quinta-feira, 24 de julho de 2008

Grandes livros - 8

"Primeiras Estórias" (Ed. Nova Fronteira, 15ª ed., 2001) é um ótimo bilhete (somente) de ida à genialidade de Guimarães Rosa. 

Pra começo de conversa, tem uma introdução magnífica de Paulo Rónai, o mais brasileiro dos húngaros (ou vice-versa), responsável, entre outras coisas, pela tradução do clássico "Os Meninos da Rua Paulo", de Ferenc Molnár, que marcou toda uma geração de brasileiros, dentre os quais este que vos escreve. 

A morte de Nemecsek foi o primeiro contato com a dita cuja que muitos - que eram garotos nos anos 70 - tiveram. 

Quanto à obra de Rosa, Rónai diz que "os temas da arte são fragmentos de vida, esses aspectos superficiais da realidade que os nossos sentidos percebem" (p. 28). 

O livro é uma seleção de contos, que apresenta ao leitor a vastidão do mundo de Guimarães Rosa. 

Mesmo aqueles que estão mais familiarizados com a vida no interior, com os grotões do Brasil, terão alguma dificuldade para entender o palavreado (e os neologismos) de Rosa, mas como alguém que se aventura num texto em idioma estrangeiro (já tendo nele alguma desenvoltura), compreenderão o que o autor quer dizer, ainda que por trás de cada palavra de Rosa se esconda outro mundo de significação, que se vale, inclusive, de estrangeirismos. 

Vez por outra, nos deparamos com palavras do francês ou do italiano, por exemplo, devidamente abrasileiradas.

O primeiro conto, "As margens da alegria" narra um Menino observando as diferenças entre a cidade grande e o seu pequeno mundo rural, numa história que vai fazer mais sentido ao ser lida em conjunto com o último conto, "Os cimos", que mostra o Menino preocupado com a doença da Mãe. 

"Famigerado" relata o medo de um doutor quando um bandido conhecido chega à sua casa. "Como um pingo no i, ele me dissolvia" (p. 57), diz o narrador, mas quando chega a hora de saber o que o meliante queria, era apenas uma dúvida sobre a palavra que dá nome ao conto, mas até chegar a este ponto, diz o doutor: "habitei preâmbulos". 

"Sorôco, sua mãe, sua filha", relata uma dessas enormes tragédias familiares que assolam os rincões do país, quando alguém padece de doença mental, sem socorro, sem ajuda. No caso, a mãe e a filha de Sorôco. Como diz o autor, "para o pobre, os lugares são mais longe" (p. 63). 

"A menina de lá" é uma pequena fábula sobre esses anjinhos que alegram os lares, em vez de procissões. Uma menina, Nhinhinha, tem o dom de realizar todos os seus desejos, mas as palavras (sempre as palavras) devem ser usadas com cuidado e parcimônia, para evitar o pior.

"Os irmãos Dagobé" são três jagunços daqueles que assustam o chamado "Brasil profundo", mas um deles é morto, deixando o clima do velório latente de vingança, e o seu assassino se oferece para segurar numa das alças do caixão. O desfecho do conto surpreende o vilarejo e o leitor. 

"A terceira margem do rio" é a estória mais conhecida do livro, sobre o pai que, esgotado, abandona a família e vai viver numa canoa no meio do rio, onde passa a girar (e rodar) toda a história de sua família, mas as águas vão e voltam, e a vida (e a desgraça) se recicla. 

"Pirlimpsiquice" é uma cómedia dos erros à la Guimarães Rosa, sobre um grupo teatral infantil que tenta manter oculto o enredo de uma peça que vão apresentar, criam um roteiro alternativo para ser divulgado, e estórias se entrelaçam e se confundem quando o grande dia chega. 

A família está presente também em "Nenhum, Nenhuma", onde a presença na casa de uma velhinha, Nenha, que era tão idosa que a memória de onde ela vinha já não se alcançava mais na família, faz com que tudo gire em torno dela, a ponto da Moça preferir não se casar com o Moço, preferindo dedicar-se a ela, sob o argumento de que "o passado é que veio a mim, como uma nuvem, vem para ser reconhecido: apenas, não estou sabendo decifrá-lo" (p. 101). 

"Fatalidade" começa dizendo que "a vida de um ser humano, entre outros seres humanos, é impossível. O que vemos, é apenas milagre; salvo melhor raciocínio" (p. 107). Um delegado de polícia recebe um homem cuja mulher está sendo assediada por um conhecido bandido das redondezas. O final se parece com muitas "fatalidades" que irrigam as páginas policiais no Brasil. 

"Seqüência" narra, por outro lado, a fatalidade do destino. Uma vaca fugitiva, que "seguia, certa; por amor, não por acaso" (p. 114), é capaz de provocar o encontro de duas pessoas que nasceram uma para a outra. 

"O Espelho" brinca com a vida, afinal "seríamos não muito mais que as crianças – o espírito do viver não passando de ímpetos espasmódicos, relampejados entre miragens: a esperança e a memória" (p. 126). "Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo" (p. 119). 

"Nada e a nossa condição" conta a história de Tio Man'Antônio, velho fazendeiro que, após ficar viúvo e casar as viúvas, distribui as suas terras entre os trabalhadores e ajudantes que, mesmo assim, continuam a temer (e odiar) o patrão. É, no fundo, um conto sobre a ingratidão e a incerteza das relações humanas, tendo como pano de fundo uma espécie de reforma agrária voluntária. 

"O cavalo que bebia cerveja" mostra um italiano fugitivo da Segunda Guerra, com suas manias e mistérios. "Quem sou eu, quati, para cachorro me latir?" (p. 143). 

"Um moço muito branco" beira a ficção científica, com um personagem um tanto quanto extraterrestre que aparece num vilarejo perdido nos grotões do Brasil, que servem de cenário também para "Luas-de-mel", que relata um desses casamentos em que o noivo rouba a noiva segundo os estranhos costumes locais, com suas relações de autoridade familiar e comunitária sempre tão instáveis e arriscadas. 

A ingenuidade da infância é revisitada na "Partida do audaz navegante", em que, assim como em "A menina de lá", temos em Breijeirinha uma "menina de cá", que filosofa: "antes falar bobagens, que calar besteiras" (p. 169) e "o mar não tem desenho. O vento não deixa" (p. 171). 

"A benfazeja" é, para mim, o conto mais contundente, belíssimo em seu horror. 

Conta a história de três desses personagens sombrios, quase folclóricos, os excluídos e enjeitados que transitam pelos vilarejos brasileiros, carregando e compartilhando as suas desgraças, quais urubus que, ao comerem a carniça, poupam a terra dos seus males. 

A imagem parece gratuita, mas este conto realmente não é de fácil digestão, beirando uma espécie de terror sertanejo, com um final que não deixa nada a desejar quando comparado a outros contos macabros. 

"A luz é para todos; as escuridões é que são apartadas e diversas" (p. 184). Brilhante! E pensar que é justamente neste conto que Guimarães Rosa escreve que "o amor é a vaga, indecisa palavra" (p. 179)... 

Já "Darandina" é a história de um louco que sobe numa palmeira após bater a carteira de alguém. É confundido com um político e, a partir daí, o mundo se transforma e a sociedade gira em torno dele. Até descobrirem que é apenas um sósia, muita gente importante se reunirá debaixo da palmeira. 

"Substância" é uma história de amor marcada pelo polvilho, que, mesmo em meio à miséria, reúne os corações e as almas abandonadas no sertão. 

"Tarantão, meu patrão" fala de um exército de Brancaleone tupiniquim, um Dom Quixote brasileiro, que leva uma caravana para uma festa, onde topa com o seu destino inexorável. 

Por fim, "Os cimos" completa, a meu ver, o primeiro conto ("As margens da alegria"), mostrando um menino estupefato com a vida, a morte, e o mundo, enfim, o próprio Guimarães Rosa e, porque não dizer, também o seu (agora maravilhado) leitor.

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