domingo, 31 de maio de 2009

O mercado da fé - por Frei Betto


Transcrevo abaixo artigo do católico Frei Betto, publicado originalmente no site da Alainet (América Latina en Movimiento - Agencia Latinoamericana de Información), em que ele faz uma análise interessante do crescimento evangélico no Brasil, que, apesar do título, é muito mais crítica em relação à própria Igreja Católica:


MERCADO DA FÉ



Como os supermercados, as Igrejas disputam clientela. A diferença é que eles oferecem produtos mais baratos e, elas, prometem alívio ao sofrimento, paz espiritual, prosperidade e salvação.


Por enquanto, não há confronto nessa competição. Há, sim, preconceitos explícitos em relação a outras tradições religiosas, em especial às de raízes africanas, como o candomblé e a macumba, e ao espiritismo.


Se não cuidarmos agora, essa demonização de expressões religiosas distintas da nossa pode resultar, no futuro, em atitudes fundamentalistas, como a “síndrome de cruzada”, a convicção de que, em nome de Deus, o outro precisa ser desmoralizado e destruído.


Quem mais se sente incomodada com a nova geografia da fé é a Igreja Católica. Quem foi rainha nunca perde a majestade... Nos últimos anos, o número de católicos no Brasil decresceu 20% (IBGE, 2003). Hoje, somos 73.8% da população. E nada indica que haveremos de recuperar terreno em futuro próximo.


Paquiderme numa avenida de trânsito acelerado, a Igreja Católica não consegue se modernizar. Sua estrutura piramidal faz com que tudo gire em torno das figuras de bispos e padres. O resto são coadjuvantes. Aos leigos não é dada formação, exceto a do catecismo infantil. Compare-se o catecismo católico à escola dominical das Igrejas protestantes históricas e se verá a diferença de qualidade.


Crianças e jovens católicos têm, em geral, quase nenhuma formação bíblica e teológica. Por isso, não raro encontramos adultos que mantêm uma concepção infantil da fé. Seus vínculos com Deus se estreitam mais pela culpa que pela relação amorosa.


Considere-se a estrutura predominante na Igreja Católica: a paróquia. Encontrar um padre disponível às três da tarde é quase um milagre. No entanto, há igrejas evangélicas onde pastores e obreiros fazem plantão toda a madrugada.


Não insinuo assoberbar ainda mais os padres. A questão é outra: por que a Igreja Católica tem tão poucos pastores? Todos sabemos a razão: ao contrário das demais Igrejas, ela exige de seus pastores virtudes heróicas, como o celibato. E exclui as mulheres do acesso ao sacerdócio. Tal clericalismo trava a irradiação evangelizadora.


O argumento de que assim deve continuar porque o Evangelho o exige não se sustenta à luz do próprio texto bíblico. O principal apóstolo de Jesus, Pedro, era casado (Marcos 1, 29-31); e a primeira apóstola era uma mulher, a samaritana (João 4, 28-29).


Enquanto não se puser um ponto final à desconstrução do Concílio Vaticano II, realizado para renovar a Igreja Católica, os leigos continuarão como fiéis de segunda classe. Muitos não têm vocação ao celibato, mas sim ao sacerdócio, como acontece nas Igrejas anglicana e luterana.


Ainda que Roma insista em fortalecer o clericalismo e o celibato (malgrado os escândalos frequentes), quem conhece uma paróquia efervescente? Elas existem, mas, infelizmente, são raras. Em geral, os templos católicos ficam fechados de segunda à sexta (por que não aproveitar o espaço para cursos ou atividades comunitárias?); as missas são desinteressantes; os sermões, vazios de conteúdo. Onde os cursos bíblicos, os grupos de jovens, a formação de leigos adultos, o exercício de meditação, os trabalhos voluntários?


Em que paróquia de bairro de classe média os pobres se sentem em casa? Não é o caso das Igrejas evangélicas, basta entrar numa delas, mesmo em bairros nobres, para constatar quanta gente simples ali se encontra.


Aliás, as Igrejas evangélicas sabem lidar com os meios de comunicação, inclusive a TV aberta. Pode-se discutir o conteúdo de sua programação e os métodos de atrair fiel. Mas sabem falar uma linguagem que o povo entende e, por isso, alcançam tanta audiência.


A Igreja Católica tenta correr atrás com as suas showmissas, os padres aeróbicos ou cantores, os movimentos espiritualistas importados do contexto europeu. É a espetacularização do sagrado; fala-se aos sentimentos, à emoção, e não à razão. É a semente em terreno pedregoso (Mateus 13, 20-21).


Não quero correr o risco de ser duro com a minha própria Igreja. Não é verdade que ela não tenha encontrado novos caminhos. Encontrou-os, como as Comunidades Eclesiais de Base. Infelizmente não são suficientemente valorizadas por ameaçarem o clericalismo.


Aliás, as CEBs realizarão seu 12º encontro intereclesial de 21 a 25 de julho deste ano, em Porto Velho (RO). O tema, “Ecologia e Missão”; o lema, “Do ventre da Terra, o grito que vem da Amazônia”. São esperados mais de 3 mil representantes de CEBs de todo o Brasil.


Bom seria ver o papa Bento XVI participar desse evento profundamente pentecostal.

quarta-feira, 27 de maio de 2009

Decadência global

O Jornal Nacional dedicou ontem um amplo espaço ao trabalho social dos evangélicos no Brasil, naquilo que eles chamam de uma "série de reportagens", que deve ter continuação durante a semana. O que chama a atenção é que a Globo, por muitas décadas, praticamente ignorou as igrejas evangélicas no Brasil, desde o tempo em que elas eram conhecidas apenas como "protestantes". Quem assistiu as novelas da Globo nas últimas décadas, e não conhecia a realidade brasileira, poderia ter imaginado que não havia "protestantes" ou "evangélicos" no Brasil, já que nas poucas vezes em que eles eram retratados nas produções globais, sempre havia um viés depreciativo, como se fossem um bando de tolos tocando bumbo na praça, como aconteceu na primeira versão da novela "Selva de Pedra", ainda em preto-e-branco, no começo dos anos 70. Entretanto, para a Globo também não havia negros ou orientais no Brasil, e quando havia, eram representados como escravos ou feirantes. Até hoje, um estrangeiro que assista uma novela pela Globo Internacional, pode imaginar que somos todos escandinavos.

Talvez o crescimento evangélico no Brasil (muito mais quantitativo do que qualitativo, deve ser registrado) tenha assustado a Globo, em declínio no Ibope, enquanto a Record (da Universal) tenta alcançá-la. Desde as brigas com Edir Macedo, na década de 90, em que a Globo até tentou, mas não conseguiu separar o joio do trigo no meio evangélico, inclusive com a minissérie "Decadência" (1996), em que Edson Celulari interpretava um pastor profano e corrupto, que aprofundou a ruptura com muita gente séria que se viu ridicularizada nesse episódio. Provavelmente, o alerta vermelho tenha despertado a atenção dos iluminados diretores da Globo, que sempre se consideraram inatingíveis. Afinal, indispor-se com uma parcela considerável da população brasileira parece não ser um bom negócio. Pelo menos, a iniciativa serve para revelar o trabalho sério que muitas igrejas boas fazem em prol da sociedade brasileira.

sábado, 16 de maio de 2009

Os estados do direito

"Estado de Direito" é um daqueles chavões, daquelas palavras-coringa, que são (ab)usados aleatória e indiscriminadamente por quem quer se esconder atrás de algo que tem aparência de verdade, apenas para justificar seus atos que nem sempre a acompanham. 

Assim, o respeito às determinações judiciais é tido como um respeito ao Estado de Direito, mas ninguém explica qual é a garantia que o cidadão tem contra o mau juiz ou o mau tribunal para pelo menos tentar revisar a sua má decisão. 

O Estado de Direito é o estado do direito de uns, mas não de outros? Afinal, temos ou não o direito de resistência? Pode-se resistir ao Estado de Direito exclusivo de alguns? 

Curiosamente, este é um dos temas mais polêmicos do direito, e dos menos abordados, talvez pelo medo das suas consequências.

Felizmente, a internet nos proporciona boas surpresas, com ótimos textos opinativos, como o do Blog do Braga da Rocha, que tomo a liberdade de recomendar e transcrever abaixo:


TSE, Jackson Lago e a oportunidade de crise institucional para uma necessária 'refundação' da República


Do noticiário político do fim de semana destaca-se a cassação do mandato do governador do Maranhão, Jackson Lago, pelo Tribunal Superior Eleitoral - TSE, seguida da decisão tomada por Lago — da qual, lamentavelmente, logo recuou — de resistir à decisão judicial com um expressivo gesto político: a recusa em deixar o Palácio dos Leões, sede do governo daquele Estado.

Tenho repetido a meus alunos e colegas do meio jurídico que o primeiro e inarredável compromisso de todo jurista e de todo cidadão deve ser com o chamado estado de direito, entendida esta expressão em sua acepção mais elementar, como aquele ambiente em que o ordenamento se põe e se aplica segundo regras e mecanismos institucionais preestabelecidos.


No caso Jackson Lago, todavia, devo confessar que me sinto algo frustrado e decepcionado pela decisão do governador de abandonar o palácio, em sinal de acatamento, ainda que a contragosto, de mais uma espúria decisão do TSE.


Sem discutir o mérito da causa, que desconheço em profundidade — mas que a todos os olhos isentos parece representar um coup d'état, revestido de aparência institucional, contra um governador legitimamente eleito —, deve-se lembrar que o TSE não passa de mais um entre os desmoralizados órgãos superiores do Poder Judiciário brasileiro, fonte de incontáveis decisões estapafúrdias movidas à corrupção do desregrado lobby, como aquela, no ano de 2004, relativa ao então governador Joaquim Roriz, do Distrito Federal, em ação proposta pelo Ministério Público com vistas à cassação de seu mandato.


Na ocasião, apenas para avivar a memória do leitor, deixou o TSE de cassar o ilegítimo mandato obtido por aquele execrável político brasiliense, conquanto figurassem nos autos provas inequívocas de uso de recursos públicos em prol de sua reeleição — entre as quais fotografias de veículos alugados pelo governo distrital, a exibir e transportar material de campanha do candidato —, provas essas que a relatora do processo, ministra Ellen Gracie, acompanhada, entre outros, por Carlos Mário Veloso e Peçanha Martins, preferiram não considerar "suficientemente robustas" para demonstrar o ilícito eleitoral que autorizaria a cassação. Registre-se, no julgamento desse feito, memorável voto divergente do então presidente da Casa, ministro Sepúlveda Pertence, homem público de rara integridade, como já não se vê na cortes do País.


Desta feita, como aparentemente sopram em tal sentido os ventos políticos — não se olvide que a decisão favorece os interesses diretos do mais importante clã maranhense, uma vez que a segunda colocada no pleito é a senadora Roseana Sarney, prontamente empossada no cargo usurpado —, achou por bem o TSE legitimar um golpe contra o governador Jackson Lago e, com isso, acomodar tenebrosos interesses que, por óbvio, não se limitam às fronteiras do longínquo e inexpressivo Maranhão.


Minha torcida pela resistência de Lago, até o limite do uso da força, se necessário fosse, representava, sim, a aposta em um conflito cujos reflexos bem se poderiam dilargar até o ponto de uma crise institucional de âmbito nacional que, a esta altura, me pareceria muito oportuna para uma necessária 'refundação' da República brasileira.


Infelizmente, apenas uma passageira quimera. Restou somente o golpe, consagrado pelo corrompido Judiciário e limitado, em seus efeitos mais evidentes e imediatos, ao governo de um mero coadjuvante estado da Federação.

quinta-feira, 14 de maio de 2009

Grandes canciones - 5

OLVIDARTE

Ricardo Arjona
Composição: Gabar'el Arley Raven

Olvidarte es mas difícil que encontrarse al sol de noche
Que entender a los políticos o comprar la Torre Eiffel
Mas dificil que fumarse un habano en American Airlines
Mas dificil que una flor plastica marchita
Olvidarte es mas dificil que una flaca en un Botero
Que encontrarse a un gato verde, o a un cubano sin sabor
Mas dificil que Lady Di en la estacion del metro
Olvidarte es tan dificil olvidarte

Olvidarte, olvidarte
Es querer jalarle el pelo a una botella
Es creer que la memoria es un cassette para borrar
Olvidarte es recordar que es imposible
Olvidarte, olvidarte
Incluso es mas dificil que aguantarte
Si extraño tu neurosis y tus celos sin razon
Como no extrañar tu cuerpo en mi colchon

Olvidarte es un intento que no lo deseo tanto
Porque tanto es que lo intento que me acuerdo mucho mas
Y he llegado a sospechar que mi afan de no acordarme
Es lo que me tiene enfermo de recuerdos
Olvidarte es lo que espero para reanudar mi vida
Harto de seguir soñando con la posibilidad
De que un dia por error, o pura curiosidad
Le preguntes a un amigo por mis huesos

Olvidarte, olvidarte
Es querer jalarle el pelo a una botella
Es creer que la memoria es un cassette para borrar
Olvidarte es recordar que es imposible
Olvidarte, olvidarte
Incluso es mas dificil que aguantarte
Si extraño tu neurosis y tus celos sin razon
Como no extrañar tu cerpo en mi colchon

Es querer jalarle el pelo a una botella
Es creer que la memoria es un cassette para borrar
Olvidarte es recordar que es imposible
Olvidarte, olvidarte
Incluso es mas dificil que aguantarte
Si extraño tu neurosis y tus celos sin razon
Como no extrañar tu cuerpo en mi colchon

A perpetuação do profano

E quando a gente acha que já viu de tudo no meio dito "evangélico", eles conseguem se superar. Não sei o que chama mais a minha atenção: a tragédia perpetuada, a vítima que, mesmo depois de morta, contribui para se auto-indenizar; ou a modalidade de dízimo em parcelas fixas no cartão de crédito. A notícia saiu no Estadão e no Jornal da Tarde, e foi reproduzida no blog Paulopes, e aproveito para repeti-la aqui, como uma "homenagem" à profanação do evangelho no Brasil:

Renascer cobra dízimo de fiel morta no desabamento de templo

Luiza Silva, 62, foi uma das pessoas que morreram no desabamento do tempo da Igreja Renascer em Cristo no Cambuci, em São Paulo.

A igreja do apóstolo Estevam e da bispa Sônia não indenizou ninguém até agora, alega que espera decisão judicial, mas, veja só, um mês após a morte de Luíza, a Renascer cobrou no dia 18 de janeiro R$ 30 do cartão dela para o pagamento do dízimo.

Gleice Raquel Valente Mendonza, advogada da família de dona Luiza, informou ao Estadão que avisou a administradora do cartão para suspender os pagamentos.

A advogada também está cuidado da papelada que encaminhará à Justiça reivindicado uma indenização da Renascer pela morte de Luiza.

quarta-feira, 13 de maio de 2009

As crônicas de Marvin - 09

O contorno das sombras

Ponto de vista alternativo, 3 de setembro de 2051, 00:00

A noite sem lua mergulhava as ruas em completa escuridão. A chuva, que castigava a cidade, impedia que seus moradores saíssem, transformando aquela cidade em um completo vazio. Esta era a noite perfeita para sair sem ser visto, para falar sobre o que não pode ser ouvido. Fazer pactos que não podem ser conhecidos.
Em algum lugar da cidade, um galpão que deveria estar abandonado, agora abrigava 11 vultos. Aguardavam em silêncio, reunidos em um círculo. Intencionalmente, não havia luz. Havia escuridão, havia tensão. O silêncio foi quebrado apenas quando o 12º vulto apareceu de uma das portas e se juntou aos 11 originais.
- Vejo que todos estão aqui. – disse.
- Sim, acabamos de chegar também. – disse um dos vultos.
- Então podemos começar nossa primeira reunião, cavalheiros. Creio que todos já sabem os motivos para a convocação. Como estão os números?
- Segundo relatórios, já são 60% de desassociados. Eu diria que estes números são preocupantes, se continuarem aumentando assim. – comentou outro vulto.
- Sim, mas no momento, não há nada que possamos fazer sobre isto.
- Por quê, Moshe? – perguntou um dos vultos.
O vulto que se intitulava Moshe, parou por um instante, refletindo sobre sua resposta. Então continuou:
- Cavalheiros, não seria bom tentar desfazer o que já foi feito agora... Os fiéis ficariam chocados se isto fosse feito...
Um dos vultos que escutava, escorado em uma das paredes, deu uma pequena risada sarcástica, comentando em seguida:
- Ora, foi exatamente para isto que a doutrina de novas luzes foi criada... enquanto esta doutrina existir, a disputa pelo poder ficará mascarada por uma correção divina...
- Sim, Eliyahu, mas não podemos esquecer que esta doutrina só é bem sucedida, quando aplicada a longo prazo. E com certeza, não teremos estas condições agora...
- Hummm, entendo onde você quer chegar... Então, este é o motivo de nossa reunião, não é?
- Sim...
Houve um breve silêncio, até que o outro vulto chamado de Eliyahu retomou a discussão:
- Bem, acredito que será bem mais fácil pegar uma pessoa, do que todo o Corpo Governante...
- Não contaria com isto. – respondeu Moshe.
- Hummm... qual seria a dificuldade?
- Bem, o jovem que estamos falando foi capaz de planejar uma forma de controlar todo o Corpo Governante, e está conseguindo, com sucesso, acabar com a Torre de Vigia. Ele é bem habilidoso, não acha?
- Entendo... Então foi por isto que me pediu para buscar informações sobre ele... – comentou outro dos vultos.
- Sim, Yekhezqe'l... Como está nosso detetive?
- Ainda buscando informações... Teremos dados importantes em breve...
- Muito bom. Enquanto isto, Yeshayahu, vamos colocar algumas testemunhas para vigiá-lo...
- Tudo bem... Mas, o quê diremos a eles, Moshe?
- Diga que são ordens do Corpo Governante, que é um chamado especial, e que é para manter isto em segredo. Diga também que a questão é tão sigilosa, que não poderão saber os motivos pelos quais estão sendo chamados para vigiar tal pessoa. E mais uma coisa: peça para eles não deixarem que ele descubra. Ele não pode sonhar que está sendo vigiado... Ele é esperto, e pode chegar até nós, se quiser...
- E se eles continuarem perguntando?
- Dispense eles do serviço de campo, e lhes dê uma boa quantidade de horas. Eles acharão isto o máximo.
- Este rapaz não estaria disposto a vir para nosso lado? – perguntou mais um vulto.
- Não acho que seria possível, Yona... Pelo que sei, ele andou se tornando uma espécie de idealista, do pior tipo. Pessoas como ele não estão interessadas no poder... Ele podia ter visto desde o princípio, que possuía em mãos o controle total sobre um grande número de pessoas. Um controle que foi habilmente construído durante anos. Eu tenho que elogiar nosso caro Juiz Rutherford, ele é um gênio. Ele pegou um grupo de pessoas idealistas e inocentes, e transformou aquilo em um instrumento perfeito de controle. Quando ele colocou a Torre de Vigia como único canal de comunicação com Deus, ele simplesmente fez com que todos os questionamentos teológicos tivessem que passar por sua aprovação. Assim, até mesmo para se questionar a Torre de Vigia, era necessário sua permissão. Nem mesmo o papa conseguiu tanto sucesso, embora eles tenham o mesmo tipo de ensino. Se os católicos não tivessem tanta liberdade como possuem hoje, certamente nosso alvo seria o Vaticano. Talvez algum dia, se os tradicionalistas conseguirem derrubar o Concílio Vaticano II, as condições na igreja Católica permitam um domínio tal qual a Torre possui. Por isto é importante para a Torre fechar-se ao mundo. A igreja Católica se abriu um pouco, e tudo foi buraco abaixo...
- Sim, mas agora isto pode ser perdido, se não impedirmos aquele garoto.
- Sim... E vamos impedí-lo... Este é o primeiro passo. Temos que neutralizá-lo. Mandaremos as testemunhas de Jeová vigiarem ele. Ele deve cometer algum deslize... E quando cometer...
Fez-se por algum tempo, silêncio na sala... Por fim, Moshe disse em tom solene:
- Cavalheiros, por hoje é só. Quando Yekhezqe'l obtiver mais dados sobre nosso objeto, voltaremos a nos reunir.
Um a um, cada um dos 12 foram se afastando. O último a sair foi aquele que chegou por último. Lentamente se deslocando para a porta, sussurrou suas últimas palavras...
- Em breve, Juiz, retomaremos seus passos...
A chuva caia mais forte lá fora, escondendo em cumplicidade aqueles 12 homens...

3 de setembro de 2051, 10:00

Para compensar as traquinagens do sábado, decidi que eu merecia dormir até mais tarde aquele dia... Foi bom assim, pelo menos eu estava com mais disposição para as viagem daquele dia.
Tomei logo meu café, peguei minhas coisas e saí. Havia muita coisa para se fazer ainda. O ônibus demorou um pouquinho, como era costume nos domingos.
Estava novamente mergulhado em meus pensamentos, e sobre o que eu iria dizer... Eu estava para fazer algo totalmente diferente do que já havia feito até aquele momento. Certamente se eu contasse o que eu faria para o Estêvão, ele iria me reprovar. Por isto não mencionei nada a ele.
Em certo ponto, o ônibus parou para pegar os passageiros. Eu observava aquelas figuras, indo para seus trabalhos, passeios... Mas uma delas chamou mais atenção: um rapaz, de uns 27 anos mais ou menos, vestido de terno, levando uma pastinha. Com o cabelo penteado como se uma vaca tivesse lambido, e com um ar celestial. Pensei: “Droga, uma testemunha de Jeová... Fui encontrado...”. Disfarcei o máximo que pude, mas ele não pareceu me reconhecer.
Chegando no centro, na avenida Tocantins, desci em meu ponto. Pelo visto ele não tinha me reconhecido. Desci a avenida até a Anhanguera, para pegar o eixo. Mas algo me incomodava... Decidi olhar para trás, e eis que vejo novamente o mesmo jovem. Rapidamente ele começou a falar com a pessoa mais próxima dele, que levou um susto. Pelo canto do olho pude ver ainda ele pegando de sua pequena pastinha, uma Sentinela... “É mesmo uma testemunha de Jeová”, pensei. Mas por que estaria me seguindo, sem ao menos vir me puxar o saco? Toda testemunha de Jeová gosta de cumprimentar seus superiores...
Tudo aquilo era muito estranho para mim... E não estava disposto a ser seguido por uma testemunha. Felizmente, na esquina da Tocantins com a Araguaia, havia uma cigana, que me entregou um folheto, e me perguntou:
- Senhor, gostaria que eu lesse sua mão? Quer saber seu futuro?
Olhei para ela por um instante, e logo a respondi.
- Bem, minha senhora, eu realmente não posso. Mas vou te contar um segredo. Logo passará por aqui um jovem de terno e com uma pasta na mão. Ele está se fazendo passar por testemunha de Jeová, por que ele quer encontrar uma pessoa que consiga convencê-lo a fazer algo contra a vontade dele. Sabe, estes ricaços excêntricos inventam cada uma... Eu tentei por cerca de meia hora convencê-lo a passar o Natal lá em casa, e ele se manteve em sua posição...
Ela me olhou com uma cara de espanto.
- Mas, moço, o quê acontece se eu convencê-lo?
- Bem, aquela pasta dele está cheia de dinheiro. Alguém me disse que ele juntou o que podia dentro dela, e vai oferecer para aquele que o convencer. É por isto que ele vai negar até a morte que não é testemunha de Jeová, e não vai aceitar ser convencido do contrário...
Seus olhos arregalaram ainda mais... Deixei a mulher para trás, e entrei no pequeno terminal de ônibus. Logo, o rapaz veio atrás, mas foi abordado pela cigana.
O terminal tinha uma visão privilegiada daquela cena. A velha ficou na frente do rapaz, dizendo várias coisas. O rapaz tentava educadamente se livrar dela, e como não conseguia nada, se colocou para orar na frente dela. A velha, percebendo que sua conversa não estava surtindo resultados, segurou a mão do rapaz, que se assustou, gritando:
- MINHA SENHORA, LARGUE MINHA MÃO AGORA. EU NÃO QUERO SABER DE LEITURA DE MÃO, PREVISÃO DO FUTURO. NADA!!! ISTO É COISA DE SATANÁS, O DIABO!!!!
Vendo que não tinha jeito mesmo, a mulher começou a dizer:
- Bem, já que é assim, eu acho que vou começar então a ler suas revistas...
Então com um pulo, pegou a pasta do rapaz e saiu correndo. Logo se via uma cena de perseguição, uma velha correndo como um velocista, e o jovem quase sem fôlego, gritando:
- PEGA ESTA SENHORA, ELA ROUBOU MINHA PASTA!!!
As pessoas observavam aquela cena grotesca, enquanto comentavam:
- Puxa, ela está em forma, hein!!
Não pude ver o resto, pois o meu ônibus tinha chegado. Entrei no eixo Anhanguera, e logo achei um lugar, perto da porta. Ainda estava pensando sobre aquele fato, quando o ônibus parou no próximo ponto, onde dois jovens bem arrumados entraram pela porta que eu estava. Usavam camisa, calça social e sapato de couro.
- Então, vamos marcar uma festa para esta noitinha? – conversavam.
Droga, me encontraram novamente!!! E não vieram falar comigo... Alguma coisa estava acontecendo... Será que eles não tinham serviço de campo a cumprir não? Por quê estavam me seguindo? Quem estava mandando eles fazer aquilo? Ainda não tinha respostas para aquilo. Mas não poderia deixá-los ver que eu havia percebido que estavam me seguindo. Primeiro, por que não queria dar satisfações para ninguém de onde eu estava indo. Segundo, por que se eu os alertasse, faria com que eles tomassem mais cuidado. Eu posso descobrir depois quem estava mandando me seguir.
Fiquei refletindo sobre aquilo até chegarmos ao terminal da praça da Bíblia. Decidi descer por ali, e não fiquei surpreso de ver aqueles dois me seguirem. Saí do terminal, e atravessei a rua, na frente de um ônibus, o que obrigou os dois a esperarem do outro lado. Ruim para eles, já que comecei a correr em seguida.
Percebendo o que eu estava fazendo, eles começaram a correr também. Eu não sou um atleta, então teria que fazer algo, e rápido. Peguei meu celular e disquei 190.
- Alô, eu preciso de ajuda, por favor.
- O que aconteceu, senhor?
- Estou sendo perseguido por dois homens bem vestidos, se não me engano, acho que vi uma arma na cintura de um deles.
- Onde o senhor está? – disse o policial.
- Estou na praça da Bíblia.
Se eu fosse católico, certamente faria uma oração a santo Expedito para que os policiais aparecessem antes que eu perdesse o fôlego. Como não era, resolvi garantir minha segurança...
- O senhores virão logo? Antes de ser perseguido, aqueles dois estavam falando o quanto os policiais desta área são lerdos e bundões.
Em um minuto a viatura da polícia parou na frente dos dois jovens. Dois policiais irados saíram do carro, apontando suas armas e gritando:
- PARADOS, POLÍCIA!! PARA O CHÃO, AGORA!!
Sem saber o que estava acontecendo, os dois obedeceram. Continuei correndo até encontrar um moto-taxista. Como tinha deixado o ônibus que eu queria, pensei que fosse uma boa idéia continuar o trajeto de moto mesmo. Informei então o endereço ao motorista, e fomos. Descemos a mesma avenida pela qual eu estava subindo, tendo a oportunidade de ver um dos policiais lançando o um dos jovens no porta-malas da viatura, enquanto o outro chutava a perna do outro.
Continuando pela Anhanguera, tive que retomar o fôlego, pensando sobre o quê significava tudo aquilo. Paramos no primeiro sinaleiro, e enquanto descansava, parou ao nosso lado outro motoqueiro. Sapatos de couro, calça social, camisa... Como? Esperei o sinal abrir, e pedi para o motorista:
- Senhor, me faz um favor?
- Sim, se não for difícil...
Tirei o panfleto da cigana do bolso e entreguei para ele.
- Entrega isto para aquele motoqueiro de roupa social ali atrás... Inventa qualquer motivo...
No próximo sinaleiro, o motoqueiro parou novamente ao nosso lado. O moto-taxista então cumpriu o prometido:
- Senhor, minha mulher é vidente, e estou distribuindo os panfletos dela...
- Me desculpe, senhor, mas eu não estou interessado.
- Pode ficar com o papel, às vezes algum conhecido seu está.
Ele então colocou o papel na mão do motoqueiro engomado, que logo amassou o papel e o jogou no chão.
- O senhor está maluco? Eu disse que não queria.
Então o sinal abriu, e o moto-taxista foi embora.
- Senhor, aquele cara ali atrás está me seguindo... Por acaso o senhor consegue despistá-lo?
- Bem, eu vou então para a BR, depois te trago de volta, OK?
Você normalmente não diz a um moto-taxista para andar rápido. Seria loucura, uma perda completa da razão... Mas não havia jeito ali.
Rapidamente o moto-taxista se dirigiu para a rodovia. Tive que tomar cuidado com os retro-visores, pois ele passava muito rápido por eles... Eu poderia ficar preso em algum. Meu coração quase saiu pela boca, quando entramos na BR-153, na frente de um caminhão que estava embalado pela descida do viaduto. A moto amarela urrava, enquanto zigue-zagueava entre os carros da estrada. A esta velocidade, nosso perseguidor já estaria para trás, já que eles não costumam arriscar as próprias vidas. Olhei para trás, para me certificar, mas não gostei do que vi.
O mesmo motociclista estava atrás de nós, correndo até mais do que nós. Desesperado, virei para frente e disse:
- Senhor, ele está nos alcançando!!
Ele então acelerou o que podia, enquanto nos dirigíamos para perto do Serra Dourada. Ali, encontramos um carro ultrapassando outro. O moto-taxista, não sei por quê razão, achou melhor passar entre os dois. Enquanto isto, o testemunha de Jeová nos seguia quase na mesma velocidade. Sinceramente jamais pensei que eles corressem tanto assim...
Passando o Serra Dourada, nos deparamos com 3 caminhões desta vez, um entrando na rodovia, outro ao seu lado e o terceiro, tentando ultrapassar o segundo, mas desenvolvendo uma velocidade um pouco maior. “Me lasquei”, pensei. Torci para o moto-taxista não resolver fazer o que fez com os últimos dois carros, mas felizmente, ele foi sensato desta vez, e passou pelo acostamento. Por um tempo, esperou nosso perseguidor aparecer também pelo acostamento, então mudou para o outro lado da pista, e foi para trás de outro caminhão que estava mais adiante.
- Tive uma idéia, rápido, vista esta jaqueta.
Rapidamente me deu uma jaqueta que estava vestindo.
- Mas isto é seguro?
- Vai por mim, acho que vamos despistá-lo.
Então, tentei fazer o que ele me disse, o mais rápido possível. Não era seguro usar apenas uma mão para me prender àquela moto. Felizmente consegui vestir a jaqueta antes de nosso perseguidor nos encontrar. Neste momento, o moto-taxista acelerou, finalmente ultrapassando o caminhão, agora já em frente ao Carrefour, se direcionando ao jardim botânico. Enquanto corríamos, o moto-taxista me dizia:
- Muito bem, agora eu quero que você ligue para o número que vou te falar...
Demorou um certo tempo para nosso perseguidor perceber que éramos nós. Isto nos fez distanciar dele. Infelizmente, nossa moto tinha mais pessoas, e corria menos por isto. Então, logo ele estaria nos alcançando novamente. Passamos pelo jardim botânico, onde saímos da rodovia, e fomos em direção ao Parque das Laranjeiras. Antes de chegarmos neste bairro, viramos em uma das ruas, que em um domingo de manhã não tinha muita gente. Havia apenas um mendigo, envolvido em seus cobertores.
O perseguidor então veio com cautela, pois em sua mente, ele não havia sido percebido ainda... Dobrando a esquina daquela rua, se assustou imensamente ao ver a nossa moto vindo na direção contrária, com toda velocidade. Somente o mendigo naquela rua foi capaz de ouvi-lo ele dizendo:
- Droga!! Ele acabou de mudar de posição. Diga aos outros que ele voltou a seguir para o Parque das Laranjeiras!!
Então, acelerou sua moto, e seguiu a moto amarela, em direção ao Parque das laranjeiras. Aquela barulheira parecia ter acordado o velho mendigo, que agora se revolvia por baixo dos cobertores.
Nosso perseguidor então se manteve atrás, sempre atento à direção que o moto-taxista escolhia. Estranhamente, o moto-taxista não corria mais como antes. Não demorou muito para que chegasse ao seu destino. Qual não foi a surpresa de nosso perseguidor, quando o passageiro desceu daquela moto, e ele não era eu? A jaqueta ajudou a disfarçar bem aquela pessoa, e a pressa do nosso perseguidor não permitiu que ele visse as diferenças entre mim e aquela pessoa ali.
Na verdade, aquele não era o destino do passageiro. Nem do moto-taxista. Eles apenas pararam, pois ficaram sabendo que tudo havia corrido conforme nosso plano. Um outro moto-taxista, conhecido do primeiro, logo chegou àquela rua do mendigo. Ao vê-lo, não teve dúvidas de se aproximar e perguntar:
- É o senhor que se chama Marvin?
Finalmente pude sair debaixo daquele cobertor. Pelo menos ele serviu para seu propósito: pude finalmente confirmar algumas suspeitas minhas. A primeira é que eu estava realmente sendo seguido. Segundo, que os meus perseguidores estavam usando celulares e não rádios. Isto significa que a pessoa que gerenciava a operação estava de longe, o que lhe daria a possibilidade de deslocar a quantidade de pessoas necessária para me seguir. Eles também dificultariam para mim, tentar escutar sua conversa. Rádios costumam usar frequência aberta, e os que codificam a mensagem costumam ser mais caros. Com celulares, o perseguidor não precisaria investir recursos, e não chamaria atenção.
Subi na nova moto, não sem antes devolver a coberta àquela mulher, que aguardou escondida na outra esquina. Ela ainda me emprestou outra jaqueta, para que não corresse o risco de outro testemunha de Jeová me encontrar. Sorte minha que o primeiro moto-taxista morava por perto. Agradeci à senhora, e finalmente seguimos nosso destino.

3 de setembro de 2051, 12:00

Finalmente cheguei ao meu destino, em algum lugar de Senador Canedo. Olhei o pedaço de papel em meu bolso, para confirmar o endereço que haviam me passado. Me aproximei da porta, e toquei a campainha. Logo alguém veio me atender.
- Olá, eu queria saber se é aqui que mora Elizabete dos Santos?
A mulher sorriu, respondendo:
- Sim, sou eu mesma.
- Ah, que bom. Há muito tempo queria vir aqui, falar com você sobre um assunto um pouco delicado...
- Puxa, e o quê seria.
- Bem, seria sobre sua mãe... A dona Ana Clara...

terça-feira, 5 de maio de 2009

Ceticismo e Revelação em Santo Agostinho

por Paul Tillich:



Depois que Agostinho abandonou o grupo maniqueu, caiu no ceticismo, como em geral acontece quando nos desiludimos de algum sistema de verdades. Passamos a duvidar de todas as possibilidades da verdade. Além disso, nessa ocasião, o ceticismo estava na moda. Até mesmo na escola platônica, conhecida pelo nome de Academia, o ceticismo sobre o conhecimento expressava-se com o nome de probabilismo. Somente as declarações prováveis eram possíveis; a certeza não era possível. Todos os primeiros escritos filosóficos de Agostinho estudam o problema da certeza. Trata-se de importante elemento em seu pensamento porque pressupõe o fim negativo da filosofia grega. A heróica tentativa grega de construir um mundo baseado na razão filosófica se acabava catastroficamente no ceticismo. A tentativa de criar um mundo novo, em termos da doutrina das essências, fracassou. É a partir daí que se deve entender a nova ênfase na revelação. O ceticismo, fim da filosofia grega, foi o pressuposto negativo da maneira como o cristianismo veio a receber a idéia da revelação. O ceticismo é, em geral, a base da doutrina da revelação. As pessoas que dão ênfase na revelação, em termos mais absurdos e supernaturalistas, são precisamente as que se comprazem em ser céticas sobre todas as coisas. O ceticismo e o dogmatismo, a respeito da revelação, se correlacionam. A maneira como o cristianismo valorizou a revelação até o Renascimento, relaciona-se com o tremendo choque com que a razão ocidental experimentou o fracasso de todas as tentativas filosóficas gregas de alcançar a certeza.

(TILLICH, Paul. História do Pensamento Cristão. São Paulo: 2000, 2. ed., p. 121)

As crônicas de Marvin - 08

Rivais

Eu realmente me surpreendi com aquela aparição. O que o Estêvão estaria fazendo por aqui?
- Olá, Marvin. Eu recentemente consegui me transferir para Goiânia, estamos finalmente na mesma Congregação...
Olhei para ele com certa desconfiança, dizendo:
- Transferir? Como assim, por quê você se transferiu para cá?
- Ora Marvin, você não sabe mesmo? Nós tínhamos um plano, que você não cumpriu... Até o momento, eu estava confiando em você... Mas agora prefiro acompanhar tudo de perto, para não sair mais nada do rumo que nós havíamos planejado...
Não podíamos continuar aquela conversa do lado de fora. Convidei-o para entrar, convite que ele aceitou prontamente, enquanto estralava o pescoço.
- Hehe, você não mudou nada, não é? Continua caminhando como se fosse o Mr. Bean... O povo deve te achar muito esquisito, não?
- Na verdade já me disseram que eu sou um exemplo de como Jeová pode escolher até os esquisitos...
Estêvão caiu na gargalhada... Eu nem sei por que contei isto para ele, afinal, ele pegaria no meu pé por causa disto durante todo o mês. Ao entrarmos, ele já foi continuando sua conversa...
- Pois bem, resolvi viver aqui, para mantermos mais o foco de nossas atividades. Não é só você que tem o direito de se divertir, sabia? Se eu não fosse médico e estivesse disposto a te ajudar, seu plano jamais teria dado certo.
- Sim, eu sei. Mas se eu não conhecesse tanto de eletrônica, principalmente aplicada à medicina, você também não poderia ter feito nada.
- Claro. Por isto é que é importante agirmos juntos. Eu gostaria que você me apresentasse à Congregação amanhã.
- Hummmm, está bem então. Parece que não tenho muita escolha não, não é mesmo?
E não tinha. Estêvão estava mesmo querendo acompanhar minhas ações de perto. Bem, eu não tinha nada contra aquilo.
Terminamos nossa conversa, e ele se despediu. Esperei que ele se afastasse, peguei minha carteira e a mochila que estava em meu quarto e saí. Passei na farmácia primeiro, e perguntei ao atendente, mostrando uma lista:
- Eu estou precisando destes dois remédios aqui. Você os possui?
Com os remédios em mãos, me dirigi rapidamente ao supermercado. Tive o cuidado de escolher um supermercado em um bairro diferente, para não ser visto por ninguém. A moça do caixa ficou um pouco assustada quando me viu comprando 4 pacotes de papel higiênico, àquela hora da noite. Eu nem fiz muita questão disto, precisava mesmo era comprar aquilo e voltar logo para casa. Guardei minhas compras na mochila e voltei imediatamente. Felizmente não fui visto por ninguém.
Não foi muito fácil não. Primeiro, desenrolar todo aquele papel higiênico deu muito trabalho. Fiz com cuidado 4 bolas grandes de papel higiênico com os pacotes que comprei. Preparei as 2 cápsulas de plástico, que aguardavam os ingredientes finais. As boas lembranças me vieram à mente ao fazer isto. Certamente aquele tempo de escola me ajudou muito.
A madrugada estava fria e tranquila, como as madrugadas de setembro. Não havia lua aquele dia, para minha sorte, então a noite estava bem mais escura que o normal. O frio segurava qualquer alma viva em suas casas, menos um vulto negro, encapuzado. Eu era quase um ninja, se não fosse pela falta de conhecimentos em ninjutsu...
Entrei por uma das portas do salão do Reino, tentando fazer o mínimo de barulho possível. Por segurança, deixei do lado de fora um aparelho que miava aleatoriamente, para o caso de algum vizinho acordar à noite.
A operação levou umas 2 horas, mas tudo foi concluído com sucesso. Finalmente poderia voltar para casa, e descansar, para as aventuras do outro dia.

2 de setembro de 2051, 14:00

Naquele dia eu tinha dormido até mais tarde. Não pude dormir além das 11, já que o Estêvão me ligou.
- Olá, Marvin...
- Nhamm... Alô, Estêvão... Por quê você está me ligando tão cedo?
- Cedo? São 11 horas!!!
- Já?
- Sim. Você não vai encontrar as irmãs para iniciar as visitas domiciliares às 14?
- Humm, é mesmo... Ei, como você sabe disto?
- Estive conversando com os anciãos. Eu gostaria de participar, estou te ligando para avisar. Vocês marcaram na porta do salão do Reino?
- Hummm, sim. Mas...
- Tudo bem, então te encontro por lá. Até mais.
- Estêvão? Alô?? Droga, ele desligou...
Três horas depois estávamos os 4 no salão do Reino. Eu fui o último a chegar. Como era de se esperar, o Estêvão já estava mantendo uma animada conversa com a Priscila, enquanto que a Amanda apenas ouvia.
- Puxa, finalmente você chegou, dorminhoco. – Dizia Estêvão, com um sorriso no rosto.
- Bem, nós marcamos às 14:00 em ponto, não foi?
- Hahaha, está certo, Marvin. Só estou pegando no seu pé. Bem, acho interessante irmos em duplas hoje, para as irmãs pegarem o jeito. Façamos assim, eu vou com a irmã Priscila, e você com a irmã Amanda.
O sem vergonha chegou ontem, e já está mandando em tudo...
- Mas por quê?
- Ora, irmão... Com a conversa que tivemos enquanto te esperávamos, eu acabei conhecendo melhor a irmã Priscila. Tenho certeza que você não terá problemas com a irmã Amanda.
Ele é muito esperto... O pior é que não posso dizer nada contra isto, poderia levantar suspeitas.
- Ah, Marvin, não faça esta cara. É por causa de feições como esta que as pessoas te acham esquisito. A irmã aqui mesmo pensava assim, não é irmã?
A Priscila me olhou com uma cara meio tímida, e respondeu hesitante:
- Hummm, foi...
- Hahahaha, pois então. Bem, então está definido. Vamos, irmã, temos muito o que fazer ainda...
Foram então os dois. A irmã Priscila ainda olhava para trás, despedindo de nós. Olhava como se quisesse ficar ainda. O que pude fazer foi apenas observar, enquanto a palavra esquisito ecoava em minha mente...
- Hummm, irmão?
De repente, me lembrei que a irmã Amanda ainda estava por ali.
- Ah, irmã... Me desculpe, nós temos que ir também, não?
- Sim...
Então fomos também. Começamos a nos dirigir à casa da irmã Ana Clara. Decidimos que ali seria um bom começo, já que nós dois a conhecíamos bem. Subíamos uma rua íngreme, quando a irmã Amanda acabou quebrando o silêncio...
- Hummm, irmão, algo está te incomodando? Seria a conversa com o irmão Estêvão, agora há pouco?
- O irmão Estêvão não sabe o que diz, irmã... Não tem nada me incomodando não...
Me lembrei do “esquisito”, e de como o Estêvão só tem curtido com minha cara desde que chegou. Aquilo ficou martelando em minha cabeça...
- Na verdade, irmã... Me incomodou um pouco o fato dele me chamar de esquisito...
- Ah, entendo...
Ela fez uma breve pausa, depois continuou...
- Humm, de certa forma irmão, acho que as pessoas pensam o mesmo de mim. E-eu geralmente não converso muito, não sou “popular”. Toda pessoa tímida acaba sendo conhecida assim...
Realmente, ela de certa forma é igual a mim.
- Isto me incomoda às vezes também... Mas então, eu chego à conclusão que não há motivos para se incomodar com isto...
- Não há? Por que?
- B-Bem, quando uma pessoa diz que você é esquisito, na verdade está dizendo que você é muito diferente dele... Isto só poderia ser levado para o lado negativo, se você considerar ele como um padrão de normalidade ou de qualidade...
De fato... O que ela me disse me fez sorrir um pouco...
- Para mim, irmão... Você não é... esquisito... Humm... Você é a pessoa mais inteligente que eu conheço. Você sabe medir suas palavras, você sabe ser gentil, se preocupa com os outros e não se vê acima de ninguém... E-Eu acho que agora que você ocupa uma posição de tanta responsabilidade será o momento certo para todos perceberem todas estas qualidades suas, e poderão perceber o quanto estavam enganados a seu respeito...
Ninguém nunca me elogiou assim... Fiquei surpreso com tais palavras, imediatamente olhando com aquela cara de “como é que é?” para ela. Não pude deixar de reparar que ela ficou vermelha na mesma hora. Ou ela já estava vermelha?
Estávamos entrando na rua da casa da dona Ana Clara. Algumas crianças brincavam de bola na calçada, enquanto outras corriam para se esconder, provavelmente outra brincadeira.
“Perceber que estavam enganados”? É difícil mudar pessoas. Eu nunca consegui mudar ninguém. As lembranças de minhas tentativas tornaram a me entristecer...
- Irmã, acho difícil mudarem as opiniões que eles possuem sobre mim. Você não acha difícil mudar as pessoas? Já muitas vezes quis mudar o mundo, em vão...
Por um instante ela ficou calada, pensando, com uma carinha de tristeza também.
- Eu sei... Mas se você quer mudar o mundo, você começar com você mesmo. O mundo é muito grande, e cada pessoa nele tem suas próprias vontades, seus próprios planos. Eventualmente, você encontrará alguém que não quer ser mudado, ou talvez pior, alguém que quer te mudar, por que também quer mudar o mundo. Planos de mudar o mundo geralmente falham no momento que são idealizados...
Depois de uma curta pausa, ela completou:
- Não há angústia maior em não conseguir mudar aqueles que você mais ama...
- Irmã?
- Por muito tempo eu quis que meu pai mudasse... Que ele parasse de beber, e que pudesse se dedicar mais à nossa família... Mas ele gosta de beber, e ignora tudo que nós dizemos para ele... Nós é que somos idiotas, por não beber. Infelizmente ele só vai mudar, quando algo muito grave acontecer, e ele perceber que aquilo que ele está fazendo o vai levar para o fundo do poço...
Interrompemos o assunto, e finalmente paramos. Chegávamos à casa da irmã Ana Clara.

2 de setembro de 2051, 19:00

Era chegada a reunião... Hora de deixar um pouco os pensamentos tristes gerados durante a tarde, e me concentrar em coisas mais alegres.
Quando cheguei no salão do Reino, havia alguns irmãos já tomando água. Já tinha avisado ao Estêvão que a água poderia não ser boa naquele dia, mensagem que ele entendeu imediatamente. Não perdi tempo, fui até a irmã Amanda, e lhe dei uma garrafinha de água mineral.
- Irmã, é para não perder muito tempo indo beber água.
- Ah, obrigado, irmão.
Então fui até a irmã Priscila, e fiz o mesmo.
- Irmã, esta aqui é para que você não perca muito tempo indo beber água.
- Puxa, muito obrigado, irmão... Ei, irmão, eu queria te dizer uma coisa...
- Hum, sim? O que é?
- Bem, eu gostaria de te pedir desculpas por hoje à tarde. Na verdade, eu preferia ter ido com vocês... Gosto do irmão Estêvão, mas eu prefiro você...
- Oh, puxa, nem sei o que dizer...
- Bem, se tiver alguma coisa para dizer, só não o diga para o irmão Estêvão, hahahaha...
Então iniciei a reunião, chamando a todos:
- Irmãos, gostaria de anunciar algo muito importante hoje, então prestemos mais que a devida atenção. Eis que nosso irmão Estêvão, que compartilha comigo a responsabilidade de ser uma das testemunhas do Apocalipse, se mudou para esta congregação. A partir de hoje, estaremos agindo juntos aqui.
Todos se espantaram com tal declaração. Agora, aquela congregação pequena possuía duas figuras de alta importância. Pedi então que todos mudassem de posição, finalmente começando a reunião. A música de abertura foi linda, a letra era mais ou menos assim:

Eu te louvarei
Enquanto eu viver
Meu louvor estará para sempre
Em meu coração – meu coração
Levantarei minhas mãos
Enquanto eu louvar
Para não mais pecar contra ti
Me consagrarei

Faz-me um vaso
Faz-me feliz
Meu prazer, meu prazer
È cumprir, é cumprir
O que diz.


Houve até quem ensaiou uma dança, mas nada digno da Broadway ainda. Tudo em clima de alegria. Logo o discurso público começou. E tudo que eu tinha que fazer é esperar. No mínimo, uns 40 minutos, foi o que me disseram.
Bem, era um discurso sobre o fim do atual sistema de coisas, algo que estava se tornando corriqueiro, principalmente depois das nomeações minha e do Estêvão.
- O fim está muito perto, irmãos... – dizia o palestrante.
Enquanto isto, eu prestava atenção aos irmãos... Depois de uns 50 minutos, quase no final do discurso, um dos irmãos levanta-se correndo e vai até o banheiro, se trancando por lá. ‘Beleza, já começou’, pensei. Logo outros irmãos começaram a ir ao banheiro e formar duas filas por ali, uma no banheiro masculino e outra no feminino. A coisa começou a esquentar quando o irmão que estava lá dentro abriu a porta e cochichou algo para o primeiro da fila. Logo o irmão Marcos estava lá na porta, querendo saber o que havia acontecido. Todos na congregação se assustaram, quando aos berros, o irmão dizia:
- PUTA QUE PARIU, IRMÃO!!! EU VOU TER QUE LAVAR ESTE BANHEIRO AMANHÃ, DE TERNO, E COM UMA ESCOVA DE DENTES!!!!!!!
Ele abriu a porta e entrou de uma vez, para acabar escorregando na água e caindo de bunda no chão. O vaso estava entupido!! Não sei se foi mais engraçado o fato dele cair, ou o fato de algo ficar carimbado nas calças dele.
O irmão Jonas então correu lá para ver o que estava acontecendo... O pessoal da fila estava se contorcendo, enquanto o irmão desesperado só colocava a cara pra fora, tentando acalmar todo mundo. Só pra por moral, eu me levantei e disse:
- Irmão, olha o palavreado. Evitemos hábitos impuros.
Ele não me escutou... Estava tão preocupado com o que estava acontecendo dentro do banheiro que não me deu ouvidos... Logo o resultado no banheiro das mulheres pôde ser visto, então os dois anciãos ficaram mais desesperados. Quem estava fora ou estava se borrando, já que o purgante que eu coloquei na água era realmente forte, ou estava correndo para casa, pedindo desculpas para todos por sair mais cedo. Depois eu ouvi dizer que mais da metade deles não conseguiu chegar em casa a tempo. Nem era preciso dizer que eu tinha conseguido interromper a reunião, não é?
Logo, a tarefa de tentar desentupir os vasos começou. Um ancião em cada banheiro tentava fazer o possível para deixá-los pelo menos utilizaveis. ‘É agora’, pensei. Peguei meu celular, e através de um programa que fiz para ele, enviei o comando para as duas cápsulas que coloquei lá dentro.
“Bummmmmmmm”... Foi o barulho que saiu, e que assustou todos os irmãos... O Marcos já saiu de lá xingando:
- Mas que... MERRRRRRRRRDA!!!!
Muita merda, irmão. A explosão foi nostálgica... Bons tempos aqueles quando eu fazia isto na escola técnica... Eles nunca me descobriram naquele tempo, pois eu tinha aperfeiçoado minhas técnicas. E assim como naquela época, eu conseguia sujar bastante o banheiro, desde o chão até o teto. Bastava entupir o vaso com uma parede de papel higiênico, colocar a cápsula lá dentro, e depois colocar a segunda parede de papel. Com meu comando, as cápsulas imediatamente liberaram o seu conteúdo na água, que através de uma reação, começam a efervecer... Assim, a pressão entre as duas paredes de papel higiênico aumenta bastante, a ponto de forçar as duas paredes, uma para cada lado. Tem que se ter muitos anos de experiência para causar a explosão, sem destruir o vaso, como alguns diziam que acontecia.
- O diabo é muito sujo! - Falou um dos irmãos.
- É, e ele está usando nosso banheiro. – completei com ironia...
Enquanto o Estêvão saia para rir (ele tinha acabado de descobrir o significado de humor escatológico), eu cancelava a reunião daquele dia. Que pena, não conseguimos estudar a Sentinela naquele dia... E os anciãos ficaram um bom tempo para limpar o banheiro no domingo, com suas escovas de dentes...

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