Leitura anterior: Revisitando Eclesiastes - uma introdução
CAPÍTULO 1
Depois de se apresentar como "rei de Jerusalém", o Pregador inicia o livro de Eclesiastes com uma afirmação até certo ponto surpreendente: "Vaidade de vaidades, tudo é vaidade".
Ainda faz questão de reforçar a expressão "vaidade de vaidades", duplicando-a, como que dizendo que o próprio texto que ele estava começando a escrever já poderia, por assim dizer, terminar por ali mesmo, pois também era vaidade.
Pelo menos é essa a impressão que o leitor mais apressado tem, e, afinal, se tudo é vaidade, por que continuar a ler o livro? A resposta a esta pergunta é que vai ser sorrateiramente escondida, murmurada, sussurrada pelo Pregador até o final do livro, mas desde o início ele prende a atenção do leitor mais atento por inverter a ordem das coisas num livro de sabedoria (ou filosofia).
O sábio e o filósofo geralmente apresentam uma série de premissas e vão discutindo-as até chegar a uma conclusão final, com o perdão da redundância. É que Eclesiastes começa com uma "conclusão inicial", ou pelo menos parece começar com ela. "Vaidade de vaidades, tudo é vaidade". Mas será que tudo é vaidade mesmo?
Afinal, esta é uma ideia que o próprio Paulo retoma em de Romanos (8:20 – "Porque a criação ficou sujeita à vaidade, não por sua vontade, mas por causa do que a sujeitou), e que o apóstolo também insiste em Efésios (4:17 – "não andeis mais como andam também os outros gentios, na vaidade da sua mente").
A palavra "vaidade" é repetida 37 vezes nos 12 capítulos de Eclesiastes, e "vaidade" é a tradução da palavra hebraica הבל - hebel - que significa uma brisa suave, um vento leve, algo temporário, passageiro e sem importância.
O curioso é que "hebel" também pode ser um nome próprio, talvez não por acaso o de Abel, que, de acordo com o relato bíblico, foi a vítima do primeiro homicídio da humanidade, cuja vida foi ceifada na sua mocidade, e viveu muito pouco em relação aos seus parentes. Foi mais um que deu razão à advertência de Tiago: "Que é a sua vida? Vocês são como a neblina que aparece por um pouco de tempo e depois se dissipa" (Tiago 4:14 – NVI).
Logo de início, o Pregador se apresenta, portanto, como alguém desanimado, conformado com o nada, e sem nenhuma esperança. Parece um contra-senso na Bíblia, mas o Pregador não está sozinho. Jonas talvez tenha sido o profeta mais desanimado que houve. A Jeremias coube a terrível frustração de ver sua pregação ignorada e o seu povo morto ou levado escravo, Jerusalém e o Templo destruídos. Só lhe restou lamentar-se. Asafe desfiou sua inveja dos ímpios prósperos no Salmo 73.
A Bíblia está longe de ser um livro mitológico, de comportamentos impávidos e assépticos. Ela é composta de gente como a gente, com todas as nossas dúvidas e os nossos defeitos, mas também as nossas qualidades.
Afinal, para o cristianismo ser humano é algo tão bom que o próprio Deus quis passar por esta experiência. E Eclesiastes é um livro sobre a vida, sobre o mundo. O Pregador era existencialista quando o existencialismo nem existia, e isso nem se cogitava.
Ele usa a expressão "debaixo do sol" 30 vezes no seu livro. Só no capítulo 1 ele a repete 3 vezes. "Debaixo do sol" é o equivalente em Eclesiastes ao "mundo" dos Evangelhos, principalmente o de João: "Deixo-lhes a paz; a minha paz lhes dou. Não a dou como o mundo a dá" (14:27). "Não se perturbem os seus corações, nem tenham medo. Neste mundo vocês terão aflições; contudo, tenham ânimo! Eu venci o mundo" (16:33), "Eles não são do mundo, como eu também não sou" (17:16).
Há mais semelhanças com a pregação de Jesus do que parece à primeira vista. Afinal, logo no 3º versículo, o Pregador pergunta: "Que proveito tem o homem, de todo o seu trabalho, com que se afadiga debaixo do sol?", algo que Jesus também perguntará, associando ainda "vida" e "mundo": "Pois que aproveita ao homem se ganhar o mundo inteiro e perder a sua vida? ou que dará o homem em troca da sua vida?" (Mateus 16:26).
A vida, o mundo, o tudo e o nada, estes são os temas de Eclesiastes.
Assim, o Pregador começa Eclesiastes levando ao extremo os seus argumentos, como se fosse um ateu em relação à religião, pelo menos no sentido que o ateísmo poderia ter naquele contexto judaico fortemente religioso.
Afinal, para que serviam todos aqueles rituais? Por que a vida do mundo judaico era centrada na religião se a rotina era a regra do mundo? Tudo era uma eterna mesmice... o sol se levanta, o sol se põe, o vento vai, o vento vem, num tédio só. Os rios correm para o mar, mas o mar não se enche, a água evapora e retorna como chuva. Tudo num ciclo monótono sem fim.
Outra tradução possível para "Todas as coisas são canseiras tais que ninguém as pode exprimir" (v. 8) é "Todas as palavras são frágeis", ou seja, até o discurso é vão, o Pregador estava cansado de tanto nhem-nhem-nhem.
Talvez a idéia pareça absurda para a Bíblia, mas é esta mesma a intenção do Pregador: chocar. Ele força a sua argumentação até o limite do suportável. Faz as vezes de "advogado do diabo" para atacar a Deus e, para isso, não desperdiça argumentos.
Falando da mesmice da vida, ele, pelo menos por alguns instantes, consegue fazer com que o seu ouvinte esqueça que "as misericórdias do Senhor são a causa de não sermos consumidos, porque as suas misericórdias não têm fim; novas são a cada manhã, grande é a tua fidelidade" (Lamentações 3:22-23).
O que ele está usando, no fundo, é um recurso da apologética. Colocando-se no lugar de inimigo das coisas de Deus, ele é propositalmente provocador, chegando às fronteiras da blasfêmia, para depois mostrar o que significa, na verdade, um mundo sem Deus.
Primeiro, o Pregador encurrala os seus ouvintes nos limites do seu pequeno mundo, debaixo do sol, de tal maneira que eles não parem para olhar nem pensar além do que lhes é próximo e palpável.
Salvo engano, atribui-se a Churchill o conselho de que, ao entrar numa igreja o homem deveria tirar o chapéu, mas não a cabeça.
Depois desse choque inicial, os ouvintes do Pregador estão preparados para atender um convite que lhes foi feito e eles ainda não perceberam: pensem, pensem, pensem...
Leitura seguinte: Revisitando Eclesiastes - capítulo 2
CAPÍTULO 1
Depois de se apresentar como "rei de Jerusalém", o Pregador inicia o livro de Eclesiastes com uma afirmação até certo ponto surpreendente: "Vaidade de vaidades, tudo é vaidade".
Ainda faz questão de reforçar a expressão "vaidade de vaidades", duplicando-a, como que dizendo que o próprio texto que ele estava começando a escrever já poderia, por assim dizer, terminar por ali mesmo, pois também era vaidade.
Pelo menos é essa a impressão que o leitor mais apressado tem, e, afinal, se tudo é vaidade, por que continuar a ler o livro? A resposta a esta pergunta é que vai ser sorrateiramente escondida, murmurada, sussurrada pelo Pregador até o final do livro, mas desde o início ele prende a atenção do leitor mais atento por inverter a ordem das coisas num livro de sabedoria (ou filosofia).
O sábio e o filósofo geralmente apresentam uma série de premissas e vão discutindo-as até chegar a uma conclusão final, com o perdão da redundância. É que Eclesiastes começa com uma "conclusão inicial", ou pelo menos parece começar com ela. "Vaidade de vaidades, tudo é vaidade". Mas será que tudo é vaidade mesmo?
Afinal, esta é uma ideia que o próprio Paulo retoma em de Romanos (8:20 – "Porque a criação ficou sujeita à vaidade, não por sua vontade, mas por causa do que a sujeitou), e que o apóstolo também insiste em Efésios (4:17 – "não andeis mais como andam também os outros gentios, na vaidade da sua mente").
A palavra "vaidade" é repetida 37 vezes nos 12 capítulos de Eclesiastes, e "vaidade" é a tradução da palavra hebraica הבל - hebel - que significa uma brisa suave, um vento leve, algo temporário, passageiro e sem importância.
O curioso é que "hebel" também pode ser um nome próprio, talvez não por acaso o de Abel, que, de acordo com o relato bíblico, foi a vítima do primeiro homicídio da humanidade, cuja vida foi ceifada na sua mocidade, e viveu muito pouco em relação aos seus parentes. Foi mais um que deu razão à advertência de Tiago: "Que é a sua vida? Vocês são como a neblina que aparece por um pouco de tempo e depois se dissipa" (Tiago 4:14 – NVI).
Logo de início, o Pregador se apresenta, portanto, como alguém desanimado, conformado com o nada, e sem nenhuma esperança. Parece um contra-senso na Bíblia, mas o Pregador não está sozinho. Jonas talvez tenha sido o profeta mais desanimado que houve. A Jeremias coube a terrível frustração de ver sua pregação ignorada e o seu povo morto ou levado escravo, Jerusalém e o Templo destruídos. Só lhe restou lamentar-se. Asafe desfiou sua inveja dos ímpios prósperos no Salmo 73.
A Bíblia está longe de ser um livro mitológico, de comportamentos impávidos e assépticos. Ela é composta de gente como a gente, com todas as nossas dúvidas e os nossos defeitos, mas também as nossas qualidades.
Afinal, para o cristianismo ser humano é algo tão bom que o próprio Deus quis passar por esta experiência. E Eclesiastes é um livro sobre a vida, sobre o mundo. O Pregador era existencialista quando o existencialismo nem existia, e isso nem se cogitava.
Ele usa a expressão "debaixo do sol" 30 vezes no seu livro. Só no capítulo 1 ele a repete 3 vezes. "Debaixo do sol" é o equivalente em Eclesiastes ao "mundo" dos Evangelhos, principalmente o de João: "Deixo-lhes a paz; a minha paz lhes dou. Não a dou como o mundo a dá" (14:27). "Não se perturbem os seus corações, nem tenham medo. Neste mundo vocês terão aflições; contudo, tenham ânimo! Eu venci o mundo" (16:33), "Eles não são do mundo, como eu também não sou" (17:16).
Há mais semelhanças com a pregação de Jesus do que parece à primeira vista. Afinal, logo no 3º versículo, o Pregador pergunta: "Que proveito tem o homem, de todo o seu trabalho, com que se afadiga debaixo do sol?", algo que Jesus também perguntará, associando ainda "vida" e "mundo": "Pois que aproveita ao homem se ganhar o mundo inteiro e perder a sua vida? ou que dará o homem em troca da sua vida?" (Mateus 16:26).
A vida, o mundo, o tudo e o nada, estes são os temas de Eclesiastes.
Assim, o Pregador começa Eclesiastes levando ao extremo os seus argumentos, como se fosse um ateu em relação à religião, pelo menos no sentido que o ateísmo poderia ter naquele contexto judaico fortemente religioso.
Afinal, para que serviam todos aqueles rituais? Por que a vida do mundo judaico era centrada na religião se a rotina era a regra do mundo? Tudo era uma eterna mesmice... o sol se levanta, o sol se põe, o vento vai, o vento vem, num tédio só. Os rios correm para o mar, mas o mar não se enche, a água evapora e retorna como chuva. Tudo num ciclo monótono sem fim.
Outra tradução possível para "Todas as coisas são canseiras tais que ninguém as pode exprimir" (v. 8) é "Todas as palavras são frágeis", ou seja, até o discurso é vão, o Pregador estava cansado de tanto nhem-nhem-nhem.
Talvez a idéia pareça absurda para a Bíblia, mas é esta mesma a intenção do Pregador: chocar. Ele força a sua argumentação até o limite do suportável. Faz as vezes de "advogado do diabo" para atacar a Deus e, para isso, não desperdiça argumentos.
Falando da mesmice da vida, ele, pelo menos por alguns instantes, consegue fazer com que o seu ouvinte esqueça que "as misericórdias do Senhor são a causa de não sermos consumidos, porque as suas misericórdias não têm fim; novas são a cada manhã, grande é a tua fidelidade" (Lamentações 3:22-23).
O que ele está usando, no fundo, é um recurso da apologética. Colocando-se no lugar de inimigo das coisas de Deus, ele é propositalmente provocador, chegando às fronteiras da blasfêmia, para depois mostrar o que significa, na verdade, um mundo sem Deus.
Primeiro, o Pregador encurrala os seus ouvintes nos limites do seu pequeno mundo, debaixo do sol, de tal maneira que eles não parem para olhar nem pensar além do que lhes é próximo e palpável.
Salvo engano, atribui-se a Churchill o conselho de que, ao entrar numa igreja o homem deveria tirar o chapéu, mas não a cabeça.
Depois desse choque inicial, os ouvintes do Pregador estão preparados para atender um convite que lhes foi feito e eles ainda não perceberam: pensem, pensem, pensem...
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