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domingo, 16 de junho de 2013

Deus e o Diabo na Terra do Sol, 50 anos depois

Artigos publicados no Estadão de 26/05/13 celebram os 50 anos da obra-prima de Glauber Rocha:


A cidade continua sendo aquilo que os padres capuchinhos desejavam: destino certo dos sobreviventes da caatinga

JOÃO VILLAVERDE

Paris, 1886. O último imperador brasileiro, Dom Pedro II, visitava a Academia de Ciências da capital francesa e ficou surpreso quando se deparou com sedimentos que pertenciam a um dos maiores meteoritos já encontrados na Terra. Ele ficou atônito ao descobrir que a pedra original fora encontrada no Brasil - e ainda estava lá. O Meteorito de Bendengó permanecia, desde 1784, quando foi encontrado, na pequena Monte Santo (BA).

Após voltar ao Brasil, o imperador ordenou que a pedra fosse trazida do sertão da Bahia para o Rio de Janeiro. Foram necessários quase dois anos entre a ordem de Dom Pedro II e a realização de seu desejo. Quando o meteorito enfim chegou ao Rio, em junho de 1888, a filha do imperador, princesa Isabel, já abolira a escravidão no País. A monarquia estava com os dias contados.

Com o Bendengó, ainda hoje em exposição no Museu Nacional carioca, e a complexa operação de transporte montada por Dom Pedro II, a pequena Monte Santo entrara na história nacional. A relação mística criada então no município, no entanto, logo seria substituída por uma história sangrenta.

Nove anos depois de perder o Bendengó por decisão do imperador, Monte Santo viu chegar em suas terras as tropas militares da recém instaurada República. Os soldados montaram ali sua base para esmagar os beatos que seguiam Antônio Conselheiro na vizinha Canudos (BA). Enviado pelo Estado ao sertão, o jornalista Euclides da Cunha contou, em Os Sertões (1902), os detalhes do trajeto que as tropas fizeram até Canudos.

Até hoje, quem visita Monte Santo encontra uma réplica do meteorito do Bendengó e diversas imagens das tropas militares lideradas pelo marechal Carlos Machado Bittencourt no Museu do Sertão. Mas há poucos vestígios do terceiro evento que colocou Monte Santo no mapa - as filmagens de Deus e o Diabo na Terra do Sol, considerado um dos filmes mais importantes do cinema mundial. Cinquenta anos depois, o Estado esteve lá.

Glauber Rocha decidiu que iria filmar seu segundo e mais ousado longa-metragem em Monte Santo ainda no fim de 1962. Baiano nascido em Vitória da Conquista, Glauber entendia que a longa escadaria de pedra encravada na serra de Santa Cruz, que leva a uma pequena capela, seria o cenário ideal para a primeira metade do filme.

Aqueles degraus, que levam ao céu no meio do morro, seriam o palco perfeito para Glauber homenagear seu mestre Sergei Eisenstein. Uma cena antológica de Deus e o Diabo, quando os beatos são assassinados pelo matador Antônio das Mortes (Maurício do Vale), repete a famosa passagem da Escadaria de Odessa, em O Encouraçado Potemkin (1925), do cineasta russo.

O jovem diretor baiano encontrou dificuldades curiosas para executar seu filme em Monte Santo, como conta Nelson Motta na biografia do cineasta. Ao se depararem com Othon Bastos fantasiado de cangaceiro, muitos monte-santenses correram para suas casas, com medo de que o grupo de Lampião ainda existisse. Os moradores mais velhos tinham sido testemunhas dos confrontos entre os cangaceiros e o antigo prefeito Aristides Simões, na década de 1930.

A aparição de Lídio Silva vestido do beato São Sebastião e carregando uma cruz de madeira fez com que muitos fiéis fossem pedir bênção ao ator. E a casa onde ficou instalada Yoná Magalhães virou local de procissão - os habitantes nunca tinham visto uma mulher tão linda, e encaravam Yoná como uma santa enviada à cidade.

Hoje, 50 anos depois de Glauber e sua trupe fazerem de Monte Santo o local de nascimento de um marco do Cinema Novo, um século após as traumáticas experiências de morte e perseguição por conta da Guerra de Canudos e mais de 200 anos depois que um dos maiores meteoritos na Terra foi descoberto na região, a pequena cidade continua a ser o que os padres capuchinhos que a fundaram, no século 18, desejavam: centro de peregrinação dos sobreviventes da caatinga.

Quando o Estado passou por Monte Santo, uma passeata percorria as ruas para informar os mais de 55 mil habitantes sobre o abuso sexual de mulheres na Bahia. Barulhenta, a manifestação terminou na praça do centro do município, onde grande palco estava instalado. Ao final do episódio, no horário de almoço, o som foi desligado, e as pessoas se dispersaram. A cidade voltou a ficar calada. E a seguir seu ritmo. Quem chega a Monte Santo lê em seu portal que a cidade é "o coração místico do sertão baiano". A propaganda não é enganosa.





ANÁLISE: Luiz Zanin Oricchio

Há um fato interessante a respeito de Deus e o Diabo na Terra do Sol. O filme foi apresentado à imprensa dia 13 de março de 1964. Nesse mesmo dia houve o famoso Comício da Central do Brasil, no qual o presidente João Goulart defendia as Reformas de Base. O comício, incendiário, foi estopim para o golpe de Estado que derrubaria o presidente duas semanas depois, em 1.º de abril, dando início a uma ditadura de 21 anos.

O quadro histórico é importante, pois Glauber, em Deus e o Diabo, expressa um programa de geração. Mais que um filme, é um manifesto. Mais que manifesto, é todo projeto para um futuro que não se cumpriria. De qualquer, forma, Glauber exprime a fé revolucionária e a sua confiança jovem de 20 e poucos anos de que o homem deve se assumir senhor do seu destino, sujeito da sua história, como então se dizia.

O trajeto é exemplar. O vaqueiro Manuel (Geraldo Del Rey), depois de matar o patrão, vaga sem rumo pelo sertão. Conhece primeiro o "Deus Negro", Sebastião (Lídio Silva) em Monte Santo. É a fase mística. Que, superada, passa à fase seguinte, no encontro com o cangaceiro Corisco (Othon Bastos), até que este caia nas mãos de Antonio das Mortes (Mauricio do Valle). No trecho final, Manuel corre em direção ao mar, obviamente aqui significando a esperança de transformação. Esse é o tom otimista. Manuel, essa consciência alienada, supera a fase mística com o beato, a violência sem direção do cangaço, para assumir-se por fim, livre e só, para construir o seu futuro.

Era o clima vigente na época, pouco antes do golpe. Muito diferente, por sinal, daquele expresso no filme seguinte de Glauber, outra obra-prima, Terra em Transe (1967), de certa forma a reflexão de por que as esperanças exibidas em Deus e o Diabo haviam naufragado. Entre outras hipóteses, que podem ser lidas na própria obra de Glauber, mas também fora dela, porque o "progresso" humano não se faz em linha reta, evolutiva. Nem mesmo através das contradições hegelianas, como pode ser intuído no filme. É tortuoso, errático e misterioso. Recua quando parece avançar e vice-versa. Mas, numa época de euforia revolucionária, a racionalidade do progresso e a iminência da libertação parecem fatos evidentes.

Deus e o Diabo na Terra do Sol está disponível numa excelente cópia em DVD, fruto da parceria entre Versátil, Riofilme e Tempo Glauber. São dois discos. Um com o filme, outro apenas reservado aos extras, com depoimentos, músicas, trailer, etc. É uma das obras-primas incontestes do cinema brasileiro.





"Ninguém assiste a filme brasileiro, não, os estrangeiros são muito melhores", disse Gabriel Silva, 14 anos, quando questionado pelo Estado sobre a presença do cineasta baiano Glauber Rocha em sua cidade, Monte Santo (BA), meio século atrás. O adolescente, que estava na praça no centro da cidade, nunca ouvira a história na escola ou em casa.

Ao seu lado, Elizabeth, que optou por não revelar o sobrenome, concordou com a avaliação do jovem. "A turma só compra DVD de filme americano, que é melhor, e todo mundo conhece os atores", disse ela, que trabalha na maior farmácia do município.

Uma das poucas lembranças da presença de Glauber Rocha e sua equipe em Monte Santo surge quando o Estado visita a escadaria de pedra que leva à capela no alto da serra de Santa Cruz. Os degraus serviram de cenário central em Deus e o Diabo na Terra do Sol.

Um idoso se aproximou do repórter e do fotógrafo Ed Ferreira para questionar o que faziam ali. Ao ser avisado da ocasião dos 50 anos das filmagens do marco fundador do Cinema Novo brasileiro, ele - que pediu para não ser identificado - lembrou que a grande diversão dele e dos colegas, que participaram como figurantes no longa metragem, era notar que o responsável por dirigir o jipe que carregava a equipe e as máquinas de filmagem em Monte Santo interpretava um cego no filme.

O idoso de Monte Santo fazia referência ao motorista Marrom, que representa no filme a personagem Cego Júlio. Foi Marrom quem avisou Glauber que no município vizinho de Milagres (BA) o cineasta Ruy Guerra filmava Os Fuzis. Glauber ficou furioso ao saber que sua ideia de retratar o sertão brasileiro nos cinemas tinha sido copiada. Sua reação foi simples: escreveu artigos para os jornais baianos criticando a invasão estrangeira do sertão. Em tempo: Ruy Guerra nascera em Moçambique. / J .V.





50 anos depois, Monte Santo ainda guarda lembranças de Deus e o Diabo na Terra do Sol

João Villaverde

MONTE SANTO (BA) - Cidade ícone do cinema brasileiro, a pequena Monte Santo, encravada no meio do sertão baiano, é um misto de história e esquecimento. Em suas terras, o cineasta Glauber Rocha filmou seu clássico maior, Deus e o Diabo na Terra do Sol, em 1963. Cinquenta anos mais tarde, a cidade de rica história seguiu seu rumo, e guarda pouco dos jovens baianos que ali produziram um dos grandes marcos do Cinema Novo.

A partir da história contada em Monte Santo - que só foi estrear nos cinemas no ano seguinte -, nasceu a mais criativa e ambiciosa geração de cineastas brasileiros, reconhecida com prêmios em festivais como Cannes (França) e Veneza (Itália), e por mestres da arte, como os diretores Jean-Luc Godard, Luis Buñuel e Martin Scorsese.

Cinquenta anos depois de Glauber, o Estado percorreu as ruelas do município, incluindo a famosa escadaria de pedra encravada na serra de Santa Cruz, que permanece igual àquela filmada em 1963. Mantida pela prefeitura de Monte Santo e pelos fiéis que fazem dela trajetória de procissão até a pequena capela no alto do morro, a escadaria de três quilômetros foi também personagem - dentro e fora das telas.

Em Deus e o Diabo, os moradores de Monte Santo, que interpretam beatos seguidores de São Sebastião, são assassinados no local por Antônio das Mortes, que atira com sua espingarda do alto da escadaria. A cena é fundamental para o enredo. Sem os beatos, os protagonistas Manuel e Rosa partem em busca de outro guia, que surge na figura do cangaceiro Corisco, o braço direito de Lampião.

Mas, fora das telas, a escadaria também teve papel no filme - ao realizar a dramática passagem em que o vaqueiro Manuel sobe de joelhos os degraus de pedra, com um enorme pedregulho apoiado na cabeça, o ator Geraldo Del Rey sofreu um grave ferimento na base do crânio, e precisou ser tratado em um hospital de Salvador, paralisando as filmagens por três dias.

Em 1963, a maior parte do pouco mais de mil habitantes de Monte Santo ainda se lembrava do grupo de Lampião, e os mais velhos tinham memórias do conflito em Canudos. Em sua biografia de Glauber, Nelson Motta anotou: "Com a chegada da equipe de filmagem, a cidade, mergulhada em profundo clima místico, acordou de sua letargia e passou a viver entre a fantasia, o mito e a realidade".

Monte Santo seguiu seu rumo. A cidade que nasceu da descoberta do meteorito do Bendengó, em 1784, até hoje o maior já encontrado no Brasil, que um século depois serviu de base para o Exército que o governo federal enviou para esmagar Antônio Conselheiro e seus beatos na vizinha Canudos, e que viu Lampião (na década de 1930) e Glauber Rocha (em 1963), continua mística. O clima seco e as ladainhas dos beatos ainda estão lá. O passado não atrasou Monte Santo, que viu sua população aumentar 50 vezes nos últimos 50 anos.



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