Dentre as muitas características do cristianismo, uma das que mais se destacam e são menos percebidas é a sua permanência ou, se preferirmos outro nome, a sua perpetuidade. Desde os tempos de Jesus, a Sua mensagem vem se propagando, sujeita a todos os tipos de abusos, desvios e intempéries. Apesar dos muitos erros que foram cometidos em seu nome, o cristianismo permanece já há quase 2000 anos influenciando o mundo. A história da Igreja cristã é repleta de idas e vindas, altos e baixos, momentos melhores e piores, mas ela se mantém, permanece e se perpetua, sempre acompanhando a própria história da humanidade neste planeta. Assim, a Igreja cristã se estabeleceu, a princípio, dentro das fronteiras do Império Romano. A nossa moderna necessidade de racionalização das idéias e dos fatos, esse misterioso poder de síntese que o homem atual reclama, faz com que muita gente imagine que foi um início tranqüilo, e que num estalar de dedos lá estava a Igreja cristã instalada no mundo romano, ignorando as extremas dificuldades que os primeiros cristãos enfrentaram para levar sua mensagem ao mundo.
Eles não eram poderosos nem tinham qualquer influência social, cultural ou econômica, mas a mensagem do evangelho, que levaram aos mais distantes rincões do mundo conhecido de então, teve um impacto tal que a História não pôde mais ser contada sem levar em consideração a presença decisiva de um certo carpinteiro nascido em Belém e morto em Jerusalém, que havia ressuscitado e animado seus discípulos a compartilharem o que haviam visto e ouvido. Aqui há mais um perigo de racionalização: imaginar que os discípulos decidiram começar a contar o calendário a partir de Jesus numa reunião qualquer em Jerusalém naqueles dias. Como o próprio evangelho relata (Atos 1:7), eles não estavam preocupados com tempos e estações, mas havia uma necessidade premente de levar as boas novas ao mundo, e eles não mediram riscos nem calcularam o preço dessa empreitada, apenas pregaram o evangelho e deixaram os resultados com Deus.
Nos três séculos seguintes, após muita perseguição, o cristianismo venceu o Império Romano, absorveu-o (ou foi absorvido por ele) e institucionalizou-se. Mais 3 séculos e a invocação de supremacia hierárquica pela Igreja Romana passou a prevalecer, inobstante a resistência da Igreja Oriental (hoje conhecida por “Ortodoxa”), até o cisma do ano 1.054, em que o Papa e o Patriarca de Constantinopla se excomungaram mutuamente. Muito da mensagem inicial do evangelho se havia perdido no meio de tantas intrigas e vaidades, mas o, digamos, “fio condutor” do cristianismo continuava lá, latente e presente na vida e no trabalho de muitos discípulos que preservaram a sua essência em meio ao caos eclesiástico.
A partir do século VII, quando nascia na Arábia, o fator islâmico foi adicionado a essa equação. Dois séculos depois já havia se expandido por boa parte da Ásia, pelo Norte da África, chegando à Península Ibérica, herdando a maior parte da Igreja Cristã dessas regiões, gerando uma confrontação que levou às guerras religiosas conhecidas como Cruzadas, que serviu a interesses escusos e consumiu boa parte dos recursos e das idéias dos cristãos de então. Necessário dizer, entretanto, que esses conflitos atendiam a necessidades muito mais políticas e econômicas, sendo a religião apenas o pano de fundo do enfrentamento. Apesar das conquistas, o Islã tinha uma certa tolerância para com cristãos e judeus (os “adeptos do Livro”), como Sevilha e Toledo atestam e o profeta dizia: "E não disputeis com os adeptos do Livro, senão da melhor forma, exceto com os iníquos, dentre eles. Dizei-lhes: cremos no que nos foi revelado, assim no que vos foi revelado antes; nosso Deus e o vosso Deus são Um e a Ele nos submetemos" (Surata 29:46) e "pergunta-lhes: discutireis conosco sobre Deus, apesar de ser nosso e o vosso Senhor? Somos responsáveis por nossas ações assim como vós por vossas, e somos sinceros para com Ele" (Surata 2:139).
A coexistência das três grandes religiões floresceu pacificamente na Espanha moura, enquanto a vitória e unificação da Espanha católica expulsou quem não era cristão. Ainda que este período da História tenha passado à posteridade como a Idade das Trevas, a verdade é que foi uma era de profundo intercâmbio de idéias e produção intelectual, estabelecendo as bases e as condições do mundo moderno em que vivemos. A ciência, tal como a conhecemos hoje, não existiria não fossem as obras pensadas e escritas dentro dos mosteiros, como a lógica aristotélica ressuscitada no Ocidente por São Tomás de Aquino, que, curiosamente, havia se inspirado no trabalho do filósofo muçulmano Averrois, nascido em Córdoba.
No fim do século XV, inaugurou-se o período das grandes navegações e dos descobrimentos de novas terras. O mundo não se resumia mais aos continentes então conhecidos, África, Ásia e Europa. Havia um mundo novo, selvagem, inóspito, desafiador, uma América com povos misteriosos e, muitas vezes, mais evoluídos, a descobrir. Os oceanos domados abriam novas e infinitas possibilidades de comunicação. Aquilo que a Internet representa para os nossos dias, as navegações representaram para aquela época, talvez numa proporção muito maior. O Eldorado dos povos ameríndios foi conquistado (e massacrado) em nome de uma pretensa “catequese”, mas o choque do europeu com o mundo novo o convenceu de que não podia mais explicar o mundo a partir de um mosteiro nem regido a partir da cátedra romana.
Entretanto, a mensagem cristã estava lá, intocada, no meio de tantas crises seculares. O totalitarismo e o autoritarismo não podiam mais segurá-la, e a Reforma Protestante foi a conseqüência natural desse processo, que levou à Contra-Reforma, em que a própria Igreja Romana percebeu a necessidade de reformar-se para não sucumbir. Pela primeira vez, a autoridade de Roma havia sido contestada de forma contundente, e grande parte da sua influência (e de seu poder político) na Europa Ocidental havia se evaporado. Dentro desse período de relativa liberdade intelectual, longe dos tribunais da Inquisição, muito do pensamento moderno foi formado, estabelecendo as bases do que seria a modernidade. Após o forte anti-clericalismo dos séculos XVIII e XIX, do qual a Revolução Francesa e o surgimento do marxismo são os maiores expoentes, a Igreja começou a abrir-se para o mundo, procurando preservar, à sua maneira, aquilo que entendia como essência da mensagem cristã.
O século XX, com as suas Grandes Guerras, suas batalhas ideológicas e a explosão da tecnologia, encontrou um ser humano que, por um lado, estava chocado pela barbárie nazista e pelo holocausto judeu, e, por outro, sedento de novas descobertas e realizações. As novas e múltiplas possibilidades da comunicação e a ansiedade pelo novo geraram um inconformismo com a tradição, aquilo que era considerado “antigo”, e havia ainda a força do utilitarismo, não tão visível, que obrigava (como ainda obriga) o homem a maximizar o seu prazer, o seu lucro, a sua vida, com o mínimo de esforço possível. Os princípios éticos da religião passam a ser vistos como algo ultrapassado, um empecilho para que a modernidade se estabeleça e se desenvolva.
Diante de tais adversários, o cristianismo não pôde ficar imune. O século XX marca a propagação de uma série de tendências doutrinárias e teológicas dentro das Igrejas estabelecidas, em que a ansiedade utilitária por resultados práticos e rápidos parece ser a tônica. Pelo menos em muitos púlpitos, a paciência cristã é vencida pelo imediatismo. A par disso, toda forma de opressão tem que ser vencida. É preciso liberar a mulher, o negro, o pobre, o gay. A queda do muro de Berlim marca o que, para muitos, foi o “fim da História”, a vitória final do capitalismo e do liberalismo. Como não podia ser diferente, boa parte da Igreja cristã, já convulsionada pelo turbilhão de idéias conflitantes do século passado, se torna refém desse movimento, e procura desesperadamente encontrar meios de justificar sua adesão constrangida aos novos ventos utilitários.
Desta forma, modismos são criados, impostos e descartados, trocados pela mais nova tendência. A influência norte-americana, responsável em boa parte pela evangelização protestante do Brasil na virada do século XIX para o XX, se faz notar cada vez mais. Afinal, junto com cada nova tendência vem uma batelada de novos produtos que precisam ser comercializados. Basta uma “palavra profética” dita por alguém - sabe-se lá onde - que bibliotecas inteiras são reduzidas a pó, para que sejam substituídas por novas bibliotecas obviamente compradas a preço de ouro. Discursos conflitantes se repetem e se sucedem, aquilo que o Espírito Santo disse ontem não vale mais para hoje, e é provável que o que vale hoje não valha para amanhã. Se alguém não está na “visão”, está fora dela, e, portanto, deve ser descartado como imprestável. Qualquer semelhança com o consumismo moderno, infelizmente, não é mera coincidência.
Inimigos fictícios de ocasião são criados para justificar a pregação atual. Conforme se desgastam, são trocados por novos personagens e entidades de ficção. O inimigo oficial continua sendo o diabo, é verdade, mas ele recebe novos nomes e se traveste conforme a ocasião se apresenta. O fio condutor do cristianismo, a longa tradição apostólica, mantida inclusive pela Reforma Protestante em seu respeito aos Credos da Igreja Primitiva, precisa ser afastado. O evangelho da graça recebido dos apóstolos não basta mais. Novos inimigos são escolhidos conforme a ocasião. E, ao que parece, o inimigo atual se chama “religiosidade”.
Muitas igrejas hoje entendem que o inimigo a ser batido é a “religiosidade”, ou seja, aqueles que se preocupam em manter viva a essência do evangelho, a graça salvífica e redentora de Nosso Senhor Jesus Cristo, que se revela simples e acessível ao ser humano, seja ele do século III ou do XXI. Não, isso não basta, dizem os novos pregadores do apocalipse. Curiosamente, dizendo-se “apóstolos”, negam a própria tradição apostólica. Dizendo-se resgatadores da verdade evangélica, se valem de novidades rituais e mercadológicas de ocasião. É preciso submeter-se aos seus complicados rituais e repetir os seus chavões, que querem dizer tudo, mas não dizem nada. Já que aquilo que eles chamam de “religiosidade” se preocupa com a essência do evangelho, nela não há lugar para correntes de prosperidade, novos apostolados, estranhas unções e atividades exóticas afins.
Chegamos, portanto, a uma nova fase, uma espécie de “inquisição às avessas”. Se o irmão ou a irmã se preocupam em estudar a Palavra, para conferir nela se os seus líderes estão realmente pregando a Verdade, logo eles são chamados de “religiosos” e devem ser combatidos e exterminados. O mesmo ocorre se eles ousam questionar os seus líderes e se preocupam em manter-se conectados à essência do evangelho, tal como nos foi legado ao longo de 2.000 anos de História da Igreja Cristã, e não se convertem ao novo “evangelho”, finalmente revelado aos líderes iluminados nos últimos 20 anos, os novos gnósticos portadores de uma revelação especial. O inferno não tolera a Sabedoria.
O tristemente curioso nisso tudo é que se esquece facilmente de que Jesus foi um bom religioso. Paulo se orgulhava de ser um fariseu no melhor sentido da palavra (Atos 26:5), hoje tão depreciada. Era aos religiosos que o evangelho era pregado inicialmente (Atos 2:5 e 13:43) nas reuniões festivas e sinagogas, e a palavra “religioso” aqui era usada no melhor sentido, exatamente para designar quem estava interessado em aprender e seguir os ensinamentos do Senhor. Para Tiago, “a religião pura e imaculada para com Deus, o Pai, é esta: Visitar os órfãos e as viúvas nas suas tribulações, e guardar-se da corrupção do mundo” (Tiago 1:27), mas provavelmente ele seria expulso da Igreja se dissesse uma coisa dessas em pleno século XXI, já que a palavra “religião” foi banida de muitos púlpitos por ser a nova inimiga de plantão.
Entretanto, outro fenômeno esvazia ainda mais o discurso da caça aos “religiosos”. Afinal, quem é que define o que é “religiosidade”? Atacá-la também não é outra forma de religião? O também tristemente curioso é que quem inicia essas campanhas anti-religiosas tem uma série de práticas muito mais religiosas, como o próprio nome “campanha” que faz tanto sucesso no meio gospel atual. O discurso anti-religioso é só mais uma sub-espécie (degenerada) do discurso religioso. Simples assim.
É certo que, num futuro próximo, a “religiosidade”, tal como é vista por alguns pregadores, deixará de ser a inimiga e novos espantalhos serão erigidos em seu lugar, uma espécie de “vodus evangélicos” que deverão ser alfinetados de todas as maneiras possíveis até que se esgotem e sejam novamente substituídos pelo mais novo vilão do imaginário “gospel”. Entretanto, o estrago já estará consumado na vida de muitas pessoas que foram atraídas por essa pregação perniciosa, que, conforme Paulo já dizia (2 Coríntios 11:3) e Davi já ensinava (Salmo 51:17), não consegue se contentar com a simplicidade de uma devoção sincera de um coração contrito.
Àqueles que foram tachados de “religiosos”, não resta ou alternativa senão manterem-se fiéis à sã doutrina. No meio de tanta ansiedade gerada pelo consumismo moderno, dentro e fora das igrejas, religiosos de todo o mundo, uni-vos! O melhor a fazer é continuar crendo no que Jesus disse: “Tomai sobre vós o meu jugo, e aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração; e encontrareis descanso para as vossas almas” (Mateus 11:29).
Eles não eram poderosos nem tinham qualquer influência social, cultural ou econômica, mas a mensagem do evangelho, que levaram aos mais distantes rincões do mundo conhecido de então, teve um impacto tal que a História não pôde mais ser contada sem levar em consideração a presença decisiva de um certo carpinteiro nascido em Belém e morto em Jerusalém, que havia ressuscitado e animado seus discípulos a compartilharem o que haviam visto e ouvido. Aqui há mais um perigo de racionalização: imaginar que os discípulos decidiram começar a contar o calendário a partir de Jesus numa reunião qualquer em Jerusalém naqueles dias. Como o próprio evangelho relata (Atos 1:7), eles não estavam preocupados com tempos e estações, mas havia uma necessidade premente de levar as boas novas ao mundo, e eles não mediram riscos nem calcularam o preço dessa empreitada, apenas pregaram o evangelho e deixaram os resultados com Deus.
Nos três séculos seguintes, após muita perseguição, o cristianismo venceu o Império Romano, absorveu-o (ou foi absorvido por ele) e institucionalizou-se. Mais 3 séculos e a invocação de supremacia hierárquica pela Igreja Romana passou a prevalecer, inobstante a resistência da Igreja Oriental (hoje conhecida por “Ortodoxa”), até o cisma do ano 1.054, em que o Papa e o Patriarca de Constantinopla se excomungaram mutuamente. Muito da mensagem inicial do evangelho se havia perdido no meio de tantas intrigas e vaidades, mas o, digamos, “fio condutor” do cristianismo continuava lá, latente e presente na vida e no trabalho de muitos discípulos que preservaram a sua essência em meio ao caos eclesiástico.
A partir do século VII, quando nascia na Arábia, o fator islâmico foi adicionado a essa equação. Dois séculos depois já havia se expandido por boa parte da Ásia, pelo Norte da África, chegando à Península Ibérica, herdando a maior parte da Igreja Cristã dessas regiões, gerando uma confrontação que levou às guerras religiosas conhecidas como Cruzadas, que serviu a interesses escusos e consumiu boa parte dos recursos e das idéias dos cristãos de então. Necessário dizer, entretanto, que esses conflitos atendiam a necessidades muito mais políticas e econômicas, sendo a religião apenas o pano de fundo do enfrentamento. Apesar das conquistas, o Islã tinha uma certa tolerância para com cristãos e judeus (os “adeptos do Livro”), como Sevilha e Toledo atestam e o profeta dizia: "E não disputeis com os adeptos do Livro, senão da melhor forma, exceto com os iníquos, dentre eles. Dizei-lhes: cremos no que nos foi revelado, assim no que vos foi revelado antes; nosso Deus e o vosso Deus são Um e a Ele nos submetemos" (Surata 29:46) e "pergunta-lhes: discutireis conosco sobre Deus, apesar de ser nosso e o vosso Senhor? Somos responsáveis por nossas ações assim como vós por vossas, e somos sinceros para com Ele" (Surata 2:139).
A coexistência das três grandes religiões floresceu pacificamente na Espanha moura, enquanto a vitória e unificação da Espanha católica expulsou quem não era cristão. Ainda que este período da História tenha passado à posteridade como a Idade das Trevas, a verdade é que foi uma era de profundo intercâmbio de idéias e produção intelectual, estabelecendo as bases e as condições do mundo moderno em que vivemos. A ciência, tal como a conhecemos hoje, não existiria não fossem as obras pensadas e escritas dentro dos mosteiros, como a lógica aristotélica ressuscitada no Ocidente por São Tomás de Aquino, que, curiosamente, havia se inspirado no trabalho do filósofo muçulmano Averrois, nascido em Córdoba.
No fim do século XV, inaugurou-se o período das grandes navegações e dos descobrimentos de novas terras. O mundo não se resumia mais aos continentes então conhecidos, África, Ásia e Europa. Havia um mundo novo, selvagem, inóspito, desafiador, uma América com povos misteriosos e, muitas vezes, mais evoluídos, a descobrir. Os oceanos domados abriam novas e infinitas possibilidades de comunicação. Aquilo que a Internet representa para os nossos dias, as navegações representaram para aquela época, talvez numa proporção muito maior. O Eldorado dos povos ameríndios foi conquistado (e massacrado) em nome de uma pretensa “catequese”, mas o choque do europeu com o mundo novo o convenceu de que não podia mais explicar o mundo a partir de um mosteiro nem regido a partir da cátedra romana.
Entretanto, a mensagem cristã estava lá, intocada, no meio de tantas crises seculares. O totalitarismo e o autoritarismo não podiam mais segurá-la, e a Reforma Protestante foi a conseqüência natural desse processo, que levou à Contra-Reforma, em que a própria Igreja Romana percebeu a necessidade de reformar-se para não sucumbir. Pela primeira vez, a autoridade de Roma havia sido contestada de forma contundente, e grande parte da sua influência (e de seu poder político) na Europa Ocidental havia se evaporado. Dentro desse período de relativa liberdade intelectual, longe dos tribunais da Inquisição, muito do pensamento moderno foi formado, estabelecendo as bases do que seria a modernidade. Após o forte anti-clericalismo dos séculos XVIII e XIX, do qual a Revolução Francesa e o surgimento do marxismo são os maiores expoentes, a Igreja começou a abrir-se para o mundo, procurando preservar, à sua maneira, aquilo que entendia como essência da mensagem cristã.
O século XX, com as suas Grandes Guerras, suas batalhas ideológicas e a explosão da tecnologia, encontrou um ser humano que, por um lado, estava chocado pela barbárie nazista e pelo holocausto judeu, e, por outro, sedento de novas descobertas e realizações. As novas e múltiplas possibilidades da comunicação e a ansiedade pelo novo geraram um inconformismo com a tradição, aquilo que era considerado “antigo”, e havia ainda a força do utilitarismo, não tão visível, que obrigava (como ainda obriga) o homem a maximizar o seu prazer, o seu lucro, a sua vida, com o mínimo de esforço possível. Os princípios éticos da religião passam a ser vistos como algo ultrapassado, um empecilho para que a modernidade se estabeleça e se desenvolva.
Diante de tais adversários, o cristianismo não pôde ficar imune. O século XX marca a propagação de uma série de tendências doutrinárias e teológicas dentro das Igrejas estabelecidas, em que a ansiedade utilitária por resultados práticos e rápidos parece ser a tônica. Pelo menos em muitos púlpitos, a paciência cristã é vencida pelo imediatismo. A par disso, toda forma de opressão tem que ser vencida. É preciso liberar a mulher, o negro, o pobre, o gay. A queda do muro de Berlim marca o que, para muitos, foi o “fim da História”, a vitória final do capitalismo e do liberalismo. Como não podia ser diferente, boa parte da Igreja cristã, já convulsionada pelo turbilhão de idéias conflitantes do século passado, se torna refém desse movimento, e procura desesperadamente encontrar meios de justificar sua adesão constrangida aos novos ventos utilitários.
Desta forma, modismos são criados, impostos e descartados, trocados pela mais nova tendência. A influência norte-americana, responsável em boa parte pela evangelização protestante do Brasil na virada do século XIX para o XX, se faz notar cada vez mais. Afinal, junto com cada nova tendência vem uma batelada de novos produtos que precisam ser comercializados. Basta uma “palavra profética” dita por alguém - sabe-se lá onde - que bibliotecas inteiras são reduzidas a pó, para que sejam substituídas por novas bibliotecas obviamente compradas a preço de ouro. Discursos conflitantes se repetem e se sucedem, aquilo que o Espírito Santo disse ontem não vale mais para hoje, e é provável que o que vale hoje não valha para amanhã. Se alguém não está na “visão”, está fora dela, e, portanto, deve ser descartado como imprestável. Qualquer semelhança com o consumismo moderno, infelizmente, não é mera coincidência.
Inimigos fictícios de ocasião são criados para justificar a pregação atual. Conforme se desgastam, são trocados por novos personagens e entidades de ficção. O inimigo oficial continua sendo o diabo, é verdade, mas ele recebe novos nomes e se traveste conforme a ocasião se apresenta. O fio condutor do cristianismo, a longa tradição apostólica, mantida inclusive pela Reforma Protestante em seu respeito aos Credos da Igreja Primitiva, precisa ser afastado. O evangelho da graça recebido dos apóstolos não basta mais. Novos inimigos são escolhidos conforme a ocasião. E, ao que parece, o inimigo atual se chama “religiosidade”.
Muitas igrejas hoje entendem que o inimigo a ser batido é a “religiosidade”, ou seja, aqueles que se preocupam em manter viva a essência do evangelho, a graça salvífica e redentora de Nosso Senhor Jesus Cristo, que se revela simples e acessível ao ser humano, seja ele do século III ou do XXI. Não, isso não basta, dizem os novos pregadores do apocalipse. Curiosamente, dizendo-se “apóstolos”, negam a própria tradição apostólica. Dizendo-se resgatadores da verdade evangélica, se valem de novidades rituais e mercadológicas de ocasião. É preciso submeter-se aos seus complicados rituais e repetir os seus chavões, que querem dizer tudo, mas não dizem nada. Já que aquilo que eles chamam de “religiosidade” se preocupa com a essência do evangelho, nela não há lugar para correntes de prosperidade, novos apostolados, estranhas unções e atividades exóticas afins.
Chegamos, portanto, a uma nova fase, uma espécie de “inquisição às avessas”. Se o irmão ou a irmã se preocupam em estudar a Palavra, para conferir nela se os seus líderes estão realmente pregando a Verdade, logo eles são chamados de “religiosos” e devem ser combatidos e exterminados. O mesmo ocorre se eles ousam questionar os seus líderes e se preocupam em manter-se conectados à essência do evangelho, tal como nos foi legado ao longo de 2.000 anos de História da Igreja Cristã, e não se convertem ao novo “evangelho”, finalmente revelado aos líderes iluminados nos últimos 20 anos, os novos gnósticos portadores de uma revelação especial. O inferno não tolera a Sabedoria.
O tristemente curioso nisso tudo é que se esquece facilmente de que Jesus foi um bom religioso. Paulo se orgulhava de ser um fariseu no melhor sentido da palavra (Atos 26:5), hoje tão depreciada. Era aos religiosos que o evangelho era pregado inicialmente (Atos 2:5 e 13:43) nas reuniões festivas e sinagogas, e a palavra “religioso” aqui era usada no melhor sentido, exatamente para designar quem estava interessado em aprender e seguir os ensinamentos do Senhor. Para Tiago, “a religião pura e imaculada para com Deus, o Pai, é esta: Visitar os órfãos e as viúvas nas suas tribulações, e guardar-se da corrupção do mundo” (Tiago 1:27), mas provavelmente ele seria expulso da Igreja se dissesse uma coisa dessas em pleno século XXI, já que a palavra “religião” foi banida de muitos púlpitos por ser a nova inimiga de plantão.
Entretanto, outro fenômeno esvazia ainda mais o discurso da caça aos “religiosos”. Afinal, quem é que define o que é “religiosidade”? Atacá-la também não é outra forma de religião? O também tristemente curioso é que quem inicia essas campanhas anti-religiosas tem uma série de práticas muito mais religiosas, como o próprio nome “campanha” que faz tanto sucesso no meio gospel atual. O discurso anti-religioso é só mais uma sub-espécie (degenerada) do discurso religioso. Simples assim.
É certo que, num futuro próximo, a “religiosidade”, tal como é vista por alguns pregadores, deixará de ser a inimiga e novos espantalhos serão erigidos em seu lugar, uma espécie de “vodus evangélicos” que deverão ser alfinetados de todas as maneiras possíveis até que se esgotem e sejam novamente substituídos pelo mais novo vilão do imaginário “gospel”. Entretanto, o estrago já estará consumado na vida de muitas pessoas que foram atraídas por essa pregação perniciosa, que, conforme Paulo já dizia (2 Coríntios 11:3) e Davi já ensinava (Salmo 51:17), não consegue se contentar com a simplicidade de uma devoção sincera de um coração contrito.
Àqueles que foram tachados de “religiosos”, não resta ou alternativa senão manterem-se fiéis à sã doutrina. No meio de tanta ansiedade gerada pelo consumismo moderno, dentro e fora das igrejas, religiosos de todo o mundo, uni-vos! O melhor a fazer é continuar crendo no que Jesus disse: “Tomai sobre vós o meu jugo, e aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração; e encontrareis descanso para as vossas almas” (Mateus 11:29).
É melhor ser religioso no melhor sentido do termo, do que atacar a religiosidade, mas viver dela.
P.S.: Recomendo enfaticamente a leitura do artigo "Será que a religião é tão problemática como nós pensamos que é?", do blog Despertai, Bereanos!, do meu amigo e irmão Vítor Grando.