Publicamos aqui no último mês de janeiro, no artigo "Aborto e vida Severina", um documentário contundentemente trágico sobre o sofrimento de um casal humilde nordestino (em especial a mãe) durante a gestação de um feto anencéfalo, destinado à morte assim que visse a luz do dia, o que de fato ocorre, já que os meandros da Justiça e da saúde pública fazem o sofrimento perdurar indefinidamente até o caixãozinho branco do final.
Como já escrevemos naquela oportunidade, talvez o momento mais emblematicamente triste do documentário "Uma História Severina" (vídeo abaixo), ocorre quando a mãe vai a uma loja comprar UMA única roupinha para o bebê, e a vendedora, na esperança - talvez - de vender um enxoval inteiro, fica estupefata com a resposta que recebe, a de que a criança ia nascer para morrer.
Impossível, portanto, não sentir - no mínimo - compaixão pela triste sina do casal. Não havia solução fácil no caso deles. Qualquer que fosse a decisão tomada, a dor seria inafastável.
Por isso, soa no mínimo estranha a declaração do cardeal-arcebispo de São Paulo, D. Odilo Scherer, publicada no Estadão ontem, 8 de abril de 2012, de que o sofrimento da mãe não é justificativa para o aborto de anencéfalo. Passa a impressão de que quem decide se alguém pode ou não sofrer é um cardeal da igreja católica.
Ao fazer isso, o cardeal - inadvertidamente - não pode reclamar de toda e qualquer pessoa que queira julgar, por exemplo, se as justificativas dadas pela igreja católica aos casos de pedofilia no seu meio são razoáveis ou não, e as vítimas de padres pedófilos não se surpreendem já que - historicamente - as autoridades católicas se preocuparam muito mais em proteger os abusadores do que com o sofrimento que eles causaram.
Dois pesos e duas medidas, portanto. Claro que esta é uma generalização barata de um problema muito mais profundo, mas ela é propositalmente feita para que se perceba a fragilidade dos argumentos do cardeal. Do alto do seu trono episcopal, ele agora controla as consciências já destinadas à tragédia e decide quem pode ou não pode sofrer...
Desconfio que boa parte da perda de influência e de fiéis da igreja católica se dê pelo abandono concomitante do foco no seu discurso teológico. Ao leigo, parece que eles só se preocupam com o aborto, que se torna um discurso ideológico ao sabor das marés políticas e jurídicas de ocasião.
Isso não quer dizer que o discurso anti-aborto não seja legítimo, dentro do ambiente e da ênfase em que ele se fizer necessário. O que ele não pode trazer embutido é o desejo inquisitório e autoritário de decidir quem vai sofrer, acrescentando dor externa a quem não consegue mais suportar a dor que carrega no ventre...
Hélio · 681 weeks ago
Escrevi a respeito do aborto de anencéfalos em meu blog. Foi uma confusão total entre eu e os comentaristas devido a posição que tomei.
Como sou leitor assiduo do seu blog resolvi pesquisar algo por aqui e me deparei com esse texto. Gostaria de comentar o argumento do Cardeal da Igreja Católica de que o sofrimento da mãe não é motivo para abortar a criança destina à morte assim que nascer.
Em um certo sentido eu concordo com ele, pois quando trazemos à mesa a questão do sofrimento do casal que espera um feto em má formação (e poderia nem citar a anencefalia aqui) utilizamos o campo das emoções como forma de suscitar em nosso intimo certa empatia pelo sofrimento do casal que vive este momento com o intuito de validar/justificar a prática do aborto nesses casos específicos.
Sendo assim pergunto. E se uma família sofre com um membro que por meio de um acidente trágico se encontra em estado "semi-vegetativo", é plausivel tirar-lhe sua vida sob o argumento de que sua familia, junto com ele, estaria sofrendo?
Poderia dar mais uma dezena de exemplos similares, em que seres humanos "inviaveis" ,"velhos", "obsoletos", perfeitamente vivos biologicamente e com a morte decretada em um futuro não tão distante são sustentados por for seus familiares causando neles sofrimentos profundos.
Por que a rejeição ao defender que estes, para poupar o sofrimento da família, também devem ter uma morte premeditada e adiantada, ao passo que para fetos com má formações genétcias a empatia que sentimos no tocante ao sofrimento dos seus familiares é maior?
E qual a diferença moral entre uma ação e outra, posto que todas essas vitimas fazem parte da raça humana?
Creio que a opinião do Cardeal segue dentro dessa perspectiva.
O assunto é sério. Dependendo do caminho que tomamos estaremos sendo como uma locomotiva trazendo vagões repletos de novos conceitos e precedentes para a viabilização do aborto em outros casos, usando para tanto o mesmo raciocinio lógico que lançamos mãos anteriormente para valida-lo.
Abraço.
HelioGP 49p · 681 weeks ago
Por um lado, sinto-me bastante tocado pelo seu comentário pelo fato do meu pai ter vivido semi-vegetativamente por 7 anos em razão de uma série de AVC's, e em nenhum momento passou pela cabeça da família a ideia da eutanásia, até por ver o esforço do organismo (não mais a "inteligência") em lutar pela vida, até que ele veio a falecer em agosto de 2011.
Por outro lado, eu realmente sinto muita empatia por casais e mulheres que passam por essa situação limítrofe de estupro e gravidez de anencéfalos. Critico o cardeal por emitir opinião sobre o "sofrimento" de quem está nessa situação, exatamente porque é uma situação dolorosamente muito pessoal. Como também defendo o Estado laico tanto quanto possa num terreno pantanoso como é o da relação entre religião, lei e cultura, eu não consigo aceitar que o Estado criminalize alguém que tomou a decisão que lhe parecia a menos pior numa situação dessas.
Eu sei que é impossível resumir a questão à descriminalização do aborto nessas circunstâncias, mas tanto quanto possa eu tento ver por este lado. Como profissional do Direito, também, eu vejo tanta descriminalização não só legal como jurisprudencial que eu tenho ressalvas em que alguém seja punido apenas para se conformar à minha consciência religiosa.Se eu vivesse num país muçulmano regido pela lei islâmica, eu certamente teria o mesmo dilema. Na prática, uma ínfima parcela dos criminosos são levados à Justiça e menos ainda aqueles dignos de penalidade no Brasil são realmente punidos, e mesmo assim, com muita parcimônia.
Por isso, eu tendo a ver a questão mais pelo lado do sentimento de pragmatismo e humanidade (confuso, eu sei, já que o feto também é humano) do que propriamente teologia ou ideologia. Fica difícil queimar as joanas d'arcs dos anencéfalos na fogueira das inquisições enquanto milhões de judas e barrabás continuam soltos perpetrando suas barbaridades.
De qualquer maneira, não creio que haja resposta fácil à questão, por isso não assino embaixo nem da minha própria opinião. Acho que há muita coisa para ser melhorada em todas as áreas da vida em sociedade para reduzir o número de dilemas como esse.
Abraço!
Hélio · 681 weeks ago
Valeu pela contra resposta.
Foi a primeira vez que conversei com alguem sobre esse tema sem que saia "faisca".
Vou publicar essa nossa conversa em meu blog.
Outro dia tocaremos mais neste assunto, à medida que novidades sobre isso forem surgindo.
Deus te abençoe.
HelioGP 49p · 681 weeks ago
Abraço!