"Retrato de um Viciado quando Jovem" (Companhia das Letras, 2011, 215 págs.) é um livro que se pode chamar de "barra-pesada".
É o relato autobiográfico da descida ao inferno do crack, caminho percorrido pelo autor, Bill Clegg, um bem sucedido agente literário de Nova York que abandona a carreira e os relacionamentos para dedicar-se exclusivamente ao consumo desenfreado da droga.
A temática não é nova - dezenas de livros já foram escritos sobre o mesmo assunto -, mas há algumas diferenças que é importante ressaltar.
Primeiramente, o livro é muito bem escrito, pelo que se percebe que Bill Clegg não fez sucesso como agente literário à toa.
A construção da narrativa é muito boa, as formas verbais são bem colocadas, e o uso frequente do futuro não se torna excessivo nem irritante. Desempenham sempre uma função no texto, e as idas e vindas do tempo do narrador dão liga à história e tornam a leitura ágil e - apesar do tema árido - agradável.
É nessa mescla de passado, presente e futuro que o autor se expõe de maneira escancarada, revelando seu trauma bizarro de infância (não conseguia urinar sem um ritual espasmódico em que geralmente se molhava todo) e seus problemas de relacionamento com a família, em especial seu pai.
De certa forma, a figura paterna permeia toda a narrativa que, uma vez terminada, deixa a sensação de que há segredos ainda inconfessados, mas que podem ser escavados nas entrelinhas do livro.
Chama a atenção também o fato de que, desta vez, não se trata de uma pessoa pobre, à margem da sociedade, que se deixa levar pelo vício, mas de um jovem profissional brilhante, reconhecido pelos seus pares, com dinheiro no banco e uma carreira promissora.
Enquanto o saldo bancário não se esvai, Bill Clegg dá vazão à sua espiral descendente autodestrutiva, em meio a encontros nem tão furtivos com traficantes e garotos de programa (o mais presente, curiosamente, é brasileiro), além do apoio do seu então namorado, Noah, que apesar do término do relacionamento, se revela uma pessoa que jamais o abandonou enquanto ele precisava de socorro.
Aí sobressai outro mérito do livro, que não apela nem se detém na homossexualidade (ou bissexualidade tardia) do autor, mas a coloca como um retalho no pano de fundo soturno que serve de cenário à obra.
A melhor definição que Clegg dá de sua decadência é quando decide deixar sua agência literária e se entregar de corpo e alma ao crack (pp. 31-32):
Uma imagem forte, portanto, que consegue prender o leitor e faz fluir de maneira rápida e interessante toda a narrativa seguinte, como se o sangue que está prestes a jorrar não fosse o de nossa sociedade desajustada, que convive com as drogas da maneira mais natural possível, como se fosse "normal" convivermos com a Cracolândia de São Paulo, por exemplo, como se tivéssemos que aceitar - silenciosos e conformados - esta sangria desatada dos desvalidos, provocada pelo tráfico que faz girar a roda da morte e centraliza os lucros em mãos convenientemente invisíveis.
O jovem rico Bill Clegg transita nesses recantos sombrios de Nova York, hospedando-se em hotéis caros enquanto a sua aparência física e suas roupas ainda não denunciam sua condição de um viciado em estado terminal.
Já no fim de sua turnê mórbida é que hotéis passam a rejeitá-lo, e talvez daí venha algum tipo de consciência que lhe dá forças para sua redenção final, não sem antes tentar o suicídio (surpreendentemente não consumado). "Retrato de um Viciado quando Jovem" é um vislumbre do mundo desconhecido do crack, com outros olhos que não o do noticiário policial e sensacionalista, e sobretudo com o talento observador e literário do autor, uma rara e boa surpresa que surge do (menos que) nada que se tornou sua vida.
Leitura altamente recomendada para todos os que lidam com o problema e também para aqueles que nem imaginam o que se passa em nossas ruas ou com gente muito próxima, mas que querem estar preparados se e quando este monstro bater à sua porta.
Nota: Há um erro de revisão na pág. 32, imperdoável para uma editora do nível da Companhia das Letras: "Ela me olha e hesita um segundo antes de me dizer que há um Marriott há poucos minutos dali". O correto é "A poucos minutos dali".
É o relato autobiográfico da descida ao inferno do crack, caminho percorrido pelo autor, Bill Clegg, um bem sucedido agente literário de Nova York que abandona a carreira e os relacionamentos para dedicar-se exclusivamente ao consumo desenfreado da droga.
A temática não é nova - dezenas de livros já foram escritos sobre o mesmo assunto -, mas há algumas diferenças que é importante ressaltar.
Primeiramente, o livro é muito bem escrito, pelo que se percebe que Bill Clegg não fez sucesso como agente literário à toa.
A construção da narrativa é muito boa, as formas verbais são bem colocadas, e o uso frequente do futuro não se torna excessivo nem irritante. Desempenham sempre uma função no texto, e as idas e vindas do tempo do narrador dão liga à história e tornam a leitura ágil e - apesar do tema árido - agradável.
É nessa mescla de passado, presente e futuro que o autor se expõe de maneira escancarada, revelando seu trauma bizarro de infância (não conseguia urinar sem um ritual espasmódico em que geralmente se molhava todo) e seus problemas de relacionamento com a família, em especial seu pai.
De certa forma, a figura paterna permeia toda a narrativa que, uma vez terminada, deixa a sensação de que há segredos ainda inconfessados, mas que podem ser escavados nas entrelinhas do livro.
Chama a atenção também o fato de que, desta vez, não se trata de uma pessoa pobre, à margem da sociedade, que se deixa levar pelo vício, mas de um jovem profissional brilhante, reconhecido pelos seus pares, com dinheiro no banco e uma carreira promissora.
Enquanto o saldo bancário não se esvai, Bill Clegg dá vazão à sua espiral descendente autodestrutiva, em meio a encontros nem tão furtivos com traficantes e garotos de programa (o mais presente, curiosamente, é brasileiro), além do apoio do seu então namorado, Noah, que apesar do término do relacionamento, se revela uma pessoa que jamais o abandonou enquanto ele precisava de socorro.
Aí sobressai outro mérito do livro, que não apela nem se detém na homossexualidade (ou bissexualidade tardia) do autor, mas a coloca como um retalho no pano de fundo soturno que serve de cenário à obra.
A melhor definição que Clegg dá de sua decadência é quando decide deixar sua agência literária e se entregar de corpo e alma ao crack (pp. 31-32):
Mas eu mesmo não sinto quase nada quando encerro nossa sociedade, nossa agência, minha carreira. Encaro esse nada da mesma forma como quando a gente observa um dedo logo após cortá-lo sem querer com a faca, segundos antes de o sangue brotar. Por um instante, é como estar olhando para o dedo de outra pessoa, como se o corte que você fez não houvesse aberto sua carne, como se o sangue prestes a jorrar não fosse o seu.
Uma imagem forte, portanto, que consegue prender o leitor e faz fluir de maneira rápida e interessante toda a narrativa seguinte, como se o sangue que está prestes a jorrar não fosse o de nossa sociedade desajustada, que convive com as drogas da maneira mais natural possível, como se fosse "normal" convivermos com a Cracolândia de São Paulo, por exemplo, como se tivéssemos que aceitar - silenciosos e conformados - esta sangria desatada dos desvalidos, provocada pelo tráfico que faz girar a roda da morte e centraliza os lucros em mãos convenientemente invisíveis.
O jovem rico Bill Clegg transita nesses recantos sombrios de Nova York, hospedando-se em hotéis caros enquanto a sua aparência física e suas roupas ainda não denunciam sua condição de um viciado em estado terminal.
Já no fim de sua turnê mórbida é que hotéis passam a rejeitá-lo, e talvez daí venha algum tipo de consciência que lhe dá forças para sua redenção final, não sem antes tentar o suicídio (surpreendentemente não consumado). "Retrato de um Viciado quando Jovem" é um vislumbre do mundo desconhecido do crack, com outros olhos que não o do noticiário policial e sensacionalista, e sobretudo com o talento observador e literário do autor, uma rara e boa surpresa que surge do (menos que) nada que se tornou sua vida.
Leitura altamente recomendada para todos os que lidam com o problema e também para aqueles que nem imaginam o que se passa em nossas ruas ou com gente muito próxima, mas que querem estar preparados se e quando este monstro bater à sua porta.
Nota: Há um erro de revisão na pág. 32, imperdoável para uma editora do nível da Companhia das Letras: "Ela me olha e hesita um segundo antes de me dizer que há um Marriott há poucos minutos dali". O correto é "A poucos minutos dali".
Bela indicação amigo. Estuou precisando realmente ler mais livros. E esse entra de cara na minha lista. Muito obrigado. Belo post.
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