Hoje começa a Copa das Confederações com o jogo Brasil x Japão marcado para Brasília (DF). A Argentina, nosso mais querido (e temido) adversário futebolístico, não participará, mas o momento parece adequado para revisitar essa rivalidade com olhos muito mais clínicos do que as narrações apaixonadas das "patriotadas" do Galvão Bueno:
O artigo foi publicado na Revista de História em 02/05/11:
Espírito pra lá de esportivo
Desde 1970, jornais mostram que argentinos apóiam Brasil no futebol
Ronaldo George Helal
Quando Brasil e Argentina entram em campo, os narradores de futebol sempre recordam a enorme rivalidade que existe entre os dois países. Valorizando o drible e a improvisação, ambos produziram um “estilo de jogo” que se opõe aos esquemas táticos que são típicos do futebol europeu. Em comum, brasileiros e argentinos têm também a forma como usaram esse esporte para construir a identidade nacional. Mas quando o assunto é a opinião do torcedor, aparece a diferença: a análise de matérias de jornais, declarações à imprensa e estudos acadêmicos revela que os argentinos admiram muito mais o futebol do Brasil do que o contrário.
Uma visita à Argentina já mostra que o povo local adota sem constrangimento referências ao país vizinho. No verão, é possível ver pessoas usando sandálias com a bandeira brasileira nas tiras, enquanto por aqui é difícil encontrar alguém com uma peça de roupa que tenha a bandeira argentina. Música brasileira é tocada frequentemente em bares e restaurantes. A impressão pode ser confirmada pela frase do sociólogo Pablo Alabarces, da Universidad de Buenos Aires: “Os brasileiros amam odiar os argentinos, enquanto os argentinos odeiam amar os brasileiros”.
A análise da cobertura feita pelos jornais argentinos das Copas do Mundo de futebol de 1970 a 2006 prova que no futebol acontece o mesmo: a imprensa argentina “tendia” para o Brasil quando a seleção jogava contra uma equipe europeia. Em 1970, por exemplo, após a partida final entre Brasil e Itália, vencida pela seleção brasileira por 4 a 1, o correspondente do jornal Clarín, Beto Devoto, escreveu que “sentimos perder a objetividade jornalística porque desejávamos de todo o coração a vitória do Brasil, que é vitória da escola sul-americana”.
Em 1982, após a eliminação do Brasil pela Itália, o Clarín afirmou que a potência daquela Copa foi o Brasil. A narrativa do jornal lamenta o resultado – parece ignorar que os brasileiros foram responsáveis pela eliminação da Argentina no jogo anterior – e elogia o futebol da seleção brasileira, principalmente “pela verdade de seu jogo”. Narrativa semelhante é observada após a derrota brasileira para a França na Copa de 1986, vencida pela Argentina. O jornalista Manuel Epelbaum, do Clarín, diz que a partida entre Brasil e França “foi um monumento ao Futebol”. E, no final do texto, lamenta a eliminação do “digníssimo Brasil”.
Além das narrativas elogiosas e da ausência de comemorações nas derrotas do rival, há também enquetes realizadas pelos jornais que ajudam a entender melhor como os argentinos nos veem. Na véspera da final da Copa de 1994, entre Brasil e Itália, o Clarín perguntou qual equipe os leitores queriam que ganhasse a competição. O resultado é que, “apesar da rivalidade existente entre ambos os países, os portenhos desejam que o próximo campeão do mundo seja o Brasil, segundo uma pesquisa telefônica realizada com 550 pessoas”, diz o jornal, que continua: “Talvez influenciados pelo fato de que o time de Carlos Alberto Parreira seja o único sul-americano na disputa, 59,5% dos entrevistados escolheram o Brasil como sua equipe favorita”.
Em 2002, na véspera da final contra a Alemanha, o jornal Olé, que “provocou” o Brasil durante toda a Copa, publicou pesquisa feita com mais de dez mil internautas em seu site e registrou que 55,6% preferiam que o Brasil ganhasse o Mundial. Nas duas partidas entre Brasil e Argentina realizadas em junho de 2005, pelas eliminatórias para a Copa do Mundo e na final da Copa das Confederações, os argentinos se referiam aos brasileiros como os praticantes do “jogo bonito”. No jornal La Nación de 6 de junho de 2005, o articulista Juan Pablo Varsky destacou no título de sua crônica: “Ronaldinho, o artista alegre”. O texto, ilustrado com uma foto do jogador rindo, diz: “Ronaldinho ama o futebol. Curte o esporte, se diverte, transmite alegria. Até seus adversários o entendem, mesmo quando são humilhados por um truque de seu mágico repertório”. Ele termina dizendo que “Ronaldinho Gaúcho é simplesmente irresistível. Por isso, nós também estamos contando as horas para vê-lo jogar por 90 minutos”.
Enquanto isso, no Brasil, temos ouvido cada vez mais locutores de televisão, técnicos e jogadores dizendo frases como: “Ganhar é muito bom, mas ganhar da Argentina é melhor ainda”. O narrador Galvão Bueno, por exemplo, já disse isso algumas vezes.
A implicância crescente com o argentino talvez seja resultado da necessidade maior do Brasil de marcar sua alteridade, ou seja, de ter um adversário a quem se opor para se afirmar como nação. A popularização da nacionalidade brasileira foi construída, em grande parte, por meio do futebol, enquanto na Argentina o “nacional” já existia antes desse esporte, por meio das escolas públicas, a partir da época em que Faustino Sarmiento(1811-1888) governou o país, entre 1868 e 1878. O investimento que Sarmiento fez nas escolas tinha a intenção de levar os imigrantes a encontrar ali um ideal de nação argentina.
Já no Brasil, o primeiro movimento em torno de uma “construção” de identidade nacional ocorreu na Semana de Arte Moderna de 1922, mas foi só a partir da década de 1930 que novas formas de conceituar o país – encontradas, por exemplo, nas obras de Gilberto Freyre, Casa-Grande & Senzala (1933), e de Sergio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil (1937) – passaram a dominar o meio intelectual. Nas obras de Nina Rodrigues (1862-1906) e Oliveira Viana (1883-1951), por exemplo, a miscigenação racial era vista como algo negativo e não como um valor positivo, como na obra de Freyre.
No meio do futebol, as crônicas e os livros do jornalista Mário Filho (1908-1966), amigo de Freyre, foram importantes no processo de uso do futebol para se construir o “nacional”, justamente em um período de profissionalização e popularização do esporte e de mudanças na maneira de se pensar o país.
Mas na imprensa brasileira de hoje, o acirramento da rivalidade entre os dois países nunca é justificado como forma de afirmação nacional, e sim como defesa às “provocações” argentinas. Nessas horas, sempre se fala nas declarações de Diego Maradona, o melhor jogador argentino da história. Durante a Copa de 2010, os jornalistas brasileiros enfatizaram frases provocativas de Maradona, que ocupava o cargo de técnico da Argentina. Mas, prestando atenção às suas entrevistas na íntegra, é possível observar que a imprensa do Brasil fazia uma edição tendenciosa, sempre buscando a polêmica. Quando ele disse, logo após a primeira rodada, que só a Argentina tinha jogado bem, saiu no Globo.com que ele estaria desprezando o Brasil. Os brasileiros não costumam se lembrar de que o próprio Maradona afirmou, após a derrota de sua seleção na final da Copa América de 2007, que “o Brasil, ao longo da história, sempre esteve um degrau acima”.
O nome de Maradona também está envolvido em uma polêmica que alimenta a rivalidade entre Brasil e Argentina: quem foi o melhor jogador, ele ou Pelé? Este é um debate surgido recentemente nos meios de comunicação dos dois países. Ele só aparece no material jornalístico analisado na Copa de 2002. Em 1990, o ex-jogador brasileiro chegou a ser anunciado pelo Clarín – no qual foi colunista em vários Mundiais – como “o melhor da história”. Talvez essa polêmica recente revele um sentimento de compensação dos argentinos devido à superioridade do futebol brasileiro nos últimos vinte anos, com a conquista de duas Copas (1994 e 2002).
O fato é que toda rivalidade traz em si uma dose de admiração. Só se rivaliza com quem tem algo que se deseja possuir ou superar, com quem é grande e tememos que seja maior do que nós. A Ilíada, de Homero, está repleta de passagens que retratam a admiração mútua entre gregos e troianos e entre os heróis Aquiles e Heitor. Mas, diferentemente dos conflitos que podem levar à aniquilação de um povo por outro, no esporte não se rivaliza para destruir o outro, pois dele uma equipe ou nação precisam para se singularizar.
Nos últimos anos, essa rivalidade conquistou a publicidade brasileira. Na Copa de 2010, a maioria dos comerciais tinha o argentino como único antagonista. Em um deles, uma lata de cerveja chama um argentino de maricón (homossexual). Uma publicidade do país vizinho retratando o brasileiro de forma parecida talvez criasse um incidente internacional, apesar do tom obviamente humorístico.
As informações sobre a falta de reciprocidade do lado de cá estariam provocando uma mudança de atitude por parte dos argentinos em relação ao “odiar amar”. Durante a Copa de 2006, já foi possível notar uma ligeira modificação. E na derrota do Brasil para a Holanda na Copa de 2010, houve comemorações na Argentina. O resultado é que os jornais já não “tenderiam” mais para o Brasil, como em Copas passadas.
Ronaldo George Helal é professor da Faculdade de Comunicação Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e autor de “Jogo bonito y fútbol criollo: la relación futbolística Brasil-Argentina en los medios de comunicación”, in Grimson, Alejandro. Pasiones Nacionales: politica y cultura en Brasil y Argentina. (Edhasa, 2007).
SAIBA MAIS - Bibliografia
- ALABARCES, Pablo. “Tropicalismo y europeísmos: La narración de la diferencia entre Argentina y Brasil a través del fútbol”. In: GASTALDO, Édison; GUEDES, Simoni (orgs.). Nações em campo: Copa do Mundo e Identidade Nacional. Niterói: Intertexto, 2006.
- FRIGERIO, Alejandro; RIBEIRO, Gustavo Lins (orgs.). Argentinos e brasileiros: Encontros, imagens e estereótipos. Petrópolis: Vozes, 2002.
- GUEDES, Simoni. “De Criollos e Capoeiras: notas sobre futebol e identidade nacional na Argentina e no Brasil”. In: GASTALDO, Édison; GUEDES, Simoni (orgs.). Nações em campo: Copa do Mundo e Identidade Nacional. Niterói: Intertexto, 2006.
- SANTOS, Newton César de Oliveira. Brasil x Argentina: História do maior clássico do futebol mundial (1908-2008). São Paulo: Editora Scortecci, 2009.
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