Páginas

quinta-feira, 14 de agosto de 2008

Sobre a tolice

"A tolice é um inimigo mais perigoso do bem do que a maldade. Contra o mal se pode protestar, é possível desmascará-lo, pode-se, em caso de necessidade, impedi-lo com o uso da violência. O mal sempre já traz em si o germe da auto-desagregação, pelo fato de deixar ao menos um mal-estar na pessoa. Contra a tolice não temos defesa. Nada se consegue com protestos nem com violência; argumentos não adiantam; a fatos que contradizem o próprio preconceito não se precisa dar crédito – em tais casos o tolo até mesmo se torna crítico – e se esses fatos são incontornáveis, simplesmente se pode pô-los de lado como casos isolados sem significado. Diferentemente do malvado, o tolo está completamente satisfeito consigo mesmo; ele até mesmo se torna perigoso, pois facilmente se sente provocado e passa à agressão. Por isso, recomenda-se mais cautela em relação ao tolo do que ao mau. Nunca mais tentaremos persuadir o tolo com argumentos; é inútil e perigoso.

Para sabermos como podemos enfrentar a tolice, teremos de procurar entender sua natureza. Está provado que a tolice não é [essencialmente] um defeito intelectual, mas um defeito humano. Há pessoas intelectualmente muito ágeis que são tolas e outras intelectualmente muito lentas que são tudo, menos tolas. Para nossa surpresa fazemos essa descoberta por ocasião de determinadas situações. A impressão que se tem é de que a tolice não é tanto um defeito de nascença, mas que, sob certas circunstâncias, as pessoas são feitas tolas, isto é, deixam-se tornar tolas. Observamos ainda que pessoas retraídas e de vida solitária apresentam esse defeito com menos freqüência do que aquelas pessoas ou grupos de pessoas que se inclinam à convivência ou estão condenadas a ela. Assim sendo, a tolice talvez seja um problema mais sociológico do que psicológico. Ela é uma forma particular de influência das circunstâncias históricas sobre a pessoa, um sintoma psicológico de determinadas situações externas. Examinando melhor a questão, mostra-se que qualquer demonstração exterior mais forte de poder, seja ele político ou religioso, castiga boa parte das pessoas tornando-as tolas. E até se tem a impressão de que se trata aí de alguma espécie de lei sociológico-psicológica. O poder de uns precisa da tolice dos outros. No entanto, o que acontece não é que determinadas capacidades – como, por exemplo, as intelectuais – de repente se atrofiem ou desapareçam na pessoa, mas que, sob a impressão avassaladora causada pela demonstração de poder, a pessoa é privada de sua autonomia interior e então desiste – mais ou menos inconscientemente – de encontrar uma postura própria diante das condições de vida com que se depara. O fato de que o tolo muitas vezes se mostra obstinado não deve nos levar a concluir que seja independente. Na conversa com ele chega-se a sentir que não é com ele mesmo que se está tratando, mas com chavões e palavras de ordem que tomaram conta dele. Ele está fascinado, obcecado, foi maltratado e abusado em seu próprio ser. Tendo-se tornado, assim, um instrumento sem vontade própria, o tolo também é capaz de qualquer maldade e, ao mesmo tempo, incapaz de reconhecê-la como tal. Aqui reside o perigo de um abuso diabólico, por meio do qual pessoas poderão ser destruídas para sempre.

Mas é também neste ponto que se torna muito claro que não é um ato de instrução, mas somente um ato de libertação que poderia vencer a tolice. E aí teremos de conformar-nos com a constatação de que uma libertação interior autêntica, na maioria dos casos, somente será possível depois que tiver ocorrido a libertação exterior. Até que esta aconteça, temos de desistir de todas as tentativas de persuadir o tolo. Este estado de coisas também explica por que, nas referidas condições, nos esforçamos em vão para saber o que "o povo" realmente pensa, e por que, para a pessoa que pensa e age com responsabilidade, essa pergunta torna-se, ao mesmo tempo, dispensável – sempre apenas sob as circunstâncias dadas. A palavra da Bíblia de que o temor de Deus é o princípio da sabedoria afirma que a libertação interior da pessoa para uma vida responsável diante de Deus é a única verdadeira superação da tolice.

Aliás, estas reflexões sobre a tolice têm até um aspecto consolador, porque de maneira alguma permitem que consideremos a maioria das pessoas como tolas em qualquer circunstância. A questão decisiva é realmente se os detentores do poder esperam mais da tolice ou da autonomia interior e da inteligência das pessoas."

(BONHOEFFER, Dietrich. Resistência e Submissão. Ed. Sinodal, 2003, pp. 33/34)





-----------------------




Dietrich Bonhoeffer nasceu em 4 de fevereiro de 1906, em Breslau na Alemanha. Estudou Teologia em Tübingen e Berlim, onde se doutorou aos 21 anos. Trabalhou em várias igrejas européias de língua alemã (Barcelona, Londres) e concluiu seus estudos nos E.U.A. Em 1935 Bonhoeffer retornou para a Alemanha, aceitando o convite para ser reitor e professor do Seminário da Igreja Confessante, ala da igreja evangélica, que não aderiu à política nacional socialista. Após o seminário ser fechado pela polícia nazista, Bonhoeffer se engajou no movimento de resistência contra Hitler. Após muitas viagens pela Europa, ele foi preso em 5 abril de 1943 e executado em 9 de abril de 1945. Apesar do pouco tempo de vida, Dietrich Bonhoeffer deixou um legado teológico precioso e uma fé viva e coerente com seus ensinos.


Nenhum comentário:

Postar um comentário

Obrigado por visitar O Contorno da Sombra!
A sua opinião é bem-vinda. Comentários anônimos serão aprovados desde que não apelem para palavras chulas ou calúnias contra quem quer que seja.
Como você já deve ter percebido, nosso blog encerrou suas atividades em fevereiro de 2018, por isso não estranhe se o seu comentário demorar um pouquinho só para ser publicado, ok!
Esforçaremo-nos ao máximo para passar por aqui e aprovar os seus comentários com a brevidade possível.