Excelente artigo do Juiz de Direito Dr. Alberto Alonso Muñoz sobre esta estranha febre de que "conciliação é tudo de bom" (que assola o Judiciário), publicado no portal Justificando:
Conciliar é legal… para quem, cara pálida?
Comecemos com uma fábula. Certa vez, o leão invadiu um galinheiro e levou consigo uma dúzia de ovos e seis filhotes recém-nascidos. Desesperada, a galinha tenta reaver sua cria. O leão, claro, resiste e lhe responde que “trate, se quiser, de buscar seus direitos”. Ela contrata o gavião como advogado. Recorrem ao Poder Judiciário, onde encontram a coruja, abarrotada de processos, irritada com mais um processo igual a dezenas de milhares de outros promovidos contra o leão. Desconfia da galinha, que deve estar mesmo a aproveitar-se do processo para se beneficiar.
Às vésperas da audiência, o gavião sugere aceitarem um acordo. Há risco de a coruja julgar o pedido improcedente e ainda condenar a galinha a pagar honorários. Na audiência, a coruja, de péssimo humor em função da constante cobrança por livrar-se de um serviço invencível, pergunta se há proposta de acordo. O leão propõe a devolução de seis ovos e das penas que sobraram. O gavião, interessado em receber imediatamente seus honorários, sugere que a galinha aceite. Aos prantos, ela concorda. O gavião ganha os honorários (dos seis ovos, ficará com dois) e a coruja liquida mais um processo. Quanto ao leão, bem…
Com o incremento do número de processos partir dos anos noventa (salto de cinco para vinte e cinco milhões de processos na justiça brasileira em cerca de dez anos, conforme dados do CNJ), a conciliação (e outros “meios alternativos de solução de controvérsias”) se torna a palavra do momento. Ela “pacificaria o conflito”, permitiria soluções “mais adequadas” do que a via judicial, seria mais célere e livraria o Poder Judiciário de sua excessiva demanda. Nas palavras da ex-ministra Ellen Gracie quando do lançamento dessa campanha pelo CNJ: “Conciliar é legal”.
Pois esse é o discurso ideológico. A característica de qualquer discurso ideológico é que persuade mascarando e distorcendo, ocultando elementos fundamentais da realidade. É assim que o boletim Justiça em Números do CNJ tem apontado anualmente para as reais causas da implosão do Poder Judiciário e para a verdadeira natureza dos conflitos. Sua característica fundamental consiste em envolverem partes em completo desequilíbrio de poder, econômico e processual. É o que explica a existência de “grandes litigantes” (melhor: gigantescos litigados), ocupando o polo passivo de mais de 85% das demandas.
Os números mostram que bancos, prestadoras de serviços (telefonia em primeiro lugar), operadoras de planos de saúde e a Administração Pública são responsáveis pelo maior número de processos. A maior parte dos litígios não consiste, ao contrário do que se diz, em brigas entre vizinhos ou batidas de veículos, como o discurso hegemônico quer fazer crer. Não bastasse, a explosão de litígios, embora se diga ser um fenômeno internacional, não o é. O aumento do número de conflitos, especialmente na Europa, ocorreu duas décadas antes. É muito menor, possui natureza diversa e suas razões, mais diferentes ainda do que aquelas do caso brasileiro, resultado da implantação da gestão social neoliberal entre nós a partir dos anos noventa.
O custo da administração de um processo e o risco da condenação são muito mais lucrativos do que o investimento na qualidade dos serviços prestados, a revisão das cláusulas contratuais abusivas, o cuidado na contratação ou a facilitação da rescisão. É mais vantajosa para a Administração Pública a judicialização do que o pagamento de resíduos de planos econômicos de ilegalidade notoriamente reconhecida pela Jurisprudência. Perceba-se que o ponto crucial é o fator tempo: para a parte mais fraca, o tempo é sempre desfavorável. O tempo do processo está sempre a favor da parte mais poderosa: seja concluindo rapidamente por um acordo, seja delongando o máximo possível. É justamente isso essa ideologia silencia, o que permanece oculto no discurso da conciliação e da responsabilização do demandante pelo excesso de litigiosidade.
Um banco provisiona o valor total de suas derrotas judiciais, repassando-o para a taxa média de juros de suas operações financeiras. A diferença entre a taxa de juros aplicada nas condenações judiciais e aquela praticada na contratação das operações de crédito torna o tempo processual um excelente negócio. Mecanismo semelhante repete-se com a sofrível qualidade dos serviços oferecidos pelas principais prestadores de serviços públicos (e suas correspondentes tarifas), com as reiteradas negativas de cobertura contratual dos planos de saúde e, por fim, com a insistente preferência do próprio Executivo na judicialização.
Captura do Poder Judiciário, eis a palavra. Num quadro como esse, há quem apresente algumas propostas. “Fortalecimento das Agências Reguladoras”: alguém realmente acredita que, diante de um bloco de interesses convergentes tão poderoso, isso realmente é possível? “Aumento do número de juízes”: a solução para os números vergonhosos brasileiros (6,2 por cem mil habitantes em São Paulo, contra 10 em Portugal e 24 na Alemanha) esbarra com as restrições orçamentárias de sempre. “Boa gestão dos Tribunais (especialmente informatização e recursos humanos)”: pois é o próprio CNJ que afirma que já se chegou ao limite do possível e não há como fazer mais com o que se tem.
“Aprovação da dimensão punitiva nas indenizações”: como, diante das poderosíssimas resistências (os projetos encontram-se devidamente engavetados no Senado)? “Reforma do Código de Defesa do Consumidor”: “flexibilização”, ou seja, revogação dos mínimos direitos protetivos, é o que se prende?
Solução? Sejamos realistas: não há. Mas o certo é que o movimento pela conciliação, com seu discurso da “pacificação” e sua crítica à “cultura da judicialização”, revela ser mais um véu ideológico de ocultação da realidade e uma pseudo-solução.
Conciliar é mesmo legal? Em época de administração neoliberal da vida social, é preciso prosseguir com a pergunta: para quem?
Para quem, cara pálida?
Alberto Alonso Muñoz é juiz de direito na Capital de São Paulo, conselheiro da AJD, mestre e doutor em Teoria Geral do Direito pela USP e membro do Conselho Editorial do IBCCrim.
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