""Quão preciosa é, ó Deus, a tua benignidade! Os filhos dos homens se refugiam à sombra das tuas asas." (Salmo 36:7)
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domingo, 16 de junho de 2013

Deus e o Diabo na Terra do Sol, 50 anos depois

Artigos publicados no Estadão de 26/05/13 celebram os 50 anos da obra-prima de Glauber Rocha:


A cidade continua sendo aquilo que os padres capuchinhos desejavam: destino certo dos sobreviventes da caatinga

JOÃO VILLAVERDE

Paris, 1886. O último imperador brasileiro, Dom Pedro II, visitava a Academia de Ciências da capital francesa e ficou surpreso quando se deparou com sedimentos que pertenciam a um dos maiores meteoritos já encontrados na Terra. Ele ficou atônito ao descobrir que a pedra original fora encontrada no Brasil - e ainda estava lá. O Meteorito de Bendengó permanecia, desde 1784, quando foi encontrado, na pequena Monte Santo (BA).

Após voltar ao Brasil, o imperador ordenou que a pedra fosse trazida do sertão da Bahia para o Rio de Janeiro. Foram necessários quase dois anos entre a ordem de Dom Pedro II e a realização de seu desejo. Quando o meteorito enfim chegou ao Rio, em junho de 1888, a filha do imperador, princesa Isabel, já abolira a escravidão no País. A monarquia estava com os dias contados.

Com o Bendengó, ainda hoje em exposição no Museu Nacional carioca, e a complexa operação de transporte montada por Dom Pedro II, a pequena Monte Santo entrara na história nacional. A relação mística criada então no município, no entanto, logo seria substituída por uma história sangrenta.

Nove anos depois de perder o Bendengó por decisão do imperador, Monte Santo viu chegar em suas terras as tropas militares da recém instaurada República. Os soldados montaram ali sua base para esmagar os beatos que seguiam Antônio Conselheiro na vizinha Canudos (BA). Enviado pelo Estado ao sertão, o jornalista Euclides da Cunha contou, em Os Sertões (1902), os detalhes do trajeto que as tropas fizeram até Canudos.

Até hoje, quem visita Monte Santo encontra uma réplica do meteorito do Bendengó e diversas imagens das tropas militares lideradas pelo marechal Carlos Machado Bittencourt no Museu do Sertão. Mas há poucos vestígios do terceiro evento que colocou Monte Santo no mapa - as filmagens de Deus e o Diabo na Terra do Sol, considerado um dos filmes mais importantes do cinema mundial. Cinquenta anos depois, o Estado esteve lá.

Glauber Rocha decidiu que iria filmar seu segundo e mais ousado longa-metragem em Monte Santo ainda no fim de 1962. Baiano nascido em Vitória da Conquista, Glauber entendia que a longa escadaria de pedra encravada na serra de Santa Cruz, que leva a uma pequena capela, seria o cenário ideal para a primeira metade do filme.

Aqueles degraus, que levam ao céu no meio do morro, seriam o palco perfeito para Glauber homenagear seu mestre Sergei Eisenstein. Uma cena antológica de Deus e o Diabo, quando os beatos são assassinados pelo matador Antônio das Mortes (Maurício do Vale), repete a famosa passagem da Escadaria de Odessa, em O Encouraçado Potemkin (1925), do cineasta russo.

O jovem diretor baiano encontrou dificuldades curiosas para executar seu filme em Monte Santo, como conta Nelson Motta na biografia do cineasta. Ao se depararem com Othon Bastos fantasiado de cangaceiro, muitos monte-santenses correram para suas casas, com medo de que o grupo de Lampião ainda existisse. Os moradores mais velhos tinham sido testemunhas dos confrontos entre os cangaceiros e o antigo prefeito Aristides Simões, na década de 1930.

A aparição de Lídio Silva vestido do beato São Sebastião e carregando uma cruz de madeira fez com que muitos fiéis fossem pedir bênção ao ator. E a casa onde ficou instalada Yoná Magalhães virou local de procissão - os habitantes nunca tinham visto uma mulher tão linda, e encaravam Yoná como uma santa enviada à cidade.

Hoje, 50 anos depois de Glauber e sua trupe fazerem de Monte Santo o local de nascimento de um marco do Cinema Novo, um século após as traumáticas experiências de morte e perseguição por conta da Guerra de Canudos e mais de 200 anos depois que um dos maiores meteoritos na Terra foi descoberto na região, a pequena cidade continua a ser o que os padres capuchinhos que a fundaram, no século 18, desejavam: centro de peregrinação dos sobreviventes da caatinga.

Quando o Estado passou por Monte Santo, uma passeata percorria as ruas para informar os mais de 55 mil habitantes sobre o abuso sexual de mulheres na Bahia. Barulhenta, a manifestação terminou na praça do centro do município, onde grande palco estava instalado. Ao final do episódio, no horário de almoço, o som foi desligado, e as pessoas se dispersaram. A cidade voltou a ficar calada. E a seguir seu ritmo. Quem chega a Monte Santo lê em seu portal que a cidade é "o coração místico do sertão baiano". A propaganda não é enganosa.





ANÁLISE: Luiz Zanin Oricchio

Há um fato interessante a respeito de Deus e o Diabo na Terra do Sol. O filme foi apresentado à imprensa dia 13 de março de 1964. Nesse mesmo dia houve o famoso Comício da Central do Brasil, no qual o presidente João Goulart defendia as Reformas de Base. O comício, incendiário, foi estopim para o golpe de Estado que derrubaria o presidente duas semanas depois, em 1.º de abril, dando início a uma ditadura de 21 anos.

O quadro histórico é importante, pois Glauber, em Deus e o Diabo, expressa um programa de geração. Mais que um filme, é um manifesto. Mais que manifesto, é todo projeto para um futuro que não se cumpriria. De qualquer, forma, Glauber exprime a fé revolucionária e a sua confiança jovem de 20 e poucos anos de que o homem deve se assumir senhor do seu destino, sujeito da sua história, como então se dizia.

O trajeto é exemplar. O vaqueiro Manuel (Geraldo Del Rey), depois de matar o patrão, vaga sem rumo pelo sertão. Conhece primeiro o "Deus Negro", Sebastião (Lídio Silva) em Monte Santo. É a fase mística. Que, superada, passa à fase seguinte, no encontro com o cangaceiro Corisco (Othon Bastos), até que este caia nas mãos de Antonio das Mortes (Mauricio do Valle). No trecho final, Manuel corre em direção ao mar, obviamente aqui significando a esperança de transformação. Esse é o tom otimista. Manuel, essa consciência alienada, supera a fase mística com o beato, a violência sem direção do cangaço, para assumir-se por fim, livre e só, para construir o seu futuro.

Era o clima vigente na época, pouco antes do golpe. Muito diferente, por sinal, daquele expresso no filme seguinte de Glauber, outra obra-prima, Terra em Transe (1967), de certa forma a reflexão de por que as esperanças exibidas em Deus e o Diabo haviam naufragado. Entre outras hipóteses, que podem ser lidas na própria obra de Glauber, mas também fora dela, porque o "progresso" humano não se faz em linha reta, evolutiva. Nem mesmo através das contradições hegelianas, como pode ser intuído no filme. É tortuoso, errático e misterioso. Recua quando parece avançar e vice-versa. Mas, numa época de euforia revolucionária, a racionalidade do progresso e a iminência da libertação parecem fatos evidentes.

Deus e o Diabo na Terra do Sol está disponível numa excelente cópia em DVD, fruto da parceria entre Versátil, Riofilme e Tempo Glauber. São dois discos. Um com o filme, outro apenas reservado aos extras, com depoimentos, músicas, trailer, etc. É uma das obras-primas incontestes do cinema brasileiro.





"Ninguém assiste a filme brasileiro, não, os estrangeiros são muito melhores", disse Gabriel Silva, 14 anos, quando questionado pelo Estado sobre a presença do cineasta baiano Glauber Rocha em sua cidade, Monte Santo (BA), meio século atrás. O adolescente, que estava na praça no centro da cidade, nunca ouvira a história na escola ou em casa.

Ao seu lado, Elizabeth, que optou por não revelar o sobrenome, concordou com a avaliação do jovem. "A turma só compra DVD de filme americano, que é melhor, e todo mundo conhece os atores", disse ela, que trabalha na maior farmácia do município.

Uma das poucas lembranças da presença de Glauber Rocha e sua equipe em Monte Santo surge quando o Estado visita a escadaria de pedra que leva à capela no alto da serra de Santa Cruz. Os degraus serviram de cenário central em Deus e o Diabo na Terra do Sol.

Um idoso se aproximou do repórter e do fotógrafo Ed Ferreira para questionar o que faziam ali. Ao ser avisado da ocasião dos 50 anos das filmagens do marco fundador do Cinema Novo brasileiro, ele - que pediu para não ser identificado - lembrou que a grande diversão dele e dos colegas, que participaram como figurantes no longa metragem, era notar que o responsável por dirigir o jipe que carregava a equipe e as máquinas de filmagem em Monte Santo interpretava um cego no filme.

O idoso de Monte Santo fazia referência ao motorista Marrom, que representa no filme a personagem Cego Júlio. Foi Marrom quem avisou Glauber que no município vizinho de Milagres (BA) o cineasta Ruy Guerra filmava Os Fuzis. Glauber ficou furioso ao saber que sua ideia de retratar o sertão brasileiro nos cinemas tinha sido copiada. Sua reação foi simples: escreveu artigos para os jornais baianos criticando a invasão estrangeira do sertão. Em tempo: Ruy Guerra nascera em Moçambique. / J .V.





50 anos depois, Monte Santo ainda guarda lembranças de Deus e o Diabo na Terra do Sol

João Villaverde

MONTE SANTO (BA) - Cidade ícone do cinema brasileiro, a pequena Monte Santo, encravada no meio do sertão baiano, é um misto de história e esquecimento. Em suas terras, o cineasta Glauber Rocha filmou seu clássico maior, Deus e o Diabo na Terra do Sol, em 1963. Cinquenta anos mais tarde, a cidade de rica história seguiu seu rumo, e guarda pouco dos jovens baianos que ali produziram um dos grandes marcos do Cinema Novo.

A partir da história contada em Monte Santo - que só foi estrear nos cinemas no ano seguinte -, nasceu a mais criativa e ambiciosa geração de cineastas brasileiros, reconhecida com prêmios em festivais como Cannes (França) e Veneza (Itália), e por mestres da arte, como os diretores Jean-Luc Godard, Luis Buñuel e Martin Scorsese.

Cinquenta anos depois de Glauber, o Estado percorreu as ruelas do município, incluindo a famosa escadaria de pedra encravada na serra de Santa Cruz, que permanece igual àquela filmada em 1963. Mantida pela prefeitura de Monte Santo e pelos fiéis que fazem dela trajetória de procissão até a pequena capela no alto do morro, a escadaria de três quilômetros foi também personagem - dentro e fora das telas.

Em Deus e o Diabo, os moradores de Monte Santo, que interpretam beatos seguidores de São Sebastião, são assassinados no local por Antônio das Mortes, que atira com sua espingarda do alto da escadaria. A cena é fundamental para o enredo. Sem os beatos, os protagonistas Manuel e Rosa partem em busca de outro guia, que surge na figura do cangaceiro Corisco, o braço direito de Lampião.

Mas, fora das telas, a escadaria também teve papel no filme - ao realizar a dramática passagem em que o vaqueiro Manuel sobe de joelhos os degraus de pedra, com um enorme pedregulho apoiado na cabeça, o ator Geraldo Del Rey sofreu um grave ferimento na base do crânio, e precisou ser tratado em um hospital de Salvador, paralisando as filmagens por três dias.

Em 1963, a maior parte do pouco mais de mil habitantes de Monte Santo ainda se lembrava do grupo de Lampião, e os mais velhos tinham memórias do conflito em Canudos. Em sua biografia de Glauber, Nelson Motta anotou: "Com a chegada da equipe de filmagem, a cidade, mergulhada em profundo clima místico, acordou de sua letargia e passou a viver entre a fantasia, o mito e a realidade".

Monte Santo seguiu seu rumo. A cidade que nasceu da descoberta do meteorito do Bendengó, em 1784, até hoje o maior já encontrado no Brasil, que um século depois serviu de base para o Exército que o governo federal enviou para esmagar Antônio Conselheiro e seus beatos na vizinha Canudos, e que viu Lampião (na década de 1930) e Glauber Rocha (em 1963), continua mística. O clima seco e as ladainhas dos beatos ainda estão lá. O passado não atrasou Monte Santo, que viu sua população aumentar 50 vezes nos últimos 50 anos.



sexta-feira, 29 de março de 2013

Papamania anima mas não garante recuperação do número de católicos no Brasil

É o que diz matéria publicada na Folha de S. Paulo de 28/03/13:

Papa Francisco deve animar católicos brasileiros, dizem especialistas

MORRIS KACHANI

A nomeação de um papa latino-americano, com nome de um santo bastante reverenciado e que provavelmente visitará o Brasil em um importante evento voltado para jovens no final de julho, no Rio de Janeiro (a Jornada Mundial da Juventude), tende a animar o segmento católico nacional, na avaliação de especialistas ouvidos pela Folha.

"Sua simplicidade e sua tradição de trabalho junto ao povo pobre são dados característicos do que existe de melhor no clero latino-americano e isso ajudará a população a se encontrar com mais facilidade com esse papa do que com Bento 16", afirma Francisco Borba, coordenador do Núcleo de Fé e Cultura da PUC de São Paulo.

Contudo, se o foco do papa Francisco for o de contribuir de modo significativo para ao menos reduzir o declínio católico no Brasil, não será uma tarefa simples.

A proporção de católicos, que foi superior a 90% ao longo do século 20, caiu para menos de 3/4 no ano 2000 e menos de 2/3 em 2010. Outro aspecto relevante é o crescimento dos sem religião, que eram 0,8% em 1970 e chegaram a 8% em 2010.

Se as tendências das duas últimas décadas se mantiverem, o Brasil do século 21 terá uma configuração diferente da que teve durante seus primeiros 500 anos de história: deixará de ser hegemonicamente católico nos próximos 20 a 30 anos, passando a evangélico.

E esse é um processo não necessariamente sincronizado com o resto da América Latina. Na Argentina por exemplo, impressionantes 92% se dizem católicos.

O crescimento evangélico também acontece, mas com muito menos intensidade. "A média de católicos no continente é de 75% e o Brasil puxa esta média para baixo", explica Fernando Altemeyer, professor de teologia da PUC.

Luiz Eduardo Wanderley, também da PUC, afirma que o Brasil sempre foi mais aberto e crítico em termos religiosos do que a Argentina. "O novo papa é representante de um dos segmentos mais conservadores daquele país", diz.

Em 2011 havia 22.119 padres brasileiros, para 47.805 centros pastorais. E são 9.336 os seminaristas que em até sete anos se tornarão padres, se não mudarem de ideia durante os estudos.

Um padre leva em média sete anos para se ordenar, enquanto um pastor evangélico, dependendo da igreja, pode levar apenas três meses.

"O deficit de padres no Brasil é um problema grave de atendimento pastoral, porque o povo acaba ficando sem missa", diz Altemeyer.

Para tentar reverter esse quadro, a Igreja Católica criou novas formas de inserção, como os diáconos permanentes, que hoje já são 2.711 em atividade no Brasil.

Os diáconos são casados e não podem celebrar missa ou ouvir confissão. Mas podem batizar, fazer a extrema unção ou a liturgia da palavra.

Para Borba, o Brasil nunca foi a maior nação católica do mundo: "se somos a maior nação católica, é só no número. Muitos se dizem católicos em respeito à tradição da família, mas poucos frequentam a igreja.

E há também o elemento sincrético, muito presente nas camadas populares", diz.

André Ricardo de Souza, sociólogo da Universidade Federal de São Carlos, diz que a quantidade de católicos brasileiros que vivenciam a experiência na igreja "não passa dos 15%".

Não há consenso entre os especialistas sobre quais são as principais vertentes da Igreja Católica no Brasil.

Todos concordam porém, que a Teologia da Libertação perdeu influência e o cenário atual é dominado pelos conservadores, que têm em Odilo Scherer um dos seus principais expoentes.

O grande destaque, em termos de apelo de público, continua sendo a Renovação Carismática, representada pela Canção Nova ou Shalom e os padres cantores.

Os carismáticos já contam com 15 milhões de adeptos e continuam crescendo.

"Eles propõem uma renovação apenas litúrgica. Politicamente ou em termos de moral sexual, são bastante conservadores", explica André Ricardo.

Outros movimentos que crescem, mas em proporção bem menor, são os focolares, com uma abordagem mais ecumênica, ou o Comunhão e Libertação.

Diferentes uns dos outros, todos esses movimentos surgiram no pós-Segunda Guerra e serviriam, de uma maneira ou de outra, como um caminho alternativo ao proposto pelos evangélicos.

Em comum, apresentam Cristo como uma figura fascinante e próxima. O aspecto emocional é muito importante. Agem de uma forma diferente: o encontro com Jesus pode acontecer e mudar a vida do fiel.



quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Retrospectiva e perspectivas do fenômeno evangélico brasileiro

Alguns dias atrás, destacamos aqui o evento realizado pela Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, em que se discutiu a presença evangélica no Brasil.

Felizmente, a Revista de História da Biblioteca Nacional publicou um resumo muito interessante do que foi debatido lá, com vários comentários bastante pertinentes desde a etimologia da palavra "religião" até o fenômeno tipicamente nacional do "evangélico sem denominação" (o popular "turista de igreja"), passando pela influência muçulmana na formação do misticismo afrobrasileiro. Ou seja, é muito pano pra manga...

Eis a íntegra do artigo:

Religião se discute, sim

No Biblioteca Fazendo História deste mês, Silvia Patuzzi e Eduardo Refkalefsky debateram, na última segunda-feira (10), o crescimento das ideias protestantes na Europa pós-Idade Média e no Brasil do século XX

Mauro de Bias

“Hoje nós estamos aqui para quebrar o ditado de que política, futebol e religião não se discutem.” Assim Silvia Patuzzi, professora da UFF, iniciou o Biblioteca Fazendo História deste mês, com o tema “Evangélicos no Brasil: das origens às Igrejas atuais”, realizado nesta segunda-feira (10), na Biblioteca Nacional. “Mas aqui só vamos falar sobre religião. Se der tempo a gente discute um pouco de política e futebol no final”, completou, bem-humorada, a pesquisadora que esteve ao lado de Eduardo Refkalefsky, da UFRJ.

A primeira ideia que Patuzzi pôs em xeque foi a de que religião significa religare, palavra latina que quer dizer "religar", o que levaria, seguindo o raciocínio, à ideia de "religar o homem a Deus". “Isso é um equívoco. Essa não é a única nem é a primeira ideia de religião”, disse. Ela contou que a definição surgiu no século IV, por meio do teólogo Lucio Lactâncio, em discordância ao filósofo romano Cícero. Este acreditava que religião significava relegere, do latim, "reler".

Patuzzi abordou ainda como a reforma luterana atraía fieis com certa facilidade em meio às sociedades europeias, especialmente entre os mais insatisfeitos com as imposições da Igreja Católica e sua interferência na vida pessoal. “‘Ora, se eu não preciso mais pagar impostos ao bispo e deixar de comer carne na sexta-feira, então sou luterana’”, exemplificou.

“Ser luterano significa o sentimento de liberdade em relação às imposições políticas e jurisdicionais que sustentavam a Igreja. Isso garante uma ampla difusão das ideias”, contou Silvia. Além disso, a tradução da Bíblia para os idiomas correntes era fundamental para uma aproximação dos fiéis. Segundo ela, Martinho Lutero (1483-1546) era visto por alguns teólogos de sua época como um excepcional crítico agostiniano.

Lutero propõe suas teses por não concordar com nenhuma das duas correntes dominantes no cristianismo de então. Uma delas, do cardeal Nicolau de Cusa (1401-1464), foi apresentada no livro A douta ignorância, em 1440, onde o religioso recorre à geometria como melhor forma de conexão entre o homem e Deus.

Sendo uma ciência com inserção das formas no infinito, a geometria mostra, interpreta Nicolau, uma tendência do homem à concepção da infinitude, portanto, de um Deus infinito. A professora simplifica: “É como a teologia platônica. É da natureza de todos os cães ladrar. Assim como todo cão ladra, todo homem tem dentro de si o sentimento do infinito. É da natureza do homem conceber o infinito. É a prova de que somos criaturas divinas.”

A teologia de De Cusa, com seu pensamento matemático e racional, era quase oposta à de São Francisco de Assis (1181-1226), onde Deus não podia ser tangido, mas contemplado através do total abandono. “Deus não é para ser explicado, é para ser sentido. São práticas místicas, onde você pode intuir o divino, aquilo te dá paz e tranquilidade. Mas para Lutero nada disso é satisfatório”, exemplificou Patuzzi.

Lutero afirmava, disse a professora, que não adianta reflexão e meditação se logo o homem vai pecar de novo. Deus, portanto, devia ser compreendido atráves do que tem de espetacular: a glória e os milagres. E vai além: “Ele apresenta a Teologia da Cruz, reforçando que Deus se fez homem para ser compreendido. E quem o homem contempla na cruz? A si mesmo.”

Do embrulho à TV

Na época de Lutero, suas ideias eram difundidas por diversos meios. Um deles, muito comum em Veneza, era embrulhar peixe e castanhas com seus escritos. No Brasil do século XX, foram usadas principalmente duas formas de comunicação que garantiram o crescimento do protestantismo. A primeira foi a TV, com a possibilidade de um alcance amplo, e a segunda foi o boca a boca, que traz credibilidade para o discurso, segundo explicou Eduardo Refkalefsky, professor de Comunicação da UFRJ.

“Existe uma estratégia midiática, especialmente para a TV. A internet não tem o mesmo poder porque tem interatividade, é mais anárquica, não é centralizada e industrial como o rádio e a TV, que são unidirecionais. Eu falo, você me escuta”, discorreu Refkalefsky. Já a evangelização boca a boca, segundo ele, faz o discurso ser mais fácil de acreditar. “‘A pessoa que está do lado é igual a mim. Então eu também posso viver assim’. As pessoas usam o próprio exemplo para evangelizar. E nossa cultura facilita essa estratrégia”, explicou.

O pesquisador citou ainda a grande miscigenação no Brasil como o fator primordial para a construção de uma religiosidade igualmente misturada no país. “Aqui é o único lugar onde teve miscigenação em larga escala de três etnias. Isso tem ligação com uma religiosidade profundamente sincrética”, destacou o professor. Refkalefsky disse que não foi um processo somente de misturar elementos, mas de juntar teorias opostas. Assim surgiram, por exemplo, os cristãos que acreditam em reencarnação e os “católicos não praticantes”, que se batizam na Igreja Católica, mas transitam entre outras crenças e rituais religiosos.

“Tem um panteão que não é nem africano nem brasileiro, é afrobrasileiro. Aí vêm até traços islâmicos. A principal divindade brasileira, Oxalá, é corruptela de Inshalá (que pode ser traduzido do árabe como “se Deus quiser”). Em Portugal, você tem um catolicismo menos reformado pelo Concílio de Trento. É mais medieval, com uma visão bastante franciscana do mundo, da natureza”, lembrou o professor. Essas culturas religiosas misturaram-se também às indígenas e surgiram figuras como profetas e rezadeiras.

Surgiu da plateia uma pergunta sobre o que se chama hoje de “umbandaime”, que mistura práticas da umbanda e do Santo Daime. Refkalefsky respondeu que alguns críticos dizem que tal união vai contra as doutrinas de ambas as práticas religiosas. “Mas que doutrinas?”, questiona o professor, dado que elas também se construíram sobre outras aglutinações.

“O brasileiro conseguiu inventar o evangélico sem denominação. Ele é praticante, mas não tem vínculo com ninguém, o que vai contra a comunicação das igrejas tradicionais. Às vezes ele faz até um trânsito religioso fora das igrejas evangélicas. Vai a um centro de mesa branca, tem hábitos esotéricos”, afirmou Refkalefsky. “Paulo Coelho, por exemplo, é um mago cristão. Para o cristianismo, é uma coisa contraditória, mas para o Brasil não”, disse.

Na questão da comunicação, Silvia Patuzzi abordou como Martinho Lutero construiu uma imagem para divulgar melhor suas ideias. Ela contou que Lucas Cranach, gravurista alemão, representou em figuras o pensamento do monge e a prática católica a que ele se opunha, deixando claras as diferenças entre as duas vertentes cristãs. “São imagens propagandísticas, dizem que a igreja não é um órgão jurisdicional, mas uma comunidade de adesão voluntária. Você não pode ser expulso nem sofrer retaliações. É quase um catecismo ilustrado”, afirmou.

Patuzzi demonstrou que a estratégia de comunicação inicial difundiu e construiu o que se conhece hoje das religiões de matriz protestante no mundo, enquanto Refkalefsky apresentou como essas imagens se formaram no Brasil de uma maneira muito propriamente brasileira. Após a sessão de perguntas, não sobrou tempo para discutir a política e o futebol, mas não ficaram dúvidas de que religião é um ótimo tema para a discussão.



quinta-feira, 5 de abril de 2012

Não existem ateus na Bahia de Todos os Santos

Um excelente artigo - em forma de depoimento autobiográfico - de Cynara Menezes para a Carta Capital:

Não existem ateus na Bahia

Um ateu baiano é que nem uma pessoa que crê em Deus: ambos têm diante de si a dura missão de convencer o mundo. O crente é desafiado a provar a vida inteira, inclusive a si, que há um Deus. Já o ateu baiano, nascido numa terra cuja capital, reza (ops) a lenda, possui uma igreja para cada dia do ano – sem contar os inúmeros templos evangélicos e terreiros de candomblé –, carrega a sina de provar que ele próprio existe. Que de fato não crê em nada, mas nada mesmo. Está lançado o desafio. Como um São Tomé do ceticismo, só acredito vendo.

Até o mais célebre ateu baiano, o comunista Jorge Amado, cujo centenário se comemora este ano, tinha sua queda pelos orixás. Todo mundo lá sabe disso: era o ateu que “simpatizava” com o candomblé. Estive no velório do escritor, em 2001. Havia uma cruz atrás do caixão. E uma senhora da Irmandade da Boa Morte, confraria afro-católica do recôncavo, que entoava cânticos, me disse: “Sabemos que ele era ateu, mas também que era do culto afro”. Não é por acaso que o título do famoso romance de sua mulher, Zélia, é “Anarquistas, Graças a Deus”. O casal Amado pertencia a um tipo bastante comum na Bahia: o “ateu-de-todos-os-santos”.

Jorge Amado chegou a exercer o posto de Obá de Xangô no Ilê Axé Opô Afonjá, o respeitadíssimo terreiro de mãe Stella de Oxóssi, no bairro do Cabula. Ser Obá, um cargo honorífico, significa ser amigo e protetor do terreiro. Ainda moço, o escritor tinha recebido do pai-de-santo Procópio seu primeiro título no candomblé, Ogã, o “guardião das chaves da casa”. Bem a propósito, uma das frases mais belas sobre a fé que conheço, de Caetano Veloso, dizem que foi inspirada em Jorge Amado: “Quem é ateu e viu milagres como eu/ Sabe que os deuses sem Deus/ Não cessam de brotar,/ Nem cansam de esperar”. Ateus baianos enxergam milagres…

Quando era adolescente, em Salvador, cismei de ser atéia, embora só tenha parado de rezar o “Santo Anjo” antes de dormir já perto dos 30. Vocês não imaginam o tanto de gozação que sofri da família: “Ih, ela agora inventou de não acreditar em Deus”, e dá-lhe risadaria. Logo eu, que era a primeira a entrar na fila dos netos que iam tomar banho de folha no sofá da sala de estar dos avós… Meu pai ainda hoje fala assim: “Sei que você não acredita em nada, mas… Aliás, como uma pessoa consegue viver sem fé nenhuma?”

Na faculdade, um professor contou a história de um amigo superateu baiano que na hora da morte se agarrou num crucifixo e começou a gritar: “Meu Deus, não me deixa morrer, eu acredito! Eu acredito!” Nestes momentos, meu ateísmo sofria sérios abalos, assim como minha fé na existência de ateus baianos. Com o tempo, fui me tornando cada vez menos atéia e a simpatizar cada vez mais com os santos, católicos e do candomblé. Como Jorge Amado, sou sincrética pacas. Não dou a mínima para Deus, mas adoro São Francisco. E Iemanjá é praticamente uma pessoa da família. Vovó costuma dizer: “Gosto muito dela!”

Me arrisco a dizer que existe uma fé ou talvez uma dúvida nata no baiano. No máximo, há baianos agnósticos. Na Bahia, mesmo o ateu que se diz ferrenho tem seu quarto dos santos no fundo da casa, carrega consigo uma medalhinha ou um patuá, toma banho de pipoca no dia de São Lázaro, “só de farra”, ou diz para a avó “a bença, vó” – “só por costume”. Como diria outro baiano, Gilberto Gil, “mesmo a quem não tem fé/ a fé costuma acompanhar/ pelo sim, pelo não…”. De onde virá isso, de nossa África ancestral? Não saberia dizer. Mistério.

Um livro que me impressionou e influenciou profundamente na vida foi uma pequena grande obra de Miguel de Unamuno, São Manuel Bueno, Mártir. É a história de um padre que esconde um segredo: não possui fé. E o martírio que se coloca é fingir aos fiéis, transmitir a eles a existência de Deus sem acreditar nela. O ateu baiano é uma espécie de São Manuel Bueno, Mártir da não-religiosidade. Todos os dias, o ateu nascido na Bahia professa sua não-fé em coisa alguma, mas dentro dele uma fagulha de crença no imaterial, no sobrenatural, no que não está ao alcance dos olhos – chame a isso sorte, acaso ou destino –, insiste em permanecer acesa.

P.S.: Como boa baiana, Semana Santa para mim é sinônimo de caruru, vatapá, moqueca, fritada de bacalhau. Tudo comida de santo! Boa Páscoa a todos.



quarta-feira, 2 de junho de 2010

As benzedeiras evangélicas

Dona Zefina era a benzedeira oficial da cidade em que nasci e cresci. Naquele tempo, não tão longínquo assim (anos 70), as benzedeiras estavam sempre a postos para os problemas corriqueiros de quebranto, mau-olhado, espinhela caída, e tantas outras crendices populares que as apontavam como única e melhor solução. Filho de uma família católica não praticante, a exemplo da imensa maioria das famílias da cidade, minha mãe sempre me levava para a D. Zefina benzer ao menor sinal de algum problema misterioso que só a superstição conhecia. D. Zefina era uma senhora negra já idosa, que, com suas rezas e águas bentas, sustentava a família enorme e humilde. Não cobrava nada pelos seus “serviços”, mas todo mundo sempre deixava uma lembrancinha. Lembro-me que ela gostava particularmente das sandálias e dos chinelos que minha mãe lhe dava (havaianas, é claro!). O ritual de “benzimento” era um espetáculo à parte, prova cabal do sincretismo dos rituais católicos com a pajelança e a religiosidade africana. Minha alma de criança achava aquilo tudo lindamente misterioso. Sentávamos num cubículo escuro, na frente de imagens de santos e muitas velas coloridas, enquanto D. Zefina movia um terço pra lá e pra cá, hipnoticamente, pronunciando repetitivamente palavras incompreensíveis, que meus amigos e eu, na nossa ingenuidade, tentávamos reproduzir na escola, algo como “santeverezesp, santeverezesp, etc.”. Fazia também pausas intermináveis enquanto bocejava deliciosamente fazendo um ruído bem alto, capturando-nos numa espécie de encanto infantil. Afinal, éramos todos crianças no espírito, sem saber exatamente o que significava todo aquele misticismo.

O tempo passou, eu me converti a Cristo, e deixei as coisas de menino, embora visse nisso tudo uma busca incessante de Deus, ainda que em lugares e por modos equivocados. Na verdade, foi Ele que me alcançou, hoje bem sei. Perambulei por cidades maiores, e nunca mais soube da D. Zefina. Gostava dela, espero que tenha tido oportunidade de conhecer a Verdade. Entretanto, conforme fui crescendo na fé e conhecendo mais irmãos e igrejas, deparei-me com, digamos, “fenômenos” parecidos com o da D. Zefina. Sempre havia uma irmã que fazia “orações” ou tinha “revelações” para uma série de pessoas – não necessariamente crentes – que as procuravam e - geralmente - deixavam alguns "presentinhos". Não evangelizavam, não queriam saber da vida das pessoas, se alguém seria prejudicado injustamente se os pedidos fossem atendidos, nem se eles eram lícitos e decentes. Oravam por atacado. De vez em quando, aparecia alguém com um recado de uma irmã que tinha tido uma revelação sobre algo ou alguém, e a coisa tomava rumos tão místicos como aqueles da benzedeira da minha infância. D. Zefina pelo menos era honesta e autêntica no seu misticismo caboclo. Com o crescimento da população evangélica (infelizmente em quantidade e não em qualidade), este fenômeno tomou ainda mais vulto. Hoje, em qualquer cidade do interior ou bairro das metrópoles, sempre tem uma irmã que as pessoas procuram, independentemente de suas crenças, para “receberem” uma oração. Geralmente, são mulheres as que oram, e estão vinculadas a uma igreja pentecostal (ou neopentecostal), sem esquecer dos muitos pastores que prometem uma “oração forte”, eufemismo para “reza braba”. Imagino que há muitas irmãs que exercem este ministério de maneira sincera e com simplicidade de coração, inspiradas e autorizadas por Deus, mas me preocupa o fato de que muitas outras não só estejam enganadas a respeito do que creem, como também enganam os que as procuram, incapazes que são – estes últimos - de dirigir-se diretamente a Deus, talvez por O negarem no seu íntimo, mas não dispensarem uma ajudinha extra de alguém que eles desconfiam que têm um canal direto com a divindade, seja ela qual for. Parece que há muito tempo estamos vivendo um renascimento do montanismo, movimento herético que assolou a nascente igreja cristã do segundo século. Fundado por Montano, que se fazia acompanhar de duas profetisas de nome Priscila e Maximila, o montanismo pregava, basicamente, que eles haviam inaugurado a Era do Paráclito, ou seja, que as suas visões e profecias vinham diretamente do Espírito Santo e, portanto, as suas palavras tinham autorização divina que as faziam dignas de respeito e obediência. Nada muito diferente do que tem acontecido ultimamente com tantos intermediários místicos que alegam ter o mesmo acesso privilegiado ao Deus cristão. Não se fazem mais benzedeiras como antigamente, mas as "profetisas" continuam as mesmas.

Pensando bem, o sono transmitido por aquele bocejo da D. Zefina curava qualquer mau-olhado que uma criança pudesse ter. Duro mesmo é a igreja evangélica brasileira despertar do seu sono letárgico. O sincretismo venceu...

sábado, 9 de janeiro de 2010

Espírito de porco

O vídeo grotesco abaixo dá uma ideia de a que ponto as superstições pagãs introduzidas em algumas seitas que se dizem "evangélicas" estão transformando-as em verdadeiras práticas tribais animistas. Ainda que seja comum, no Brasil, o sincretismo entre as várias tradições religiosas presentes no país, parece que a seita em questão conseguiu fazer um supermix de umbanda, espiritismo, catolicismo e evangelicalismo com um certo quê de sociedade secreta, do tipo maçonaria, rosa-cruz, etc., tudo com o fim (não confessado) de propor algo novo que funcione, pelo menos temporariamente e do ponto de vista do crescimento da seita e de todos os benefícios privados daí advindos. Não se pode deixar de lado, também, a crescente "espetacularização" das práticas religiosas evangélicas, em que cada novo templo ou seita precisa desesperadamente de introduzir novos códigos ocultos e rituais "impactantes" (daí o mau gosto e uso do verbo "impactar"), como se tivessem sido esquecidos por 20 séculos. Pra eles, a graça de Deus não basta mais, se é que algum dia eles a conheceram ou ouviram dela falar. Prepare seu estômago e confira:



OBS.: Crédito ao twitter do SilasMalafalha, que descobriu mais esta pérola atirada aos porcos.

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