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segunda-feira, 14 de maio de 2012

Fé e filosofia na igreja primitiva

Artigo publicado no IHU sobre a relação entre fé e filosofia na história da igreja cristã:

Quando a fé encontrou a filosofia

Os escritores cristãos perante a sabedoria helenística: uma relação complexa com as origens de nossa civilização. As obras dos antigos autores cristãos se tornaram objeto de traduções e de reelaborações, expressando-se em uma grande variedade de línguas, dando origem a novas culturas e a novas identidades sociorreligiosas.

A análise é de Marco Rizzi, professor de literatura cristã antiga da Università Cattolica del Sacro Cuore, na Itália, em artigo publicado no jornal Corriere della Sera, 26-02-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

Em uma carta célebre, São Jerônimo conta um sonho ou, melhor, um pesadelo que marcou sua carreira como escritor cristão do século IV. Ele havia renunciado a todos os seus bens, à família, à vida social e havia se retirado para Belém, para se dedicar à oração e à ascese. Mas tinha levado consigo a sua biblioteca, que incluía inúmeros autores clássicos, dentre os quais, obviamente, Cícero.

Tendo adoecido, encontrou-se, no sonho, diante do tribunal divino, presidido por Cristo. À pergunta do sumo juiz: "Quem és?", Jerônimo respondeu com a fórmula utilizada pelos mártires cristãos: "Christianus sum, sou um cristão". A resposta o deixou aterrorizado: "Tu não és um cristão, és um ciceroniano!".

Despertando-se em um banho de suor, Jerônimo resolveu abandonar todo o interesse pela literatura profana e se dedicou, desde então, exclusivamente ao estudo e à tradução latina da Bíblia, conhecida como a Vulgata, que foi até o Vaticano II o texto bíblico oficial da Igreja Católica.

Na realidade, por causa da sua atividade como exegeta, Jerônimo não abandonou os recursos que a filologia e a retórica grega e latina colocavam à sua disposição. A sua própria prosa se inspira em um classicismo moderado de marca ciceroniana. Vendo bem, sob a aparência de uma dramática conversão intelectual, o sonho indica que, no limiar do século V, a literatura dos cristãos já não tinha mais nenhum complexo de inferioridade com relação à clássica. Ao contrário, queria se confrontar com ela no plano da forma e do estilo, mesmo que favorecendo a exigência de comunicar e ensinar a todos, não apenas a uma elite restrita. Não por acaso, Jerônimo foi autor de uma coleção de biografias de escritores cristãos ilustres, programaticamente contrapostos aos pagãos, gregos e latinos.

Desde o século II, os cristãos não haviam hesitado em se inserir no contexto comunicativo do mundo antigo. Se autores como Tertuliano proclamavam orgulhosamente a sua estranheza a uma cultura em declínio, faziam-no ainda segundo os cânones da mais perceptível retórica e com uma instrumentação conceitual devedora da tradição filosófica.

Precisamente com a filosofia, o cristianismo estabeleceu uma relação decisiva. No mundo antigo, a filosofia era principalmente um estilo de vida, em que a ética se substanciava dos resultados da especulação intelectual, sob a orientação de um mestre. Cristo foi apresentado como o mestre universal, e a sua revelação, como a "verdadeira filosofia", que resumia em si não só os conteúdos dispersos nas tradições anteriores, mas também os “exempla” morais das grandes figuras do passado – Sócrates mais do que qualquer outro.

Por sua vez, esse encontro mudou a estrutura do filosofar antigo: o discurso sobre Deus, a teologia, que até então constituía uma parte limitada no âmbito da especulação metafísica mais geral, começou a representar a finalidade última para a qual dirigir toda atividade intelectual. Assim, teve início o caminho que levaria a artes do trivium e do quadrivium medievais. Mas Orígenes, Agostinho, Plotino já compartilhavam a nova hierarquia dos valores filosóficos.

Sob a pena dos escritores cristãos, não só os modos, mas também os grandes temas da filosofia antiga se curvaram a novos significados e, desse modo, se conservaram e chegaram aos nossos dias. O caso mais célebre é o do Logos, o Verbum, que, dos filósofos estoicos, através do prólogo do Evangelho de João, Justino, Agostinho e muitos outros, chegou até às reflexões de Bento XVI sobre fé e razão do célebre discurso de Regensburg de 2006 , em que o pontífice identifica como inerentemente necessário o encontro entre o cristianismo e a racionalidade grega.

Mas a leitura dos escritores cristãos reserva surpresas muito mais fascinantes. Comentando o Cântico dos Cânticos, Orígenes não hesita em atribuir a Deus as características do eros retratada pelo Banquete de Platão: o amor pela sua criatura leva Deus a se projetar para além de si mesmo na forma de um amor que não só exige que o ser humano o retribua, mas até mesmo arrasta este último, por sua vez, para fora de si, no ekstasis da contemplação. Ideia bem presente nos místicos cristãos de todas as épocas, que sabiam captar a força explosiva, lendo eros e amor lá onde nós nos acostumamos à rendição, exausta e sem força, da "caridade".

Novamente, as reflexões desenvolvidas na Lelio de Cícero sobre a amizade como vínculo ao mesmo tempo social e afetivo serão retomadas por Agostinho na meditação dos seus percursos juvenis realizada nas Confissões e relançadas em uma nova chave, que coloca desta vez o Deus cristão como fundamento de toda a relação autêntica entre as pessoas, superando assim a ruptura – dramaticamente percebida por Cícero – entre determinações da razão política e exigências da alma individual.

Esse encontro entre cristianismo e tradição clássica muitas vezes foi criticado por ter desnaturalizado as características originais da pregação e da mensagem de Jesus. Mas não devemos nos esquecer que uma parte significativa do judaísmo antigo já havia consumado o encontro com a língua e a cultura gregas na chamada tradução da Bíblia Septuaginta, sobre a qual nos informa a Carta de Aristeu. Justamente essa Bíblia foi assumida pelos cristãos, até que Jerônimo se lançou à obra de traduzi-la ex novo do hebraico para o mundo latino.

Acima de tudo, as obras dos antigos autores cristãos se tornaram, por sua vez, objeto de traduções e de reelaborações por parte de escritores que, do século IV em diante, começaram a se expressar em uma grande variedade de línguas (copta, siríaco, armênio, georgiano...), até então sem dignidade literária, dando origem a novas culturas e a novas identidades sociorreligiosas no sinal do cristianismo e confirmando, assim, que a natureza deste último é intrinsecamente aberta ao encontro com as mais diversas experiências do ser humano.



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