O Telecine Cult tem exibido na sua grade recente o filme "A Batalha de Argel" ("La Bataglia di Algeri"), que é um filme maravilhoso e perigoso, por estranho que possa parecer o adjetivo. Lançado em 1966, dirigido pelo italiano Gillo Pontecorvo, patrocinado pelo recém-empossado governo independente da Argélia, "estrelado" por uma multidão de "atores" amadores (gente do povo mesmo, com um dos líderes da independência argelina, Brahim Hadjadj - mais conhecido por Ali La Pointe, interpretando a si mesmo, em destaque na ilustração ao lado), o filme conta a história da independência daquele país, numa batalha travada principalmente na capital, Argel, entre a elite colonialista cristã francesa que habitava a cidade baixa, européia, e a maioria muçulmana miserável que se amontoava no morro, a Casbah. Qualquer semelhança entre São Conrado e a Rocinha, ou com o choque de civilizações de Samuel Huntington, não é mera coincidência. É nesse contexto, em que Albert Camus, argelino de nascimento e francês por descendência, se sentiu permanentemente deslocado. Talvez seu "O Estrangeiro" esteja marcado por essas contradições. Voltando ao filme, fotografado magistralmente em preto e branco, "A Batalha de Argel" não ficou datada pelo tempo e continua atual, ao mostrar a insurreição dos argelinos contra o colonialismo francês ainda vivo após a Segunda Guerra Mundial. Hoje soa incrível ver como a França, pátria-mãe das liberdades civis, há meio século, mesmo depois de ter visto Hitler humilhá-los passando pelo Arco do Triunfo, ainda insistia em manter uma prática colonial anacrônica. A Casbah se revolta mediante atos terroristas, os quais são respondidos com a tortura comandada pelo coronel Mathieu, que fez escola inclusive entre os ditadores sulamericanos. Esse confronto entre terrorismo e tortura dá a tônica realista do filme, e qualquer semelhança com o embate Bush x Bin Laden também não é mera coincidência. Na Argélia do fim dos anos 50, o terrorismo ainda engatinhava, e, por paradoxal que possa ser, nos surpreendemos ao ver que ficamos surpresos pois (ainda) não havia terroristas suicidas, algo tão comum nos nossos dias. Fica a amarga impressão de que até na barbárie já houve, não muito tempo atrás, uma certa "ingenuidade", se é que esta palavra pode ser aplicada ao horror. É neste sentido que este filme extraordinário é "perigoso": nos deparamos com nós mesmos, com nossa humanidade e sua inerente maldade cíclica, e vemos que a dominação colonial continua existindo, muito mais sutil e dissimulada, e que a Casbah é muito maior do que uma sucessão de morros (e mortos) em Argel.