sábado, 2 de abril de 2011

A autovitimização reveladora de Marco Feliciano

Independentemente das polêmicas em que rotineiramente se mete, ouvir Marco Feliciano é geralmente uma experiência desagradável, seja pela pirotecnia que o cerca (como a do infame "Pastor Pilão"), seja pela verborragia inconsequente que ele tenta fazer com que seus ouvintes a engulam como "divinamente inspirada", no que, diga-se de passagem, não é muito diferente de outros tantos "pastores" que existem por aí. Entretanto, no vídeo abaixo (que eu vi no blog O Proponente), gravado na noite do último dia 31 de março na Assembleia de Deus da Família em Duque de Caxias (RJ), logo após o incidente "tuitesco" no qual o conhecido pop star gospel foi acusado de racismo, Marco Feliciano tenta se defender de seus detratores da maneira habitual, fazendo-se de vitima e alegando, em sua defesa, uma série de argumentos que, contrariamente à sua vontade, terminam sendo "revelações" mais pelas entrelinhas ou pelo que não foi dito. A análise de 7 minutos do discurso de Feliciano nos oferece uma verdadeira aula de como interpretar o que se esconde atrás de (nem tão) belas palavras. Nem sempre o que se quer falar é o que se diz. Vejamos, então:

1) a autovitimização de Feliciano começa com um locutor dizendo que, “por apenas citar trechos bíblicos”, ele está sendo perseguido, quando na verdade o que está sendo criticado - de maneira absolutamente lógica e verossímil - é a interpretação que ele dá (e dogmatiza) a um texto obscuro pré-mosaico de Gênesis 9 (antes da dispensação da Lei a Moisés) sobre a maldição de Noé à descendência de Cão (pelo menos não está mais dizendo que Cão olhou com desejos impuros o corpo nu do pai). Ao transformar essa passagem bíblica em dogma definitivo e insofismável (sem atentar ao seu próprio sofisma) sobre a desgraça hereditária dos africanos, algo que já foi feito e posteriormente renegado por católicos e mórmons, Feliciano nega Pedro que disse que “nenhuma profecia da escritura é de particular interpretação” (2 Pedro 1:20). Ele interpretou, está interpretado! Aliás, esta é uma tendência nefasta no meio evangélico brasileiro: fazer-se de vítima. Somos todos um bando de coitadinhos, ai que dó! Entretanto, quando lemos a Bíblia vemos, por exemplo, que Paulo não negou ser vítima de perseguições, como em 2ª Coríntios 11, mas isso jamais foi motivo para ele partir para um projeto de poder político-ideológico, como é prática rotineira entre os líderes evangélicos tupiniquins. Pelo contrário, isto apenas lhe dava credenciais de apóstolo, a quem Deus dizia que "o meu poder se aperfeiçoa na fraqueza" (2ª Coríntios 12:9). É este o tipo de poder divino que, infelizmente, muita gente não está interessada no Brasil.

2) além do desconhecimento bíblico, a ignorância histórico-geográfica de Feliciano é gritante. Cita Jonas Savimbi, um dos líderes da independência de Angola, como autor de atrocidades, o que é parcialmente verdade, já que a guerra civil angolana foi um festival de horrores de ambos os lados. Feliciano só se esquece de que Savimbi era filho de um severo pastor protestante, segundo o obituário da Folha de S. Paulo, e talvez tenha ficado magoado com a declaração de Savimbi, que disse que os padres tinham melhor formação que os pastores evangélicos. Pelo menos no caso do "pastor" Feliciano, isso salta aos olhos, já que os padres católicos abandonaram há mais de um século essa exegese esdrúxula de Gênesis 9. O pastor-deputado ainda diz que a “África do Sul quase toda é branca”, distorcendo os dados oficiais que mostram que apenas 9,2% da população sul-africana é da etnia caucasiana, e foi a responsável pela vergonhosa política do apartheid que segregou 80% da população negra (e o restante de asiáticos e mestiços). Bem que a sua regiamente paga assessoria na Câmara dos Deputados podia fazer uma consulta rápida à Wikipedia para municiá-lo com referências corretas.

3) O auditório ao qual Feliciano se dirige é composto maciçamente por afrobrasileiros, que compõem a maior parcela dos evangélicos pentecostais no Brasil, como mostrou a ótima análise de Marco Davi de Oliveira no livro “A Religião Mais Negra do Brasil” (disponível no Google Livros). Diante deles, o pastor-deputado pratica uma triste forma de auto-racismo, já que diz ter “o cabelo ruim” e se refere aos “irmãos que são mais queimadinhos de sol”. Mesmo se dizendo descendente de africanos, utiliza depreciação e eufemismo típicos de racistas. É mais um caso típico de "entrelinhas racistas", a que já nos referimos 2 anos atrás neste blog, episódio agravado pelo fato do emissor deste discurso ser afrodescendente, o que revela o quanto uma ideologia hegemônica pode massacrar o indivíduo, a ponto de fazê-lo negar a própria origem, ainda que ela seja visível a olho nu.

4) Houvesse alguém com autoridade espiritual verdadeira naquela igreja (ou que não fosse tímido para exercê-la), certamente teria respondido à provocação de Marco Feliciano, quando este pergunta se “tem alguém aqui que acha que o que eu falei é preconceito?”. É visível o desconforto de alguns ouvintes durante a vergonhosa fala dele. Aliás, precisamos de mais crentes que tenham autoridade espiritual para fazer como Paulo fez diante de Pedro, “resistindo-lhe na cara” quando este último passou a discriminar os gentios depois que Tiago e outros judeus haviam chegado (Gálatas 2:11-15). Que bênção teria sido se alguém tivesse resistido na cara a Feliciano naquela igreja e mostrado o quanto ele também tem sido discriminador.

5) Feliciano diz que “ainda vamos gerar um presidente da república crente cheio do Espírito Santo, que vai falar línguas estranhas naquela tribuna...”. Aqui fica claro que o projeto que se esconde por trás dessas declarações atrapalhadas do deputado é – na verdade – um projeto de poder político-ideológico que não tem nada a ver com o poder do Espírito Santo derramado do céu. A exemplo do que ocorreu nas eleições presidenciais de 2002, com Anthony Garotinho, muito provavelmente teremos um candidato “evangélico” nas próximas eleições de 2014, e quem seria ele? Ao que parece, Marco Feliciano não só provocou como está aproveitando toda esta polêmica para se lançar candidato a Presidente da República, e, para tanto, precisa se colocar no terreno do ativismo antigay cujo “rei” até o momento é o também “pastor” Silas Malafaia, com o qual Feliciano reconhece não se dar bem ao dizer que “nós dois, mesmo não concordando em alguns pontos, começamos a sofrer juntos agora...”. Ora, a inimizade de ambos é pública e notória, e foi um dos assuntos comentados no encontro de Marco Feliciano com Caio Fábio, que também teve estrondosa repercussão. A dúvida que fica é: estaria Malafaia de acordo com esse auê todo de Feliciano? Ou Malafaia aproveitará a influência que tem no Congresso para detonar Feliciano mediante um processo de cassação? Afinal, saberemos se eles estão juntos ou separados, e que tipo de união ou divisão é esta. Aguardemos os próximos capítulos, então, tristes e envergonhados por esses homens que se dizem “evangélicos”. Talvez estejamos testemunhando o fim de uma era na igreja evangélica brasileira, em que pastores e deputados brigam para ver quem vai levar o estandarte (o "pendão", para os antigos) não mais da cruz de Cristo, mas da marcha CONTRA os gays. E na pancadaria pra ter esse estranho prazer, amigo, vale tudo da cintura pra baixo.

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