terça-feira, 5 de agosto de 2008

Leituras cristãs - 3


Philip Yancey é um autor consagrado no meio cristão, embora tenha uma maneira um tanto quanto diferente de escrever. 
A literatura cristã é dividida, basicamente, em quatro grandes estilos
O primeiro é o dos clássicos, aqueles livros que conseguem tal repercussão, que entram para uma categoria especial que influencia gerações de cristãos. Entre os principais autores, além dos Pais da Igreja (Agostinho, Irineu, Atanásio, etc.), para citar alguns mais próximos da nossa era, estão G. K. Chesterton ("Ortodoxia") e C. S. Lewis ("Mero Cristianismo"). 
O segundo é composto pelos livros de teologia propriamente ditos, em que são discutidos e sistematizados os grandes dogmas do cristianismo, com algumas adaptações conforme o grupo ao qual o autor se filia. 
O terceiro é o que eu chamaria de denominacional, em que alguns aspectos muito particulares de determinadas igrejas têm uma importância tão decisiva na sua pregação, que toda uma literatura muito específica é construída para justificá-los. 
O quarto é uma versão supostamente cristã do estilo de auto-ajuda que vende feito água nas livrarias. 
São os tais "Doze Passos para...", "Sete Maneiras de...", enfim, um monte de títulos cabalísticos para, em tese, ajudar os cristãos a entender ou superar determinados problemas que estão na moda entre os evangélicos, ou que são realmente um entrave para o seu crescimento emocional. 
Felizmente, existem livros sérios (e bons) nesta área, entre os quais destaco dois livros de David A. Seamands, "Cura para os Traumas Emocionais" e "O Poder Curador da Graça".


Yancey flerta com este quarto estilo, embora não proponha nenhuma espécie de "tratamento" para neuroses evangélicas ou x meios para alcançar a prosperidade financeira. 
Os seus livros estão muito próximos de se tornarem clássicos também, embora ele não defenda nenhuma tese ou dogma em especial. 
A característica marcante dos seus livros é a sinceridade (e a honestidade) com que ele se expõe, revelando os seus dilemas mais íntimos e debatendo alguns problemas comuns a todos os cristãos. 
Apresenta, ainda, as visões de vários outros autores cristãos de todas as vertentes, cruzando-as com as opiniões de outros pensadores, inclusive ateus, para tentar formar um quadro do que realmente significa ser cristão no mundo de hoje. 
Neste aspecto, "O Deus (In)visível" (publicado no Brasil pela Ed. Vida) é, a meu ver, o melhor dos seus livros, em que ele sintetiza, dentro do possível, o que lhe passa pela cabeça quando o tema é o relacionamento humano com um Deus, que, muitas vezes, parece estar ausente ou alheio ao que acontece a nós e a este mundo. 
É uma leitura agradável que eu recomendo mesmo para quem é ateu ou não é cristão. 
Ajuda a entender quem nós somos, com o que e com quem nos identificamos como cristãos e como seres humanos, e o que buscamos para nossas vidas e para nossas comunidades. 
Alguns trechos do livro merecem ser destacados, e passo a transcrevê-los a seguir:

“Leve-me a sério!” Trate-me como adulto, e não como criança!”, é a reclamação de todo adolescente. Deus respeita esse pedido. Torna-me um parceiro da obra que realiza em mim e por meio de mim. Dá-me liberdade com total conhecimento de que abusarei dela. Abdica do poder até me pedir que não “entristeça” nem “apague” seu Espírito. Deus faz tudo isso porque quer como parceiro uma pessoa madura, e não um adolescente apaixonado. (p. 174)

Quem diz que crê em Deus e, no entanto, não o ama nem o teme na verdade não crê nele, mas naqueles que ensinaram que Deus existe. Quem acredita que crê em Deus, mas não tem nenhuma ira no coração, nenhuma angústia no espírito, nenhuma incerteza, nenhuma dúvida, nenhum indício de desespero, mesmo quando consolado, crê apenas na idéia de Deus e não em Deus.” (citando Miguel de Unamuno) (p. 175)

Quando recebemos a graça de Deus e a vida espiritual se inicia, a tensão também aumenta. Um santo perfeito não experimentaria nenhuma tensão, e um pecador que não fosse perturbado pela culpa também não a experimentaria. O restante de nós deve viver em algum ponto entre os dois extremos, o que complica a vida mais que simplifica. (p. 179)

Quando perguntaram a Dwight L. Moody se era cheio do Espírito, ele respondeu: “Sim. Mas tenho um vazamento”.
[...]
Os escolhidos de Deus reagiam com a mesma paixão. Moisés discutiu com Deus tão calorosamente que diversas vezes persuadiu Deus a mudar de idéia. Jacó lutou a noite inteira e usou de subterfúgios para conseguir a bênção de Deus. Jó atacou a Deus com uma fúria sarcástica. Davi infringiu pelo menos metade dos Dez Mandamentos. Mas eles nunca desistiram totalmente de Deus, e Deus nunca desistiu deles. Deus pode aplacar a ira, a culpa e até mesmo a desobediência obstinada. Contudo, existe algo que impede o relacionamento: a indiferença. “Voltaram as costas para mim e não o rosto”, disse Deus a Jeremias (32:33), em uma acusação condenatória de Israel.

Com os gigantes espirituais da Bíblia, aprendi uma importante lição sobre o relacionamento com um Deus invisível: faça o que fizer, não ignore a Deus. Convide-o a participar de cada aspecto da vida. Para alguns cristãos, períodos de crise como o de Jó são o grande perigo. Como ter fé em um Deus que parece insensível e até mesmo hostil? Outros, e eu me coloco entre eles, enfrentam um perigo mais sutil. Um acúmulo de distrações, um computador que funciona mal, contas a pagar, uma viagem que tenho de fazer, o casamento de um amigo, a correria normal da vida gradualmente tiram Deus do centro de minha existência. Às vezes, conheço pessoas, alimento-me, trabalho, tomo decisões, faço tudo sem dedicar a Deus um simples pensamento. E esse vazio é muito mais sério do que aquele que foi experimentado por Jó, pois em nenhum momento Jó parou de pensar em Deus.

Em um estudo bíblico do qual participei, um amigo fez o seguinte comentário sobre a vida do rei Davi: “Se Saul prova que “a obediência é melhor do que o sacrifício”, então Davi convence que o relacionamento é ainda melhor que a obediência”. Embora alguém possa achar essa declaração discutível, a história de Davi, no mínimo, demonstra que um relacionamento com Deus pode sobreviver aos mais estarrecedores atos de desobediência. Volto às páginas da história de Davi porque não encontro um exemplo melhor de um relacionamento apaixonado com Deus do que aquele que tinha o rei chamado Davi. Até mesmo seu nome significava, o que vem a propósito, “bem-amado”
(p. 181).

Uma vez, ouvi um sermão memorável sobre Ananias e Safira, história assustadora de Atos 5 que muitos pregadores cautelosamente evitam. Trata-se de um casal que, depois de mentir sobre sua oferta à igreja, cai morto. A passagem, segundo John Claypool, deixa claro que bastou ao casal fazer uma coisa errada para atrair o castigo fatal. Ter guardado o dinheiro não foi o problema: Pedro assegurou-lhes que tinham esse direito. O casal errou porque fingiu ser piedoso. Deus pode perdoar qualquer pecado e pode lidar com qualquer condição espiritual. Nós caímos e levantamos, padrão que a Bíblia exemplificou amplamente, tanto em Davi como em Pedro. Deus exige sinceridade. Não nos atrevamos a fingir diante de Deus, pois assim fechamos as mãos para a graça. (p. 186)


Cada pessoa na Terra vive um roteiro único de dificuldades: solidão quando o casamento sempre foi o alvo, incapacidade física, pobreza, maus-tratos na infância, preconceito racial, enfermidade crônica, família desfeita, vício, divórcio. Se enxergar Deus como Zeus, atirando raios sobre os desventurados seres humanos aqui embaixo, então naturalmente dirigirei minha ira e frustração contra ele, a causa imediata de minhas dificuldades. Se, no entanto, entender que Deus trabalha por trás, sob a superfície, chamando-nos em cada fraqueza e limitação, abro a possibilidade da redenção exatamente para as coisas das quais mais me ressinto na vida.
“O bem e o mal, no sentido moral, não residem nas coisas, mas sempre nas pessoas”, escreveu Paul Tournier. “As coisas e os acontecimentos, felizes ou infelizes, são simplesmente o que são, moralmente neutros. O que importa é a maneira com que reagimos a eles. Raramente somos senhores dos fatos, mas (junto com os que nos ajudam) somos responsáveis por nossas reações. [...] Os acontecimentos nos causam sofrimento ou alegria, mas o crescimento é determinado pela reação de cada pessoa a ambos, por sua atitude interior”. Sendo médico, o dr. Tournier combate o sofrimento e se esforça por aliviar a dor de seus pacientes. Contudo, como conselheiro, faz uso dele de modo sábio, conduzindo seus pacientes a uma reação que lhes permita crescer com a aflição.
Tournier, diga-se de passagem, escreveu o livro “Creative suffering” (Sofrimento criativo) para explorar um fenômeno que sempre o perturbou: as pessoas de maior sucesso geralmente vêm de famílias complicadas ou infelizes. Um colega, ao pesquisar os líderes de maior influência na história do mundo, descobriu que quase todos – a lista de trezentos incluía Alexandre, o Grande, Júlio César, Luís XIV, George Washington, Napoleão a rainha Vitória – tinham algo em comum: eram órfãos. Tournier ficou desconcertado porque, embora vivesse dando conferências sobre a importância de os pais cooperarem para produzir um ambiente familiar criativo, todos esses líderes emergiram de um estado de privação emocional. Tournier, que era órfão, começou a olhar para as dificuldades como algo que não devia ser simplesmente eliminado, mas aproveitado para o bem redentor.
(pp. 272/273)

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