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quinta-feira, 22 de abril de 2010

Sobre cabeças, caudas e falsos profetas

Estava vendo o noticiário Bom Dia Brasil da Globo hoje cedo, e vi uma matéria sobre empreendedorismo, que mostra o brasileiro como o segundo povo mais empreendedor do mundo. atrás apenas dos chineses. O que me chamou a atenção foi um dos entrevistados - que montou uma locadora de vídeo e teve que fechá-la 4 meses depois -, ter dito a seguinte frase:

“Não ser mais empregado, cauda, e sim ser cabeça, trabalhar nem que seja sábado, domingo, noite, mas ter o nosso próprio negócio, ser nossos próprios patrões, essa era a ideia”

É muito provável que o jovem empreendedor tenha sido seduzido pelo discurso fácil de alguns pregadores triunfalistas, que pinçam versículos da Bíblia para tentar justificar a sua teologia da prosperidade propagada aos 4 ventos. O problema (não dos pregadores, mas principalmente dos ouvintes) é que o discurso geralmente não consegue se replicar no mundo real. Funciona apenas na base do imediatismo, do oba-oba, do "vamos lá!", da motivação neurolinguística instantânea e inócua. O sonho do jovem entrevistado durou apenas 4 meses e ele voltou a ser empregado. Se ele tivesse estudado melhor o mercado, saberia que locação de vídeos e DVD's é uma atividade em extinção há muitos anos: primeiro, pela concorrência das grandes redes como a Blockbuster; segundo, pelo avanço da pirataria tanto nos camelôs como na internet. Entretanto, parece que nada disso foi suficiente para impedi-lo de embarcar na fantasia triunfalista de um pregador de ocasião. Este, por seu lado, está numa posição humanamente confortável. Se alguém acredita no seu discurso motivacional inconsequente e dá com os burros n'água, a culpa não é do pregador, mas de Deus, que assume - injustamente - o débito de alguém ter dito mentiras em Seu santo nome.

O texto surradamente usado por esses pregadores - "o Senhor te porá por cabeça e não por cauda" - está em Deuteronômio 28:13 e 44, no capítulo da Bíblia conhecido por listar uma série de bênçãos e maldições que cairiam sobre o POVO de Israel, coletivamente considerado como nação escolhida por Deus, se eles O seguissem ou desobedecessem, numa espécie de testamento dado a Moisés no momento em que o povo - depois de 40 anos de peregrinação no deserto - entraria na terra prometida, Canaã. Logo, soa estranho assumir como particular, próprio, uma promessa coletiva de Deus vinculada a um pacto com os descendentes de Jacó - a nação de Israel - retirados do Egito num momento histórico específico e com vistas a nortear o fato (também) político de que agora eles teriam um território para tomar e se estabelecer fisicamente, delimitando fronteiras e formando um sistema de governo teocrático. Não por acaso, portanto, quando o reino de Israel se desvia de Deus muitos séculos depois, Isaías relembra o pacto: "Pelo que o Senhor cortou de Israel a cabeça e a cauda, o ramo e o junco, num mesmo dia. O ancião e o varão de respeito, esse é a cabeça; e o profeta que ensina mentiras, esse é a cauda" (Isaías 9:14-15). Só que ninguém ouve esses versículos na boca dos pregadores da prosperidade, talvez por que eles se identificariam com a cauda...

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