"“O que habita no esconderijo do Altíssimo e descansa à sombra do Onipotente diz ao SENHOR: Meu refúgio e meu baluarte, Deus meu, em quem confio.” (Salmo 91:1)
Mostrando postagens com marcador imperialismo. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador imperialismo. Mostrar todas as postagens

sábado, 20 de agosto de 2016

Sociólogo americano vê imperialismo cultural em críticas à torcida brasileira


A matéria é da BBC Brasil:

Impedir barulho e vaias da torcida é imperialismo cultural, diz sociólogo americano

Fernando Duarte

Assim como muitos observadores internacionais acompanhando os Jogos Olímpicos do Rio, o sociólogo americano Peter Kaufman ficou espantado com o episódio das vaias ao atleta francês do salto com vara Renaud Lavillenie. No caso do acadêmico, porém, o que pareceu incomodá-lo mais foi a reação contrária ao comportamento da torcida.

Para o professor da Universidade Estadual de Nova York, que escreve sobre sociologia do esporte e estudou as reações do público ao comportamento de atletas, houve exagero na condenação das manifestações, sobretudo depois do "pito" público dado nos brasileiros pelo presidente do Comitê Olímpico Internacional (COI), o alemão Thomas Bach.

Após as vaias a Lavillenie no pódio, Bach usou a conta do COI no Twitter para dizer que o comportamento do público foi "chocante" e "inaceitável nas Olimpíadas".

O COI certamente tem questões bem mais importantes para lidar do que vaias de torcedores", disse Kaufman, em conversa com a BBC Brasil, por telefone.

Veja abaixo, trechos da entrevista:

BBC Brasil - O senhor acompanhou a polêmica das vaias no Brasil?

Peter Kaufman - Sim, porque houve um repercussão considerável de alguns incidentes envolvendo o público na Olimpíada do Rio. O comportamento de torcedores é algo interessante, porque estão em jogo fatores culturais.

Cada cultura tem seus próprios valores: em algumas, é apropriado beijar em vez de apertar a mão quando se é apresentado a alguém, por exemplo. Em outras, é muito aceitável vaiar, assim como em certos países aplausos efusivos podem ser vistos como algo rude.

BBC Brasil - Por que as pessoas vaiam?

Kaufman - É uma questão de expressão, uma forma de interação social e participação. E isso varia de lugar para lugar. Se um alienígena chegasse aqui hoje e fosse assistir a uma competição esportiva, possivelmente teria outra maneira de se comportar de acordo com sua realidade. E, óbvio, sabemos que não é apenas esporte. As Olimpíadas têm um significado muito maior. O público brasileiro pode estar vaiando em desafio às autoridades, ao governo brasileiro e até mesmo ao dinheiro gasto na Olimpíada.

BBC Brasil - É injusto com os atletas?

Kaufman - Alvos de vaias podem se sentir ofendidos, tristes e até ameaçados por uma torcida mais ruidosas. Não os culpo por pensarem apenas na qualidade de seu desempenho em vez de analisar aspectos culturais ou políticos. É perfeitamente compreensível que o atleta francês tenha ficado bastante chateado com as vaias que recebeu até no pódio. Mas ele estava competindo contra um atleta brasileiro e em casa. Pelo que tenho lido sobre a torcida brasileira, era inevitável que ele fosse alvo dessas manifestações.

BBC Brasil - Renaud Lavillenie não foi a primeira "vítima" e não deverá ser a última, mas o comportamento da torcida no Estádio Olímpico, em especial durante provas em que normalmente o silêncio do público é uma questão de etiqueta, como o tênis e a esgrima, irritou até o presidente do COI, Thomas Bach. Como achar um meio termo?

Kaufman - Olha, é irônico que sentimentos de nacionalismo e tribalismo surjam na Olimpíada, uma competição concebida em sua forma moderna para promover a paz e a união ente os povos. Mas o esporte é passional e excitante. As pessoas querem vaiar seu adversário para tentar afetar o resultado de uma partida. E, como costuma ser o caso por causa das rivalidades locais, os brasileiros "pegaram no pé dos argentinos". Também vimos o público vaiando atletas russos por causa da controvérsia envolvendo o doping. As vaias, por sinal, são o menor dos problemas que o COI tem para resolver.

BBC Brasil - Mas Lavillenie não teria razão ao reclamar do barulho durante o momento de seus saltos? Não seria preciso criar uma cultura de torcida mais apropriada para o esporte olímpico?

Kaufman - Isso seria uma atitude de imperialismo cultural. Por que a maneira do brasileiro torcer é errada? A realidade que conhecemos é criada pelo ambiente em que crescemos. Você mencionou o tênis anteriormente: será que não vale a pena discutirmos a razão para o silêncio durante o saque no tênis enquanto no futebol a torcida pode urrar nos ouvidos de um atacante que vai bater um pênalti? A diferença é que o tênis é um esporte muito mais elitizado.

BBC Brasil: O senhor defende o comportamento da torcida, então?

Kaufman: De certa maneira, sim, apesar de que os esportes têm regras para lidar com isso. Acho fascinante o fato de que as normas de comportamento podem ser diferentes. Fica a impressão de que o COI foi pego de surpresa pela passionalidade do torcedor brasileiro. Mas lembremos da Copa do Mundo de 2010, em que as vuvuzelas do torcedor sul-africano criaram um problema até para quem viu os jogos pela TV. Mas ter proibido seu uso teria amputado um componente cultural.

Vaiar é uma expressão de crenças e valores. É tão "errado" quanto torcer.



sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

A teologia política de Paulo

por Udo Schnelle*:

Jesus Cristo não só renuncia à sua igualdade a Deus e à sua vida, mas morre na mais extrema humilhação concebível. Esse pensamento está vinculado a um aguçamento teológico-político: agora, a aclamação e proskynesis (prostração) dirigem-se a uma pessoa crucificada. Isto é, durante sua prisão em Roma, Paulo ressalta diante de uma comunidade com caráter colonial-romano a dimensão política do evento Cristo. Por meio da intervenção direta de Deus, uma pessoa crucificada pelos romanos recebe um status insuperável, e somente ela merece proskynesis e exhomologesis (louvação). Aqui, três aspectos são de especial importância:

1) Enquanto reis e governantes ganharam seu poder por meio da violência e da apropriação por roubo, Jesus Cristo humilha-se a si mesmo e torna-se assim o verdadeiro governante. Com isso, ele corporifica a contraimagem ao governante que exalta a si mesmo.

2) Somente o imperador romano é digno de veneração e adoração ilimitadas. Dio Cássio relata acerca do ano 66 d.C. sobre a visita do grande rei Tiridates que se deslocou num cortejo triunfal do Eufrates até Roma para adorar ali a Nero: “Ele se ajoelhou no chão, cruzou seus braços, chamou Nero de seu senhor e demonstrou-lhe sua veneração [...]. Seu discurso dizia [...]: Vim até ti como meu deus, para adorar-te como Mitras. Serei o que tu me designares; pois tu és minha felicidade e meu destino. Nero respondeu-lhe: Fizeste bem em vir aqui pessoalmente, para poder experimentar minha graça face a face”.

3) Também os títulos de Kyrios (senhor) em Fl 2,11 e de Salvador em Fl 3,20 contêm conotações anti-imperiais. Numa inscrição grega do tempo de Nero encontra-se a formulação “O Kyrios do mundo inteiro, Nero”, e especialmente no oriente do império, os imperadores romanos deixaram se celebrar como salvadores. A essa pretensão político-religiosa, o hino contrapõe uma nova realidade que ultrapassa qualquer poder terreno e apresenta uma alternativa melhor. Os filipenses recebem sua cidadania não de autoridades romanas, mas do céu (Fl 3,20s), de modo que Paulo, consequentemente, denomina unicamente em Fl 1,27 sua conduta com o verbo πολιτεύομαι (politeuomai - “conduzir sua vida como cidadão”). O Paulo preso em Roma oferece à sua comunidade um contramodelo: na verdade, a impotência e o poder/domínio são distribuídos de modo totalmente diferente daquilo que parece se insinuar à primeira vista.

A teologia paulina é política, na medida em que, como uma nova criação de sentido, diz respeito imediatamente à vida dos cidadãos, a seu modo de vida. Com Jesus Cristo, Paulo introduz uma autoridade nova e insuperável do tempo escatológico; realiza uma nova definição de mensagem da salvação, domínio, redenção, paz, graça e justiça, e postula uma transformação do mundo que não poderá ser interrompida. Com isso, ele atua também politicamente, mas não assume uma posição conscientemente política no sentido moderno. Alguns textos ou termos isolados de Paulo têm um efeito factualmente anti-imperial (por exemplo, Fl 2,6-11; os títulos de Kyrios e salvador), mas isso não é absolutamente idêntico com uma teologia “anti-imperial” de Paulo. Não há:

1) em Paulo nenhuma expressão anti-romana direta ou apenas crítica a Roma; ao contrário, pois
2) Rm 13,1-7, como único testemunho direto de Paulo sobre o Império Romano, exige explicitamente o reconhecimento do mesmo; tanto mais que
3) a vinda iminente do Cristo exaltado faz o Terrestre aparecer já agora sob uma luz passageira (1 Cor 7,29-31).

(SCHNELLE, Udo. Teologia do Novo Testamento. Santo André: Academia Cristã; São Paulo: Paulus, 2010. pp 283-286).

(*) Udo Schnelle é professor de Novo Testamento na Martin-Luther Universität Halle-Wittenberg

domingo, 10 de janeiro de 2010

O cidadão Paulo

O apóstolo Paulo é visto, por muitos, como o seguidor de Jesus que, utilizando um verbo moderno, “formatou” a teologia cristã, organizando as igrejas nascentes, abrindo-as aos gentios, repudiando os judaizantes e consolidando a doutrina da justificação pela fé no sangue redentor de Cristo. Sua conduta biblicamente registrada nos é apresentada rotineiramente de maneira quase que totalmente espiritualizada. Fica claro, por seus atos e suas cartas, que Paulo investia todos seus recursos físicos, financeiros e intelectuais na modelagem e conformação de uma igreja doutrinariamente unida em torno dos princípios fundamentais da fé. Por outro lado, isto não o impedia de dar ordens e conselhos práticos quanto à maneira do cristão se comportar no seu cotidiano na vida em família, na igreja e na sociedade.

Um outro aspecto da vida de Paulo, entretanto, é pouco abordado nas pregações e nos estudos mais aprofundados: o seu apego ao direito. Uma primeira cautela é necessária antes de se analisar o tema: o vocábulo “direito” da época do apóstolo não tem exatamente o mesmo significado que tem hoje em dia, de um direito codificado, com valores universais e garantias fundamentais que permeiam, com lamentáveis exceções, todos os povos do mundo. Ainda que o direito romano tenha sido a fonte básica das instituições jurídicas que hoje compartilhamos com quase todos os povos e tribos, como propriedade, casamento, família, herança, etc., naquela época ele se restringia a poucas pessoas, consideradas “cidadãos romanos” por nascimento (como Paulo afirma em Atos 22:28), ou por alguma concessão especial. Em segundo lugar, o fato de ser cidadão romano garantia - a quem possuía esta condição – o acesso aos serviços formais de justiça ainda precários na época. Aos demais nada era reservado, senão os humores – nem sempre pacíficos e justos – de quem estava em posição de autoridade. O exemplo maior disso foi o próprio Jesus, transformado que foi num verdadeiro joguete entre as esferas de poder de Pilatos, do Sinédrio e de Herodes. Como um cordeiro, foi enviado ao matadouro sem direito a nada.

O exemplo de Jesus não foi seguido por Paulo, que também terminou sendo enviado ao matadouro, mas, por mais espiritual que fosse, não titubeou em invocar sua condição de cidadão romano para fazer valer seus direitos ("civis romanus sum"). Diante do direito da época, Paulo era “alguém” enquanto Jesus não era ninguém. A primeira vez que Paulo se apresenta como “cidadão romano” acontece no cárcere de Filipos, no qual ele e Silas são injustamente presos depois de serem açoitados. Depois do terremoto que abre as grades e anima o carcereiro se converter, os magistrados decidem soltar Paulo e Silas, mas o apóstolo não aceita sair sem a presença dos oficiais, já que se declara cidadão romano (Atos 16:37), o que provoca justificado temor nos seus algozes, que haviam ousado torturar “alguém” que privava da cidadania romana. A segunda vez ocorre em Jerusalém, quando os soldados romanos se preparavam para açoitá-lo (Atos 22:25) e a terceira diante de Festo em Cesaréia, quando Paulo, conhecedor do ordenamento jurídico de seu tempo, apela para César (Atos 25:11), sendo que, depois, quando é interrogado por Agripa, este comenta com Festo que Paulo bem podia ter sido solto se não tivesse apelado para César, direito que lhe conferia a condição de cidadão romano (Atos 26:32).

O final da história todos nós sabemos. Paulo é levado preso para Roma e lá, enquanto tramita o seu processo, tem oportunidade de pregar o evangelho, confirmar os irmãos distantes através de cartas e consolidar a nascente igreja de Roma, terminando por ser decapitado, segundo a tradição, já que cidadãos romanos, com raríssimas exceções, não eram crucificados, castigo reservado aos “outros”. Nas suas cartas é nítida a sua preocupação em que os cristãos respeitassem a lei e obedecessem as autoridades (Romanos 13 talvez seja o melhor exemplo). Portanto, Paulo foi cidadão romano do nascimento à morte, e exerceu sua cidadania nos momentos mais difíceis de sua vida, sem abdicar do seu crescimento espiritual, trabalho este que resultou num gigantesco legado à cristandade. Isto não o impediu de dizer que sua “pátria” estava no céu (Filipenses 3:20). A palavra aí traduzida para o português como “pátria” é πολίτευμα - politeuma – e significa mais propriamente “comunidade à qual se pertence”, figurativamente uma “cidadania”. A forma verbal de politeuma, politeumai (πολιτεύομαι) é utilizada um pouco antes, em Filipenses 1:27, em que o apóstolo recomenda que, "acima de tudo, vivamos por modo digno do evangelho de Cristo" e não deixa de ser no mínimo curioso que Paulo transmita esta ideia através de uma frase que, em grego, significa primariamente "viver vida de cidadão".

Desta forma, Paulo conciliou, como poucos, sua cidadania fática com a espiritual, numa clara demonstração de que é possível ser cristão sem deixar de ser cidadão, vivendo na plenitude o paradoxo cristão de estar neste mundo, interagir nele mas a ele não pertencer. É claro também que todo cristão sabe que – pelo menos metaforicamente – seu destino é o mesmo de uma ovelha indo para o matadouro, morto para a terra e vivo para o céu, tendo sempre em vista que não pertence a este mundo que jaz no maligno. "Porque, na verdade, nós, os que estamos neste tabernáculo, gememos oprimidos, porque não queremos ser despidos, mas sim revestidos, para que o mortal seja absorvido pela vida" (2 Coríntios 5:4). O desafio do cristão é, portanto, seguir o exemplo de Paulo e discernir todas as circunstâncias e oportunidades de exercer a sua condição total de cidadão da terra e do céu.

LinkWithin

Related Posts with Thumbnails