terça-feira, 12 de agosto de 2008

Diário de um lunático - 9


05/05/2007

Oi, gente!

Sou eu, o João de novo, invadindo a praia do meu irmão Pedro, que anda meio ocupado, e nem reparou que fui eu quem escreveu o último diário lunático dele. Com certeza, também não vai reparar que eu continuo escrevendo aqui. Enquanto isso, vocês vão ter que me engolir. É que eu queria contar o que aconteceu domingo passado, quando um amigo meu, o Juca, me convidou para ir à igreja que ele freqüenta, porque era uma ocasião especial, e eles iam receber uns profetas por lá, segundo as palavras que ele próprio disse. Já estranhei de início, porque uma igreja cristã deveria ter profetas sempre, de segunda a segunda, dentro e fora da igreja, e não só em ocasiões especiais. Mal sabia eu que o espanto continuaria quando chegasse lá.

Pra começo de conversa, eu já estranhei que tivesse uma bandeira de Israel por lá, e que uma moça dançasse sem parar com ela não só nos momentos de louvor, mas em qualquer hora que lhe desse na telha. Nada contra Israel, diga-se de passagem, mas acho que cada coisa deve ter seu lugar. Primeiro, estávamos numa igreja, não numa sinagoga. Aliás, nem sei se as sinagogas têm bandeiras de Israel em lugar de destaque nas suas reuniões públicas, ou se elas são usadas em algum ritual litúrgico. Independentemente disso, qualquer bandeira é um símbolo político, e como tal deve ser considerada. Pelo menos era o que eu imaginava, mas lá eu fiquei sabendo que, para ser cristão hoje em dia, é preciso ter um alinhamento automático com os objetivos políticos do Estado de Israel. Que as sinagogas tenham este alinhamento, é perfeitamente compreensível, mas uma igreja cristã deveria ser um lugar de acolhimento de todos, sem qualquer distinção de etnia, país, sexo, religião ou condição social. A coisa ficou ainda mais esquisita quando, assim, do nada, eu ouvi um som estranho, que, ainda meio atordoado, percebi que vinha de uns chifres do tipo de um berrante, daqueles que os vaqueiros usam para tocar a boiada, e meu amigo, diante da minha cara assustada, me explicou que aquele instrumento se chamava shofar, muito comum entre os profetas do Velho Testamento, e que aquilo significava que a aliança de Deus com o povo havia sido quebrada e era necessário restaurá-la mediante o que ele chamou de "atos (e sons) proféticos" como aquele. Só então meu amigo disse que ele "achava" que tinha antepassados judeus, e era importante resgatar a história da família. Achei interessante isso, porque o Brasil é um país onde houve uma miscigenação tão grande que é difícil alguém não ter um antepassado judeu (ou muçulmano), principalmente aqueles que ficaram na Península Ibérica como cristãos-novos (os sobrenomes Figueira, Oliveira, Parreira, etc., estão aí para que não me desmintam). Se bem que eu acho que o que o povo da igreja dele não gosta mesmo é de cristãos velhos... Ainda bem que este meu amigo (até onde sei) não crê em terapia de vidas passadas, senão teríamos mais uma reencarnação de algum faraó na praça.

Aí eu entrei em parafuso, né.... uai, por que é que Jesus veio, então, se bastava tocar um shofar pra chamar o povo ao arrependimento? Por que é que a Bíblia diz que Jesus é o mediador de uma nova aliança, então? "Não" - disse meu amigo -, "precisamos de profetas". Parece que a crucificação dele já não é mais suficiente para os cristãos atuais. É preciso voltar mais atrás, resgatar antigas práticas judaicas para agradar a Deus. E tudo se resume numa palavra que eu ouvi umas mil vezes naquela noite, "unção". Ora, eu achava que a unção de Deus já havia sido dada a todos os cristãos, através de Jesus. Pelo menos, é o que João diz em sua primeira carta (2:20,27 – não agüentei, cheguei em casa e fui conferir). Aparentemente, não era isso o que eles pensavam, pois havia unção para tudo, e de tudo quanto é nome. Teve até um que disse que havia uma "unção diferente" para aquele culto. Será que ele não queria uma unção igual a que Jesus deu aos primeiros cristãos? Outro insistia em dizer que éramos produtos dos sonhos de Deus, como se o Todo-Poderoso tirasse um cochilo depois do almoço todo santo dia. Na hora dos dízimos e das ofertas, disseram que tínhamos que sacrificar alguma coisa, senão Deus não nos ouviria. Será que eles queriam crucificar Jesus de novo? Fiquei na dúvida... Outra coisa que eles atacavam muito era a religiosidade (dos outros). Ora, eu nunca vi tanta religiosidade na minha vida como naquela noite, só que com outros nomes. Pelo menos, eles inauguraram a hiper-religiosidade anti-religiosidade. Novidade pra mim.

Confesso que não gostei do que vi e ouvi. No final, ficou uma sensação de que esses crentes de hoje são uns eternos insatisfeitos. A graça de Deus não satisfaz mais, nem Deus fez uma nova aliança com a humanidade. Viver uma vida cristã simples, tranqüila e piedosa, ninguém mais quer; é preciso novidades em profusão (senão eles "abandonam" a igreja e a fé). No meu tempo, a graça de Deus bastava; agora, parece que não basta mais. Não satisfaz. Isto me fez lembrar daquela musiquinha que a gente cantava na Escola Dominical de uma igreja lá perto de casa, quando eu era criança: "Satisfação sem fim". Como é que era mesmo? Lembrei! "Satisfação é ter a Cristo, não há melhor prazer já visto"... "Sou de Jesus e agora sinto satisfação sem fim".... acho que era assim. Só muito tempo depois eu percebi que aquele corinho era uma resposta ao "I can get no satisfaction" ("Eu não consigo ter satisfação"), do Rolling Stones. Talvez, se Mick Jagger cantasse hoje na igreja do meu amigo, o povão ia se identificar. E iam dançar com a bandeira da Inglaterra... que pelo menos tem uma cruz, só pra contextualizar...

Já me decidi, não volto mais lá.

2 comentários:

  1. Olá Estimado Irmão Hélio!
    Muito agradecido pelas amáveis palavras. O seu texto está bem fundamentado e com umam pitada de humor, que é muito bom. Coloquei uma nota de rodapé no meu Post, direcionando para o seu Post. Fique na Paz de Deus!

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  2. obrigado, Rev. Eugênio!

    graça e paz, sempre!

    ResponderExcluir

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