à amizade, e eles procuram assegurá-la mais que tudo, ao mesmo tempo em que repelem tanto quanto possível o facciosismo, que é a inimizade nas cidades. Quando as pessoas são amigas não têm necessidade de justiça, enquanto mesmo quando são justas elas necessitam da amizade; considera-se que a mais autêntica forma de justiça é uma disposição amistosa.” [4]
Ainda que se considere que o conceito aristotélico de amizade é nitidamente aristocrático, dada a sua condição, a perfeita amizade não seria exatamente aquela em que se procura o auxílio ou a assistência do amigo. A amizade perfeita seria aquela que ocorre, necessariamente, entre iguais, envolvendo o reconhecimento dos atributos de um amigo no outro. É, por assim dizer, um terreno em que a justiça como conceito não pode satisfazer. Como diz Victoria Camps, “essa amizade grega vem para cobrir uma necessidade que a justiça não chega a satisfazer por não poder fazê-lo”[5] .
A relação entre amigos não pressupõe nem a necessidade de defesa de um contra o outro, tampouco a necessidade de algum tipo de regulação externa. Existe na amizade, pois, uma espécie de predisposição solidária. Nos termos de Victoria Camps, “a solidariedade é uma prática que está ao mesmo tempo aquém e além da justiça: a fidelidade ao amigo, a compreensão ao maltratado, o apoio ao perseguido, a aposta em causas impopulares ou perdidas, tudo isso não se pode constituir propriamente como dever de justiça, mas sim como dever de solidariedade”[6] .
Como depreendemos pelo texto de Aristóteles:
“Como dissemos no início, a amizade e a justiça parecem relacionar-se com os mesmos objetos e manifestar-se entre as mesmas pessoas. Realmente, parece que em todas as formas de associação encontramos alguma forma peculiar de justiça e também de amizade; nota-se pelo menos que as pessoas se dirigem como amigas aos seus companheiros de viagem e aos seus camaradas de serviço militar, tanto quanto aos seus parceiros em qualquer espécie de associação. Mas a extensão de sua amizade é limitada ao âmbito de sua associação, da mesma forma que a extensão da existência da justiça entre tais pessoas. O provérbio ‘os bens dos amigos são comuns’ é a expressão da verdade, pois a amizade depende da participação. Os irmãos e os membros de uma confraria têm tudo em comum, mas as outras pessoas às quais nos referimos têm somente certas coisas em comum – algumas mais, outras menos – pois nas amizades também há maior ou menor intensidade.
...
As reivindicações de justiça também parecem aumentar com a intensidade da amizade, e isto significa que a amizade e a justiça existem entre as mesmas pessoas e têm uma extensão igual.” [7]
Vemos, pois, que Aristóteles destaca diversos elementos que configurariam a justiça, mas é interessante que ele termine sua obra Ética a Nicômaco com essa comparação entre justiça e amizade. Parece que, para o filósofo, a amizade sintetiza a sua visão de eqüidade e igualdade como intrínsecas a justiça, como ideais a serem perseguidos para a consecução de uma sociedade justa.
Neste particular, para finalizar o presente trabalho, permitimo-nos juntar ao presente trabalho uma sentença da lavra do então Juiz Antonio Vilenilson Vilar Feitosa, hoje Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Se o tema é amizade, e se se diz correntemente que o melhor amigo do homem é o cão, Aristóteles por certo se alegraria com a sentença de 19 de outubro de 1988, cujo excerto transcrevemos abaixo:
“Areth of Norte Lake nasceu, em 19 de outubro de 1979, numa terra de sonhos e fantasias, Brasília. Veio para São Paulo, lugar onde os sonhos se alternam com a pesadez do dia a dia e as fantasias de cada um não vestem outra máscara nem no carnaval.
Por isso Aretha não tinha uma clara idéia do que é carnaval. Sabia que eram uns dias em que as pessoas mudavam um pouco o comportamento, como na semana santa. Não tinha motivo para concordar com Júlio Camargo, que sofismara: “O carnaval é uma amostra, na terra, de como será o inferno no céu”.
Não gostava de carnaval, de semana santa, de semana disso, semana daquilo.
Percebeu que era o carnaval de 1988 quando viu em casa aquela agitação que antecede uma viagem... e seus retiros. E lá se foi para mais um.
Não levou sonhos e bagagens, malas e fantasias. Levou os encantos que fazem perpetuar a vida. Atirou-os, como se atira inapelavelmente um lencinho branco, ao vizinho de cela e entre eles aconteceu sem ai e au o velho diálogo de Adão e Eva que Machado de Assis flagrou entre Brás Cubas e Virgília.
O primo de Snoopy não resistiu e, porque “a carne só é fraca enquanto pode ser forte” (Mauro Mota, “Antologia em Verso e Prosa”), o muro não foi obstáculo para os saltos de seu coração. Foram felizes, carnavalescamente felizes.
Hoje Aretha vive feliz com os filhos e deles não se quer apartar, que “nenhum filho entre os filhos é demais” (Nestor Vítor, “As Três Garças”). Tem idéia mais alegre do arnaval e espera chegue logo o próximo, embora não tenha sido a respeito dela que Maiakovsky escreveu:
“Dizem que em alguma parte- parece que no Brasil –existe um homem feliz”.
Mal sabe que depois do acontecido os cuidados para que não cruze devidamente serão redobrados.
É que a doutora Sheila, do ângulo estritamente humano e com toda a razão, não aprovou a gravidez de Aretha e quer ressarcir-se das despesas que teve.
O Cão-de-Ló, cujo nome sugere a melhor das hospitalidades, não se exime da obrigação de indenizar, por provar que Sheila não lhe avisou do cio da ilustre hóspede (sua certidão de nascimento dá inveja a muito quatrocentão). Ficou demonstrado que o período fértil das cadelas não é tão facilmente identificado. Por isso, nem todo dono de cachorra o conhece e não é razoável exigir dele a iniciativa da informação, até porque, em princípio, pode o cio surgir durante a estada no canil. Quem deve melhor conhecer cães são os tratadores do canil.
Se a informação não foi prestada,deve tê-la prestado a agitação dos machos desassossegados pelo perturbador de Aretha. Um veterinário disse em audiência que é o macho que identifica o cio da cadela. Qualquer menino sabe que cachorro não espera hora nem escolhe lugar diante da fêmea fértil, age justamente de maneira oposta à dos humanos.
Poderiam os tratadores prever o que ia acontecer; não previram. Por não terem previsto o previsível, agiram com culpa. A responsabilidade da ré decorre da culpa de seus empregados.
(Os cachorrinhos se amandoE nós, cachorrões, julgando.Na poesia, Bandeira,Vou acabar me agarrando).As despesas relativas à consulta, à radiografia e ao parto estão comprovadas. As atinentes à desvalorização da linhagem, não (cf. depoimento do veterinário).
Em face do exposto, julgo procedente o pedido para condenar a ré ao pagamento, à autora, de Cz$ 45.000,00 (quarenta e cinco mil cruzados) corrigidos monetariamente desde 29.7.88 e acrescidos de juros de mora calculados desde 29.8.88. A ré pagará as custas processuais e honorários advocatícios que arbitro em quinze por cento da condenação.
Vê-se, na sentença transcrita, que o Juiz, ainda que presentes dispositivos legais autorizadores, procurou encontrar o justo meio, valendo-se, tanto quanto possível, da eqüidade para julgar a questão. Em suma, com bom humor e sabedoria, soube colocar a questão dentro de princípios básicos de justiça, em que a observação do mundo animal, e sua comparação com a sociedade humana, mostra como é possível deliberar com a reta razão. Aristóteles certamente se sentiria homenageado.
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[1] BITTAR, Eduardo C. B. Curso de Filosofia do Direito. São Paulo: Atlas, 2005, 4ª ed., pág. 119
[2] ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1996, pág. 187
[3] idem, p. 188
[4] ibidem, págs. 257/8
[5] CAMPS, Victoria. Virtudes públicas. Madrid: Editorial Espasa Calpe, 1996, p. 35, apud BOTO, Carlota, Revista Videtur 16, 2002, disponível em http://www.hottopos.com/videtur16/carlota.htm .
[6] idem
[7] ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1996, pág. 268/9
[1] BITTAR, Eduardo C. B. Curso de Filosofia do Direito. São Paulo: Atlas, 2005, 4ª ed., pág. 119
[2] ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1996, pág. 187
[3] idem, p. 188
[4] ibidem, págs. 257/8
[5] CAMPS, Victoria. Virtudes públicas. Madrid: Editorial Espasa Calpe, 1996, p. 35, apud BOTO, Carlota, Revista Videtur 16, 2002, disponível em http://www.hottopos.com/videtur16/carlota.htm .
[6] idem
[7] ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1996, pág. 268/9
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