Artigo publicado no jornal Valor Econômico em 09/01/14:
Políticos na Argentina se curvam à agenda do papa
César Felício
Em nove meses de pontificado, o papa Francisco está conseguindo fazer na Argentina o que não obteve em seus 15 anos à frente da Arquidiocese de Buenos Aires: aumentar a influência da Igreja na política e na sociedade. A Igreja chefiada Jorge Mario Bergoglio fez com que a oposição e o governo da presidente Cristina Kirchner alterassem sua agenda e colocassem, por exemplo, o combate ao narcotráfico como prioridade.
Há três semanas, quatro presidenciáveis oposicionistas assinaram um compromisso de adotar a recomendação da Conferência Episcopal Argentina (CEA) para a questão. Se comprometeram Sergio Massa (Frente Renovadora); Ernesto Sanz (União Cívica Radical), Hermes Binner (Partido Socialista) e Mauricio Macri (PRO). Na plataforma que subscreveram consta "desalentar o consumo de drogas" e regulamentar a legislação que coíbe a venda de produtos químicos usados na produção de drogas sintéticas e na transformação da pasta base em cocaína.
O governo já havia se alinhado antes. Em novembro, os bispos argentinos divulgaram um duro comunicado levantando a suspeita de conivência da administração pública com "grupos mafiosos" e cobrando a nomeação de um titular para a Sedronar, órgão federal de combate ao narcotráfico.
Dias depois, Cristina nomeou para o cargo o padre salesiano Juan Carlos Molina, confessor de sua cunhada, a ministra do Desenvolvimento Social, Alicia Kirchner. Os bispos reconheceram o gesto, mas soltaram um nota afirmando que Molina não assumia "nem em nome, nem em representação da Igreja Católica".
No Congresso, a Igreja foi capaz de alterar o polêmico projeto do novo Código Civil, já aprovado pelo Senado e que deve ir à Câmara em março. Líderes do Executivo e do Legislativo colocaram Roma em seu roteiro obrigatório de consultas políticas. Entre as mudanças, estão o reconhecimento como pessoa humana de embriões produzidos por reprodução assistida e a retirada da regulamentação da gravidez de "barriga de aluguel".
"Muita coisa mudou. O papa deu uma visão mais positiva da instituição e as forças políticas procuram legitimar-se associando-se a ele. A hierarquia católica ganhou poder de articulação", disse o economista Alejandro Nasif Salum, representante dos militantes por direitos de homossexuais dentro da Coalizão Argentina pelo Estado Laico (Cael), o enfraquecido grupo de pressão que impulsiona a aprovação do novo código.
O aumento da força política do catolicismo partiu de uma base institucional sólida. Embora Bergoglio tenha sido derrotado em questões como a aprovação do casamento entre gays, em 2010, a lei que regulamenta a mudança de sexo e a permissão do aborto em casos de estupro e má-formação do feto, entre 2011 e 2012, a Igreja Católica ainda desfruta de uma posição legal privilegiada, garantida desde o surgimento do país.
É a única confissão religiosa considerada pessoa jurídica de direito público, o que lhe garante, entre outras coisas, não ter bens sujeitos a embargo judicial e nem se sujeitar aos limites à propriedade de rádios e TV impostos pela lei de mídia de 2009.
Pelo artigo 2º da Constituição argentina, o governo é obrigado "a sustentar o culto apostólico romano", o que se traduz na ajuda pública para o pagamento de salários de parte do clero, despesas com viagens e com eventos. No Orçamento de 2013, estava previsto o custeio de 131 bispos, 640 sacerdotes e 1.600 seminaristas. O Ministério de Relações Exteriores e Culto previa gastar com o sustento da Igreja Católica 62,8 milhões de pesos argentinos, o equivalente a cerca de US$ 12 milhões, pela cotação média do ano passado.
Na Casa Rosada, a equação de forças mudou quando, em 20 de novembro, Cristina nomeou o governador do Chaco, Jorge Capitanich, como ministro-chefe de Gabinete, cargo similar ao de ministro da Casa Civil no Brasil. Capitanich é conhecido por sua ótima relação com a hierarquia católica.
No mês passado, em meio a uma onda de saques no interior do país associados à motins das forças policiais regionais, Cristina recebeu na residência oficial de Olivos a cúpula da Igreja Católica. A presidente argentina, que desde sua operação no cérebro em 5 de outubro só apareceu em público duas vezes, não procurou nesse momento uma aproximação apenas com o clero comandado por Bergoglio: também se encontrou com a entidade que representa a religião judaica (Daia) e a Federação das Igrejas Evangélicas da Argentina.
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