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domingo, 13 de dezembro de 2009

Sócrates e a teologia da prosperidade


Sócrates, o pai da filosofia ocidental, tinha como adversários os sofistas, aqueles que, basicamente, viviam da arte da retórica, e ensinavam as técnicas dos belos discursos que não levavam a nada, cobrando por suas aulas e palestras. A História reservou a Sócrates a palavra – e a vitória - final, e hoje “sofista” e “sofismas” são palavras que têm um sentido pejorativo, com a qual se ofende elegantemente alguém que não sabe nada do assunto que diz dominar, mas mesmo assim tortura a plateia e seus adversários no debate com um palavrório bonito, mas inútil.

Sócrates não deixou nada escrito, mas seus discípulos registraram muitos de seus diálogos e ensinamentos. Um deles, Xenofonte, legou à posteridade o diálogo de Sócrates com Antifão, um sofista que invejava o número de seguidores que – gratuitamente - seguiam Sócrates, e queria “roubá-los” para que pudesse cobrar por suas lições e, assim, ficar ainda mais rico. Num desses diálogos, Antifão critica a maneira humilde como Sócrates vivia, insinuando que o sinal distintivo do bom mestre era exatamente a sua prosperidade material.

Proponho um exercício, então: apliquemos este diálogo aos dias atuais, na igreja evangélica brasileira. É relativamente simples: deixe "discípulos" do jeito que está, troque “filosofia” por “teologia” ou “sã doutrina”, “mestres” por “pastores”, “aprazível” por “próspera” e “magnificência” por “prosperidade”. Você vai ver que aproveitadores e falseadores do conhecimento são uma praga antiga, e que a conclusão de Sócrates, relacionando prosperidade à divindade, devidamente adaptada ao cristianismo, continua tão atual como 2.500 anos atrás:


Convém não calar a conversação que teve com o sofista Antifão. Certo dia Antifão, que queria tomar a Sócrates seus discípulos, interpelou-o e disse-lhe na presença deles:

- Eu pensava, Sócrates, que os que professam a filosofia, fossem mais felizes. Muito outro, porém, parece ser o fruto que colhes da filosofia. Vives de tal guisa que não há escravo que deseje viver sob tal senhor. Alimentas-te das viandas mais grosseiras, bebes as mais vis beberagens. Cobre-te um manto chamboado, que te serve no verão como no inverno. Não tens calçado nem túnica. Sem embargo, não aceitas nenhum oferecimento de dinheiro, por agradável que seja recebê-lo e muito embora proporcione vida mais independente e aprazível. Se, pois, como todos os mestres formas os teus discípulos à tua semelhança, podes considerar-te um professor de miséria.


Ao que Sócrates respondeu – Fazes, creio, Antifão, tão triste ideia de minha existência, que preferirias morrer a viver como eu. Ora bem, examinemos por que achas minha vida tão penosa. Será porque, ao contrário dos que, exigindo salário, são obrigados a fazer o que lho rende, eu que nada recebo não sou forçado a falar com quem não queira? Achas minha vida miserável porque minha alimentação seja menos sã ou menos nutritiva que a tua? Porque meus alimentos sejam menos difíceis de obter que os teus, os quais são mais raros e mais delicados? Porque os manjares que preparas te saibam melhor ao paladar que os meus a mim? Não sabes que quem come com apetite não tem necessidade de condimento, que a quem bebe com prazer, fácil é prescindir da bebida que não tem? Quanto às vestes, sabes que quem as muda não o faz senão por causa do frio e do calor; que se calçam sapatos, é para que os pés não sejam impedidos no andar pelo que os possa ferir. Viste-me alguma vez entocado em casa por causa do frio? Disputar, no verão, a sombra a alguém, ou impossibilitado de ir aonde quisesse por ter os pés feridos? Ignoras que graças a certos exercícios pessoas fracas de corpo se tornam mais fortes e os suportam mais facilmente do que aquelas que, nascidas mais fortes, foram descuidadas? Não crês que eu, que avezei meu corpo a resistir a todas as influências, não fora melhor que tu, que não te exercitaste? Se não sou escravo do ventre, do sono, da volúpia, é porque conheço prazeres mais doces que não deleitam apenas no momento, mas fazem esperar vantagens contínuas. Sabes que sem a esperança do sucesso nenhum prazer experimentamos, de passo que, se se pensa lograr bom existo, seja na agricultura, seja na navegação, seja em outra profissão qualquer, a ela nos dedicamos com tanto júbilo como se já houvéssemos triunfado. Pois bem, julgas que esta felicidade iguale a que nos dá a esperança de nos tornarmos melhores a nós próprios e aos nossos amigos? Tal é, contudo, a opinião em que persisto! Se for preciso servir aos amigos, ou à pátria, quem para tanto terá mais lazer, aquele que vive como eu ou aquele que esposa o gênero de vida de que te vanglorias? Quem fará a guerra mais a seu grado, aquele que não pode dispensar uma mesa suntuosa ou aquele que se contenta com o que tenha à mão? Quem capitulará mais depressa, aquele que tem necessidade de iguarias difíceis de obter ou aquele que se contenta com os alimentos mais triviais? Pareces, Antifão, colocar a felicidade nas delícias e na magnificência. De mim, penso que de nada necessita a divindade. Que quanto menos necessidades se tenha, mais nos aproximamos dela. E como a divindade é a própria perfeição, quem mais se aproximar da divindade mais perto estará da perfeição”.

(Xenofonte. Ditos e feitos memoráveis de Sócrates. In: Sócrates, livro I, cap. VI, pp. 79-80 [Os Pensadores, Nova Cultura, 1996]

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