Argentina, onde a separação entre Igreja e Estado nunca chegou
Neste país da América do Sul o clero é financiado pelo Estado e a Igreja tratada como agente político, o que tem descredibilizado a instituição, considera Fortunato Mallimaci.
Este facto não é apenas uma formalidade anacrónica, como se poderia pensar, mas tem consequências reais, explica Fortunato Mallimaci, professor da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade de Buenos Aires, e que participou, ao longo dos últimos quatro dias, no congresso que assinala os 100 anos da separação Igreja-Estado em Portugal, realizado na Universidade Católica, em Lisboa.
“Esse estatuto traduz-se numa série de privilégios que a Igreja Católica tem, que não vem das leis, mas sim de um papel que desempenhou enquanto instituição de poder durante muitos anos, sobretudo desde os regimes militares na década de 30 e que foi a forma de política argentina até 1983, quando foi instaurada a democracia”, explica o académico.
“O resultado é que a Igreja é considerada uma instituição legítima para falar de economia, de política e, nas últimas décadas de assuntos sociais como o papel das mulheres, sexualidade e esta ideia que mantém ainda de que a identidade católica e os princípios católicos devem ser os que regem a nação e a pátria, e digo nação e pátria porque são os dois termos que a Igreja utiliza, porque a palavra democracia é, ainda hoje, uma palavra que não entra na sua cultura”, acrescenta Mallimati.
Evidentemente existem outras confissões religiosas naquele país, sobretudo Igrejas protestantes e Evangélicas, que como em toda a América do Sul se encontram em rápida expansão. Pela lei, estas têm liberdade de culto, mas para isso devem primeiro registar-se com o Estado. “Todos os cultos têm de se inscrever, e se não o fizerem não podem exercer publicamente a sua liberdade religiosa. Podem fazê-lo em privado, mas não publicamente. O que acontece é que todos se registam, menos a Igreja Católica, que por sua vez nomeia a pessoa que gere esse registo. Isso faz com que o resto das confissões religiosas se sentem de segunda, subordinados.”
Embora não seja, claramente, defensor deste estado de coisas, Fortunato Mallamati explica porque é que, sociologicamente, a Igreja se deixou colocar nesta posição.
“Muitas vezes falamos de Igreja, Governo, partidos, mas não distinguimos o capital acumulado, de séculos, que existe na Europa e é muito diferente na América Latina, onde os Estados intervêm com força para pressionar a Igreja, daí que a Igreja tenha aprendido, e fixado na memória, que se não está no Estado não tem poder. Daí este esforço quotidiano para poder estar no Estado, não como um partido, mas como um movimento católico para penetrar o Estado. Se há democracia é mais difícil penetrar porque é preciso penetrar nos partidos.”
A sucessão de regimes militares que se tornou norma a partir da década de 30 até 1983 veio piorar a situação, com a Igreja a deixar-se usar para legitimar os governos. Ironicamente, esta cultura de proximidade com regimes militares haveria de ter efeitos inesperados nas décadas de 60o e 70: “A partir de 1930 a Igreja é chamada a legitimar os regimes militares, e em troca recebem privilégios, subsídios, muda-se a linguagem social e mostra-se os militares como o sujeito da evangelização que vai redimir a Argentina. Claro que, na década de 60 e 70, vários destes sacerdotes militarizados passam-se para a guerrilha, para a luta armada, o que leva a 25 sacerdotes, várias religiosas, centenas de freiras, dois bispos assassinados pela Igreja, e isso é algo que a Igreja oficial, até aos dias de hoje, não quer reconhecer”, explica Fortunato Mallimati.
O professor argentino, especialista em sociedade, cultura e religião, assegura que todo este cenário tem contribuído para um grave descrédito da Igreja, sobretudo entre as camadas mais jovens da população.