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quinta-feira, 2 de junho de 2011

Silêncio, martírio e apostasia no Japão

Resenha do livro "O Silêncio" (Ed. Planeta do Brasil, 2011), um misto de ficção e história sobre o início do cristianismo no Japão, publicado no Estadão de 28/05/11:

O desconcertante silêncio de Deus

Romance do japonês Shusaku Endo discute a fé e explora a complexa passagem do cristianismo para o catolicismo

João Cezar de Castro Rocha

O Silêncio é considerada a obra-prima de Shusaku Endo (1923-1996), romancista japonês e católico praticante. Condição, aliás, que lhe valeu um duplo exílio. Em seu país natal, o catolicismo sempre foi não apenas uma religião minoritária, mas também perseguida por séculos. Porém, em 1945, ao viajar para a França, a fim de concluir seus estudos, conheceu o avesso do cristianismo na discriminação que experimentou. Esse descompasso biográfico foi fundamental para sua obra. O Silêncio discute a complexa passagem histórica do cristianismo ao catolicismo. Trata-se de entender como a mensagem de uma comunidade particular pôde converter-se em credo católico - isto é, universal, segundo a etimologia. O caso japonês, contudo, questionou a pretensão universalizante implícita na ideia de evangelização.

Por isso, o contexto da ação do romance é determinante. Entre 1570 e 1614, época em que o comércio com Macau aconselhava o trato amistoso com os portugueses, tudo parecia indicar o êxito dos missionários. Os padres eram recebidos na corte, e mesmo regentes se converteram, favorecendo a edificação de seminários e igrejas, além da ordenação de clérigos locais. Porém, em 1614 decretou-se a expulsão de todos os padres, e até 1640, devido à perseguição sistemática, supõe-se que 5 mil ou 6 mil cristãos foram martirizados - no retorno inesperado das condições dominantes nos dois primeiros séculos da expansão do cristianismo no Império Romano.

Shusaku Endo recriou essa história através de dois padres portugueses, Francisco Garpe e Sebastião Rodrigues, que, apesar das perseguições, viajam ao Japão a fim de manter viva a fé cristã. O impulso evangelizador foi justificado nas palavras de Rodrigues. Ao debater com Inoue, o temido grão-senhor de Chikugo, responsável por levar inúmeros padres à apostasia, o jesuíta insistiu: "Se não acreditássemos que a verdade é universal, por que deveriam tantos missionários suportar tais agruras? (...) Se uma doutrina verdadeira não o fosse tanto em Portugal quanto no Japão, não poderíamos considerá-la verdadeira".

Eis a origem do drama vivido por Sebastião Rodrigues, que ainda inclui um Judas particular: Kichijiro, que o trai porque, como ele reconhece: "Os fortes nunca cedem à tortura, e eles vão para o Paraíso. Mas e quanto àqueles como eu, que nascem fracos?". No fim do romance, o leitor encontra o esclarecimento do sentido forte do título: "Ó Senhor, é agora que deveríeis romper o silêncio. Não podeis continuar calado". Diante da coragem dos mártires japoneses, o silêncio de Deus parecia inconcebível.

A própria palavra silêncio estrutura a narrativa, referindo-se a três níveis: uma complexa questão teológica; a resistência do meio japonês à evangelização; a fé dos católicos japoneses perseguidos.

A força do romance depende exatamente da relação entre as três acepções. No Antigo Testamento, Deus é, por assim dizer, bastante eloquente e não se furta a recriminar ou mesmo a condenar a humanidade em frases lapidares. Contudo, após as palavras do último profeta, Deus "calou-se". Como se sabe, o silêncio é rompido no Novo Testamento. Após o batismo de Cristo, ouve-se o anúncio: "Tu és o meu Filho amado em quem me comprazo". Depois, o silêncio retorna. Como entendê-lo? Nenhuma questão atormenta mais o jesuíta. Em última instância, ele renega a religião católica menos por medo das torturas do que pelo efeito prolongado "do terror em face do silêncio de Deus".

A própria natureza japonesa reforça o motivo em inesperado eco. Por exemplo, quando os soldados cercam a aldeia onde Rodrigues e seu colega Garpe se escondiam, o padre assim descreve o cenário: "(...) eu sentia o terrível silêncio que envolvera a localidade toda. (...) rezei e rezei para que aquele medonho silêncio do meio-dia pudesse para sempre ser levado embora (...)". Pouco depois, ao visitar uma aldeia em ruínas, a perseguição sofrida pelos camponeses católicos torna-se ainda mais evidente: "Eu me vi rodeado por um silêncio terrível e sinistro".

O terceiro nível refere-se à coragem dos católicos japoneses. Perseguidos, torturados, condenados à morte: e ainda assim eles se recusavam a renegar a fé cristã. Nesse caso, porém, não se tratava de simples mutismo, mas de recusar-se a falar.

A contradição entre as ordens de silêncio estrutura o romance, especialmente, na perspectiva do protagonista, o silêncio incompreensível de Deus e o silêncio heroico dos católicos perseguidos. O padre português renega sua fé precisamente para salvar convertidos que se recusavam a apostatar.

Numa passagem importante, descreve-se o martírio de dois camponeses, Mokichi e Ichizo, que suportam torturas terríveis, mas não delatam os padres que se encontravam escondidos. Então, todas as formas de silêncio se encontram: "Por trás do deprimente silêncio deste mar, o silêncio de Deus - a sensação de que, enquanto os homens erguem angustiadamente a voz, Deus permanece de braços cruzados, calado".

É como se o grão-senhor de Chikugo tivesse a última palavra no duelo com o jesuíta: "Em outras terras, a árvore do cristianismo talvez dê folhas grossas e brotos fecundos, mas no Japão suas folhas murcham e não nasce broto algum. Nunca pensastes, padre, nas diferenças de solo e água?".

Sem dúvida, o padre havia pensado, mas não imaginara que a experiência do sofrimento alheio pudesse abalar a própria fé na universalidade de sua crença.

Por isso, no mundo atual, reler O Silêncio implica um desafio: qual o diálogo possível entre princípios universais e posições fundamentalistas?

JOÃO CEZAR DE CASTRO ROCHA É PROFESSOR DE LITERATURA COMPARADA DA UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

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