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domingo, 11 de novembro de 2012

Filme mostra dilema das mulheres judias ultraortodoxas

O capítulo 38 de Gênesis é pródigo em retratar a tradição sexual em que viviam os primeiros descendentes de Abraão, a partir da situação de Tamar, viúva de Er, que havia sido o primogênito de Judá, um dos três filhos de Jacó.

O costume da época, que viria a ser confirmado pela lei mosaica muito tempo depois (Deuteronômio 25:5), era que o irmão vivo imediato assumisse o casamento com a viúva, para gerar prole ao irmão falecido e perpetuar o seu nome (e a sua família) sobre a terra.

Entretanto, o cunhado Onã não quis gerar filhos com Tamar, e - apesar de ter relações sexuais com ela - ejaculava fora (Gênesis 38:9), pelo que também morreu, castigado por Deus (v. 10). Não por acaso, a palavra "onanismo" é até hoje sinônima de "masturbação".

Como o filho remanescente Selá era muito jovem à época, Judá despediu a Tamar, prometendo-lhe que o caçula cumpriria a obrigação de cunhado quando tivesse idade para tanto (v. 11), mas não cumpriu sua palavra, razão pela qual Tamar lhe preparou uma armadilha (vv. 13 a 26) e teve filhos gêmeos do próprio sogro.

O relato bíblico é, obviamente, antigo, mas até hoje existe o costume do cunhado gerar filhos ao irmão morto entre os judeus ultraortodoxos espalhados pelo mundo, especialmente em Israel.

É este o tema que a cineasta Rama Burshtein aborda no filme "Preenchendo o Vazio", que conquistou o prêmio de melhor filme de ficção na última Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.

O jornal Valor Econômico de 06/11/12 trouxe uma resenha crítica do filme, transcrita abaixo:

'Preenchendo o Vazio' mostra vida de judeus ultraortodoxos

Por Elaine Guerini
Para o Valor, de Londres

Jovem de 18 anos é pressionada pela família a se casar com o cunhado, pouco depois que sua irmã mais velha morre no parto, ao dar à luz um menino. Embora a trama talvez soe "inimaginável para o público em geral, a situação é comum dentro da comunidade de judeus hassídicos" - como são conhecidos os ultraortodoxos -, diz Rama Burshtein, roterista e diretora de "Preenchendo o Vazio", título eleito como o melhor filme de ficção na recém-encerrada 36ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.

Embora não tenha nascido em família hassídica, a cineasta de 45 anos se converteu em 1994, pouco depois de se formar na Sam Spiegel Film and Television School de Jerusalém. Isso explica o fator diferencial de "Preenchendo o Vazio", candidato de Israel a uma vaga no Oscar de filme estrangeiro: representar a visão de uma "insider''. Por isso, a desigualdade entre os sexos e os casamentos arranjados não são questionados. A diretora procura extrair beleza da situação, sobretudo nas cenas dos rituais, apesar da opressão sofrida pelas mulheres de sua comunidade.

"O filme é uma janela para a vida dos judeus ultraortodoxos, sem qualquer intenção de provocar uma comparação com o mundo secular, dos que não fizeram votos religiosos'', disse Rama, após exibição do drama na 56ª edição do BFI London Film Festival, realizado em outubro em Londres. "Foi o mundo que eu escolhi para mim, com todas as suas alegrias e tristezas. Não vejo a minha religião como o meu freio, mas como as minhas asas.''

Vencedor de sete prêmios da Academia de Cinema Israelense, incluindo filme e direção, "Preenchendo o Vazio" retrata a vida das mulheres ultraortodoxas como ela é. Não vem ao caso se Rama está satisfeita ou apenas resignada ao destino que escolheu. O que se destaca no filme é a complexidade da situação e o dilema de Shira (a estreante Hadas Yaron): a jovem não quer tomar o lugar da irmã morta (em parte por lealdade), mas também não quer ver seu sobrinho ser levado para longe da família - caso o cunhado aceite casamento arranjado com uma judia hassídica viúva que mora na Bélgica. Declarar a sua independência e escolher um marido por si mesma, como uma mulher moderna faria, nem passa pela cabeça da personagem. Pelo desempenho, Hadas levou a estatueta de melhor atriz no Festival de Veneza.

"Reconheço as semelhanças com o universo de Jane Austen, de quem sou fã, por conta das regras rígidas de uma determinada sociedade e das expectativas lançadas sobre as mulheres'', diz a diretora, nascida em Nova York e criada em Tel Aviv, cenário do filme. "A diferença é que as minhas personagens femininas tentam ficar em paz com o seu mundo e não buscam necessariamente fugir dele.''

E como a comunidade de Rama recebeu "Preenchendo o Vazio"? "Ainda é cedo para dizer. Como eles não vão ao cinema, não viram ainda. Ainda não sei como fazer." Mas a diretora quer que eles vejam a obra, por ter escolhido muitos membros da sua comunidade para fazer figuração no filme. Só os atores principais não são judeus hassídicos.

"Espero que eles apreciem o meu ponto de vista. Todos os filmes sobre nós [incluindo "Kadosh - Laços Sagrados'', de Amos Gitai] foram feitos por seculares e nunca por membros da comunidade. Pelo menos mostro que os nossos sentimentos são os mesmos, apesar de sermos vistos como pessoas incapazes de demonstrar as emoções abertamente."

Antes de dirigir o longa (ainda sem data para estrear no Brasil), a cineasta adquiriu experiência realizando curtas-metragens voltados à plateia feminina de sua comunidade. "Pouca gente sabe, mas há uma indústria ortodoxa em Israel, feita por mulheres e para mulheres.'' Até começar a trabalhar, há seis anos, Rama cumpriu o papel de mulher e mãe de quatro crianças, "totalmente devotada à família''. "Na minha religião, aprendi que só deveria abrir a boca quando tivesse algo a dizer. E foi o que fiz. Quando a hora certa chegou, a minha voz passou a ser ouvida.'



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