quarta-feira, 16 de junho de 2010

Louco de carteirinha

Peço antecipadamente desculpas pelo título acima, já que o assunto é sério, mas talvez ridicularizá-lo seja a maneira mais eficiente de chamar a atenção para o absurdo que se comete contra quem sofre de esquizofrenia no Estado de São Paulo. Esquizofrenia é uma doença séria, que pode acometer qualquer pessoa em seus diferentes graus de manifestação, e é geralmente tratável mediante remédios controlados. É provável que você conviva com algum esquizofrênico e nem tenha percebido isso. Entretanto, o estigma social da esquizofrenia costuma ferir mais do que a própria enfermidade, tanto quem a sofre como seus familiares. Se quiser saber mais sobre isso, leia o livro - altamente recomendável - "Uma Mente Inquieta", de Kay Redfield Jamieson, que é a autobiografia real de uma médica psiquiatra, acostumada a cuidar de esquizofrênicos, e que, de uma hora para outra, passa a sofrer de esquizofrenia também. O relato dela é impressionante e vale a pena ser lido, algo parecido como o tratador de uma fera no zoológico que fica do lado de fora da jaula, mas que a partir de um certo momento tem que tratar a fera do lado de dentro, e a conviver com ela por um longo tempo.

Dito isto, algo estranho acontece no sistema de saúde pública do Estado de São Paulo. Parece mentira, mas infelizmente não é. Para retirar os remédios controlados que recebem do Estado, os esquizofrênicos de São Paulo estão tendo que usar uma carteirinha amarela (vide abaixo) em que aparece - com letras garrafais - a palavra ESQUIZOFRENIA. Imagine o constrangimento da pessoa que já tem que lutar contra uma enfermidade grave, ao ter que expor a todos a sua condição. Por isso, transcrevo abaixo o texto da página do deputado estadual Fausto Figueira (PT), que tem uma carta dolorida e emocionante de um esquizofrênico exposto a este tipo de situação:



A utilização de uma carteira, emitida pela Secretaria de Saúde do Estado, por pacientes dos serviços de atendimento à saúde mental, com a palavra “esquizofrenia” estampada em letras graúdas, levou o deputado estadual Fausto Figueira (PT) a pedir providências ao promotor de Direitos Humanos na área de Saúde Pública, Arthur Pinto Filho, contra o que considera uma discriminação de inspiração nazista.

Segundo o deputado, o secretário da Saúde, Luiz Roberto Barradas Barata, “é o gestor da saúde pública no Estado de São Paulo, e tem o dever de impedir que pacientes sejam discriminados, notadamente o doente mental.”

A denúncia partiu de um paciente, autor da carta “A Esquizofrenia e a Estrela de David”, encaminhada à Comissão de Saúde da Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo, presidida por Figueira. Na mensagem, o paciente diz que no dia 20 de abril, ao retirar o medicamento do qual faz uso na Farmácia de Medicamentos Especializados, em Santos, gerenciada pela Cruzada Bandeirante São Camilo, sob os auspícios da Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo, recebeu uma carteira amarela com a palavra “esquizofrenia” estampada em letras graúdas.

O paciente, sentindo-se discriminado, equiparou a carteira recebida ao período nazista e argumentou que a carteira afronta a Lei 10.216 (chamada Lei Paulo Delgado), pois quebra do sigilo do diagnóstico estabelecido em prontuário.

“Sabe-se – diz o deputado na justificativa da sua representação - que o estigma traz problemas (..) como a exclusão do individuo com doença mental nas suas relações sociais. (...) As doenças mentais devem ser encaradas do mesmo modo que as doenças físicas. Tal como o câncer e as doenças de coração, sabe-se que muitas doenças mentais têm causas definidas, requerendo cuidados e tratamento específicos. Quando os cuidados e o tratamento são prestados, é de esperar uma melhoria ou recuperação, permitindo às pessoas regressarem à comunidade e retomarem vidas normais. Infelizmente, os preconceitos impedem que as pessoas, uma vez recuperadas ou tratadas, consigam dar os passos para reingressar na vida familiar e social, com total plenitude.”

Segundo Figueira, “a ‘Carteira do Esquizofrênico’, assim denominada pela denúncia do paciente discriminado, também contraria a Declaração de Direitos do Deficiente Mental, da Organização das Nações Unidas e a própria Constituição Federal, merecendo ser repudiada”.

Abaixo, a íntegra da carta do paciente encaminhada à Comissão de Saúde e Higiene da Assembleia Legislativa:

A Esquizofrenia e a Estrela de David

“Em 1938, a chamada “Noite dos Cristais” marca o início da perseguição aos judeus na Alemanha e na Áustria. Posteriormente, os judeus são confinados em bairros determinados e obrigados a andar com a estrela de David estampada em papelete amarelo e pregada junto a roupa, de forma que fossem facilmente identificados.

“Esse segregacionismo também é estendido aos ciganos, comunistas, homossexuais e, inclusive, aos doentes mentais. A Alemanha de Hitler exterminou e perseguiu milhões de pessoas, constituindo-se como uma das mais horrendas e vergonhosas páginas da história do Homem. Infelizmente o preconceito e perseguição às minorias chegam até os nossos dias, seja pelo viés das piadas e comentários de gosto duvidoso, seja por grupos organizados como os ‘skinheads’.

“Em 20 de abril de 2010, ao retirar o medicamento do qual faço uso na Farmácia de Medicamentos Especializados, em Santos, gerenciada agora pela Cruzada Bandeirante São Camilo, sob os auspícios da Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo, recebo uma carteira amarela com enormes carimbos estampados: ESQUIZOFRENIA.

“Confesso que num primeiro momento a única coisa em que pensei foi que havia em minha testa uma tatuagem, um carimbo com meu diagnóstico estampado para que todos pudessem apontar e dizer: ‘Lá vai o esquizofrênico’. Teria sido apenas um ‘ato falho’ da burocracia? Quem sabe uma ação inconsciente do recém-admitido gestor da farmácia? Ou seria, então, uma política pensada e planejada para expor e reafirmar o estigma das pessoas?

“A Lei 10.216 (chamada Lei Paulo Delgado), assim como outras leis específicas da legislação médica, é ferida frontalmente na medida em que o sigilo do diagnóstico estabelecido em prontuário médico é, escancaradamente e em letras garrafais, divulgado. A Carteira do Esquizofrênico, nesse sentido, é uma afronta ao bom senso. Mais do que isso, é ilegal, dissemina o preconceito, ofende a ética e, sobretudo, causa revolta.

“Todo o trabalho, treinamento, aprimoramento, debates, documentos, fóruns, leis promulgadas, etc., é jogado por terra por atos que denotam a verdadeira face de governantes descomprometidos com os avanços conquistados pelas lutas dos doentes mentais. A Carteira do Esquizofrênico mostra a verdade, ela rotula nossas misérias para calar a nossa voz.

Um governo que se nega a convocar a Conferência Estadual de Saúde Mental; que pouca importância dá à Saúde Mental de nosso município; que sucateou os serviços do Hospital Guilherme Álvaro para entregá-lo à iniciativa privada; que sucateou a antiga Farmácia de Medicamentos de Alto Custo para mais uma vez entregar um serviço público à iniciativa privada e que, em conjunto com a Prefeitura Municipal de Santos, vem precarizando os NAPS, só poderia mesmo mostrar todo o seu pensamento em relação a nós, usuários dos serviços, num ‘ato falho’: a ‘Carteira de Louco’.

“A burocracia burra e mal intencionada é um dos braços desta máquina de estigmatização. Primeiros os loucos, depois os pobres, depois os negros, e assim por diante, até que todas as vozes contrárias sejam suprimidas.

“O passo seguinte ao de retirar a nossa voz é nos colocar novamente nos manicômios (ou nos trinta novíssimos leitos psiquiátricos recém-abertos pela Cruzada Bandeirante São Camilo) e, retrocedendo ainda mais, aplicar-nos castigos como o eletrochoque, a solitária e outros métodos sádicos, que brotam na mente dos que administram as instituições desse caráter, chegando, por fim, à tão sonhada volta da lobotomia, em que o Estado poderia estar livre de despesas e questionamentos.

“Não, não tenho vergonha de ser esquizofrênico. Mas também não posso dizer que é fácil lidar com o preconceito. Por todos os lugares onde tento fazer valer a minha cidadania, logo vem a taxação: é louco! Também não é raiva o que sinto, nem indignação. É um sentimento de impotência frente a esta máquina tão poderosa que fatalmente irá desconsiderar meu desabafo com apenas um argumento: “é louco”. E isto é o que faz minhas pernas e meu corpo fraquejarem, mas parafraseando Cazuza no final de sua vida, morro atirando.”

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