terça-feira, 26 de agosto de 2008

Eclesiastes - capítulo 10

Leitura anterior: Eclesiastes - capítulo 9

Eclesiastes está chegando ao final, e o discurso do Pregador se encaminha para uma conclusão. Existe algum sentido na vida, afinal? Se existe, qual é? 

Até o capítulo 9, o Pregador veio desconstruindo uma série de certezas que pensamos ter sobre a vida. 

Ironicamente, a única certeza que temos é a morte. O senso comum nos mostra que as mesmas coisas acontecem para justos e injustos, e que crentes e descrentes se equiparam nas circunstâncias cotidianas da vida, sejam elas tristes ou felizes. 

O sol nasce para todos, indistintamente. O capítulo 10 marca uma transição, em que o Pregador compara a sabedoria e a estultícia. "Estultícia" é um sinônimo mais formal de "tolice". 

No capítulo 2, ele já tentara se embriagar para que a estultícia se apoderasse dele (v. 3) e deixara claro que o que acontece ao sábio, também acontece ao estulto, ao tolo (vv. 15-16), mas agora é hora de marcar posição, e, para tanto, ele faz uma comparação muito simples, dizendo que a estultícia na vida de quem busca a sabedoria é como a mosca morta que estraga o perfume. 

A exemplo do que nos aconselham Jesus (Lucas 21:36), Paulo (1 Coríntios 16:13), e Pedro (1 Pedro 4:7 e 5:8), devemos estar sempre vigilantes não só quanto ao mal em si, mas também quanto às tolices, as bobagens, que somos tentados a fazer, aceitar ou vivenciar todo dia. 

Aquelas coisas pequenas, que aparentemente não têm nenhuma importância, podem estragar não só o nosso dia, mas às vezes uma vida toda. As versões católicas são mais felizes na tradução deste v. 1 (que é uma continuação de 9:18) para o português:

"Uma mosca morta estraga um perfume, uma migalha de insensatez conta mais que muita sabedoria." (Bíblia do Peregrino)

"Moscas mortas infectam e fazem fermentar o ungüento do perfumista; uma pequena tolice pesa mais que a sabedoria, que a glória." (Tradução Ecumênica)

Dietrich Bonhoeffer, pastor (e grande teólogo) alemão, que foi preso por conspirar contra Hitler, e depois enforcado a mando deste, alguns dias antes da guerra acabar, chamou a atenção para a estultícia, a tolice, que aos poucos foi se impregnando num povo tido como sábio, que é o povo alemão, a ponto de resultar na gigantesca tragédia que foi a Segunda Guerra Mundial, onde o mal parece ter chegado ao apogeu na humanidade. 

No início do seu cativeiro, em 1943, ele escreveu um texto intitulado "Sobre a tolice" (para acessar o texto completo, clique aqui), em que diz o seguinte:
A tolice é um inimigo mais perigoso do bem do que a maldade. Contra o mal se pode protestar, é possível desmascará-lo, pode-se, em caso de necessidade, impedi-lo com o uso da violência. O mal sempre já traz em si o germe da auto-desagregação, pelo fato de deixar ao menos um mal-estar na pessoa. Contra a tolice não temos defesa. Nada se consegue com protestos nem com violência; argumentos não adiantam; a fatos que contradizem o próprio preconceito não se precisa dar crédito – em tais casos o tolo até mesmo se torna crítico – e se esses fatos são incontornáveis, simplesmente se pode pô-los de lado como casos isolados sem significado. iferentemente do malvado, o tolo está completamente satisfeito consigo mesmo; ele até mesmo se torna perigoso, pois facilmente se sente provocado e passa à agressão. Por isso, recomenda-se mais cautela em relação ao tolo do que ao mau. Nunca mais tentaremos persuadir o tolo com argumentos; é inútil e perigoso.

(BONHOEFFER, Dietrich. Resistência e Submissão. Ed. Sinodal, 2003, p. 33)

Hoje, olhando pelo retrovisor da História, ficamos com a impressão de que Bonhoeffer lutou contra um mal muito visível, um monstro com enormes garras, chamado nazismo, e nos esquecemos facilmente de que uma série de pequenas permissões à estultícia de um "salvador da pátria" personificado em Hitler, fez com que uma imensa tragédia se abatesse sobre toda a humanidade, e não só a Alemanha. 

E tudo começou de maneira bem simples, contaminando e corrompendo a civilização alemã a ponto de levá-la à barbárie da guerra e do holocausto. 

Talvez seja o caso de procurarmos identificar, atualmente, quais são as pequenas idiotices que toleramos na Igreja, imaginando-as inofensivas, quando têm não o poder de destruí-la, mas a possibilidade concreta de solapar muitas das bases em que nos firmamos ao longo dos séculos.

Desta maneira, o capítulo 10 de Eclesiastes é um libelo contra a estultícia, a tolice, a idiotice, que, por pequenas que sejam, ameaçam o caminho da sabedoria de qualquer um. 

Os três primeiros versículos anunciam a tônica de todo o capítulo. A questão do lado direito (para onde se inclina o sábio) e do lado esquerdo (para onde vai o tolo), longe de ser um preconceito contra os canhotos, refere-se a uma simbologia bíblica que associa a bondade divina ao lado direito e a punição ao lado esquerdo, como no dia do juízo final previsto por Jesus em Mateus 25:32-46. 

Para o Pregador, o tolo pode até tentar parecer sábio (como geralmente acontece), mas chega um determinado momento em que toda a sua estultícia é exposta publicamente, conforme diz o v. 3. 

Controlá-la, dominá-la, escondê-la, exige um esforço gigantesco que geralmente não resiste às pressões da vida. 

Salomão ainda dá um conselho prático para aqueles que se deparam com alguém em posição superior (v. 4), dizendo que a serenidade aplaca a ira do governador. 

Isto não o impede de ver que, como também costuma acontecer, muitas vezes o tolo está em posição de honra, enquanto o rico (que pode ser entendido tanto em sentido literal como figurado) está colocado em posições mais baixas (vv. 5-7). 

O v. 8, que diz que "quem abre uma cova nela cairá, e quem rompe um muro, mordê-lo-á uma cobra", pode ser interpretado no mesmo sentido, por exemplo, de Provérbios 26:27 ("O que faz uma cova cairá nela; e a pedra voltará sobre aquele que a revolve"), ou seja, quem faz o mal, o mal receberá, que podemos comparar ao que Paulo escreveu em Gálatas 6:8 - "Porque quem semeia na sua carne, da carne ceifará a corrupção; mas quem semeia no Espírito, do Espírito ceifará a vida eterna". 

Os versos seguintes seguem a mesma linha. Quem arranca pedras, provavelmente para uma briga (v. 9), pode ser atingido por elas, e é possível ligar esta idéia aos "tempos" de Eclesiastes 3:5, "tempo de espalhar pedras, e tempo de ajuntar pedras; tempo de abraçar, e tempo de abster-se de abraçar". 

O v. 10 chama a atenção para as pessoas que se fiam no seu conhecimento acumulado, que nem sempre é sabedoria. 

Assim como o ferro embotado, que não tem o corte afiado, é a sabedoria daquele que acumulou conhecimento mas não se preocupou em colocá-lo em prática, nem em revisitá-lo constantemente e desenvolvê-lo. 

O v. 11 revela que, como toda cidade importante daquela época, em Jerusalém também havia "encantadores" de serpente, que não eram propriamente bruxos ou feiticeiros, mas artistas populares que ganhavam a vida divertindo o povo nas ruas com suas técnicas de domar as serpentes. 

De nada adiantaria exibir esta habilidade e ser mordido por elas. Por analogia, de nada adianta a sabedoria se ela não serve para instruir, prevenir, planejar, construir, e, principalmente, se defender dos perigos da vida. 

É interessante constatar que, alguns séculos depois, diante da destruição iminente de Jerusalém (e do reino de Judá) pela Babilônia, Jeremias profetizava da parte de Deus: "Porque eis que envio para entre vós serpentes, áspides contra as quais não há encantamento, e vos morderão, diz o SENHOR" (Jeremias 8:17).

A partir do v. 12, o Pregador volta a criticar a estultícia com mais veemência. "Nas palavras do sábio, há favor", ou seja, há graça, pois o sábio, numa visão neotestamentária, pode ser comparado ao homem que segue o conselho de Paulo: "Não saia da vossa boca nenhuma palavra torpe, mas só a que seja boa para a necessária edificação, a fim de que ministre graça aos que a ouvem" (Efésios 4:29). 

Salomão valoriza as palavras do sábio e reprova as do tolo, chamando-as de "loucura perversa" (v. 13). Conforme a experiência da vida nos ensina, geralmente o tolo "multiplica as palavras", ou seja, age como os gentios quando oravam, criticados por Jesus, que disse que eles pensavam que "pelo seu muito falar, serão ouvidos" (Mateus 6:7). 

Não só na oração, mas na vida, em geral, as pessoas tolas, que querem parecer sábias, se metem a falar de tudo freneticamente, na esperança de que suas bobagens não sejam percebidas no meio da sua verborragia, e possam passar uma imagem de sabedoria que não têm. 

Ao dizer que o tolo "nem sabe ir à cidade" (v. 15), além de mostrar o excesso de trabalho que a falta de sabedoria acarreta ao homem do campo, mostra que o tolo não procura se instruir. 

Naquela época, não havia escolas, e as cidades eram os locais onde se encontravam os sábios, geralmente discutindo em praça pública ou no templo. 

O tolo sequer se interessava em dirigir-se às cidades, pois a sabedoria estava longe dele em todos os sentidos da palavra "longe". 

O Pregador critica ainda a terra cujo rei é uma criança (v. 16) e cujos príncipes festejam já de manhã (ou ainda pela manhã), o que revelava a ociosidade do seu povo inconsequente. 

Já feliz era a terra em que seu rei era filho de nobres, ou seja, tinha tido boa educação, e os seus príncipes faziam tudo no seu devido tempo, sem se dedicar a bebedeiras (v. 17). 

A preguiça é criticada (v. 18), num contraste com o que o Pregador vinha dizendo até então, ou seja, que tudo era vaidade, e que de nada adiantava trabalhar. 

Obviamente, isto deve ser entendido dentro do equilíbrio que ele passa a propor, ou seja, o trabalho é bom, a preguiça deve ser evitada, mas tudo deve ser feito com equilíbrio e temperança, reservando tempo, inclusive, para não pensar em trabalho. 

O dinheiro pode atender a tudo na vida (v. 19), mas este versículo deve ser lido em conjunto com Eclesiastes 7:12, ou seja, "a sabedoria protege como protege o dinheiro; mas o proveito da sabedoria é que ela dá vida ao seu possuidor". 

Por fim, o Pregador pede cuidado com as palavras. Naquela época, as casas das cidades e das vilas eram pegadas umas às outras, e geralmente havia pátios internos ou praças externas interligando-as, então, tudo o que alguém falasse dentro do seu quarto podia muito bem ser ouvido pela vizinhança. 

Logo, era aconselhável que cada um guardasse os seus pensamentos para si, principalmente aqueles contrários aos ricos e poderosos (v. 20). 

A meu ver, a conclusão do capítulo 10, em relação ao sábio, pode muito bem ser relacionada a Filipenses 4:8 – "Quanto ao mais, irmãos, tudo o que é verdadeiro, tudo o que é honesto, tudo o que é justo, tudo o que é puro, tudo o que é amável, tudo o que é de boa fama, se há alguma virtude, e se há algum louvor, nisso pensai".



Leitura seguinte: Eclesiastes - capítulo 11


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