terça-feira, 5 de maio de 2009

As crônicas de Marvin - 08

Rivais

Eu realmente me surpreendi com aquela aparição. O que o Estêvão estaria fazendo por aqui?
- Olá, Marvin. Eu recentemente consegui me transferir para Goiânia, estamos finalmente na mesma Congregação...
Olhei para ele com certa desconfiança, dizendo:
- Transferir? Como assim, por quê você se transferiu para cá?
- Ora Marvin, você não sabe mesmo? Nós tínhamos um plano, que você não cumpriu... Até o momento, eu estava confiando em você... Mas agora prefiro acompanhar tudo de perto, para não sair mais nada do rumo que nós havíamos planejado...
Não podíamos continuar aquela conversa do lado de fora. Convidei-o para entrar, convite que ele aceitou prontamente, enquanto estralava o pescoço.
- Hehe, você não mudou nada, não é? Continua caminhando como se fosse o Mr. Bean... O povo deve te achar muito esquisito, não?
- Na verdade já me disseram que eu sou um exemplo de como Jeová pode escolher até os esquisitos...
Estêvão caiu na gargalhada... Eu nem sei por que contei isto para ele, afinal, ele pegaria no meu pé por causa disto durante todo o mês. Ao entrarmos, ele já foi continuando sua conversa...
- Pois bem, resolvi viver aqui, para mantermos mais o foco de nossas atividades. Não é só você que tem o direito de se divertir, sabia? Se eu não fosse médico e estivesse disposto a te ajudar, seu plano jamais teria dado certo.
- Sim, eu sei. Mas se eu não conhecesse tanto de eletrônica, principalmente aplicada à medicina, você também não poderia ter feito nada.
- Claro. Por isto é que é importante agirmos juntos. Eu gostaria que você me apresentasse à Congregação amanhã.
- Hummmm, está bem então. Parece que não tenho muita escolha não, não é mesmo?
E não tinha. Estêvão estava mesmo querendo acompanhar minhas ações de perto. Bem, eu não tinha nada contra aquilo.
Terminamos nossa conversa, e ele se despediu. Esperei que ele se afastasse, peguei minha carteira e a mochila que estava em meu quarto e saí. Passei na farmácia primeiro, e perguntei ao atendente, mostrando uma lista:
- Eu estou precisando destes dois remédios aqui. Você os possui?
Com os remédios em mãos, me dirigi rapidamente ao supermercado. Tive o cuidado de escolher um supermercado em um bairro diferente, para não ser visto por ninguém. A moça do caixa ficou um pouco assustada quando me viu comprando 4 pacotes de papel higiênico, àquela hora da noite. Eu nem fiz muita questão disto, precisava mesmo era comprar aquilo e voltar logo para casa. Guardei minhas compras na mochila e voltei imediatamente. Felizmente não fui visto por ninguém.
Não foi muito fácil não. Primeiro, desenrolar todo aquele papel higiênico deu muito trabalho. Fiz com cuidado 4 bolas grandes de papel higiênico com os pacotes que comprei. Preparei as 2 cápsulas de plástico, que aguardavam os ingredientes finais. As boas lembranças me vieram à mente ao fazer isto. Certamente aquele tempo de escola me ajudou muito.
A madrugada estava fria e tranquila, como as madrugadas de setembro. Não havia lua aquele dia, para minha sorte, então a noite estava bem mais escura que o normal. O frio segurava qualquer alma viva em suas casas, menos um vulto negro, encapuzado. Eu era quase um ninja, se não fosse pela falta de conhecimentos em ninjutsu...
Entrei por uma das portas do salão do Reino, tentando fazer o mínimo de barulho possível. Por segurança, deixei do lado de fora um aparelho que miava aleatoriamente, para o caso de algum vizinho acordar à noite.
A operação levou umas 2 horas, mas tudo foi concluído com sucesso. Finalmente poderia voltar para casa, e descansar, para as aventuras do outro dia.

2 de setembro de 2051, 14:00

Naquele dia eu tinha dormido até mais tarde. Não pude dormir além das 11, já que o Estêvão me ligou.
- Olá, Marvin...
- Nhamm... Alô, Estêvão... Por quê você está me ligando tão cedo?
- Cedo? São 11 horas!!!
- Já?
- Sim. Você não vai encontrar as irmãs para iniciar as visitas domiciliares às 14?
- Humm, é mesmo... Ei, como você sabe disto?
- Estive conversando com os anciãos. Eu gostaria de participar, estou te ligando para avisar. Vocês marcaram na porta do salão do Reino?
- Hummm, sim. Mas...
- Tudo bem, então te encontro por lá. Até mais.
- Estêvão? Alô?? Droga, ele desligou...
Três horas depois estávamos os 4 no salão do Reino. Eu fui o último a chegar. Como era de se esperar, o Estêvão já estava mantendo uma animada conversa com a Priscila, enquanto que a Amanda apenas ouvia.
- Puxa, finalmente você chegou, dorminhoco. – Dizia Estêvão, com um sorriso no rosto.
- Bem, nós marcamos às 14:00 em ponto, não foi?
- Hahaha, está certo, Marvin. Só estou pegando no seu pé. Bem, acho interessante irmos em duplas hoje, para as irmãs pegarem o jeito. Façamos assim, eu vou com a irmã Priscila, e você com a irmã Amanda.
O sem vergonha chegou ontem, e já está mandando em tudo...
- Mas por quê?
- Ora, irmão... Com a conversa que tivemos enquanto te esperávamos, eu acabei conhecendo melhor a irmã Priscila. Tenho certeza que você não terá problemas com a irmã Amanda.
Ele é muito esperto... O pior é que não posso dizer nada contra isto, poderia levantar suspeitas.
- Ah, Marvin, não faça esta cara. É por causa de feições como esta que as pessoas te acham esquisito. A irmã aqui mesmo pensava assim, não é irmã?
A Priscila me olhou com uma cara meio tímida, e respondeu hesitante:
- Hummm, foi...
- Hahahaha, pois então. Bem, então está definido. Vamos, irmã, temos muito o que fazer ainda...
Foram então os dois. A irmã Priscila ainda olhava para trás, despedindo de nós. Olhava como se quisesse ficar ainda. O que pude fazer foi apenas observar, enquanto a palavra esquisito ecoava em minha mente...
- Hummm, irmão?
De repente, me lembrei que a irmã Amanda ainda estava por ali.
- Ah, irmã... Me desculpe, nós temos que ir também, não?
- Sim...
Então fomos também. Começamos a nos dirigir à casa da irmã Ana Clara. Decidimos que ali seria um bom começo, já que nós dois a conhecíamos bem. Subíamos uma rua íngreme, quando a irmã Amanda acabou quebrando o silêncio...
- Hummm, irmão, algo está te incomodando? Seria a conversa com o irmão Estêvão, agora há pouco?
- O irmão Estêvão não sabe o que diz, irmã... Não tem nada me incomodando não...
Me lembrei do “esquisito”, e de como o Estêvão só tem curtido com minha cara desde que chegou. Aquilo ficou martelando em minha cabeça...
- Na verdade, irmã... Me incomodou um pouco o fato dele me chamar de esquisito...
- Ah, entendo...
Ela fez uma breve pausa, depois continuou...
- Humm, de certa forma irmão, acho que as pessoas pensam o mesmo de mim. E-eu geralmente não converso muito, não sou “popular”. Toda pessoa tímida acaba sendo conhecida assim...
Realmente, ela de certa forma é igual a mim.
- Isto me incomoda às vezes também... Mas então, eu chego à conclusão que não há motivos para se incomodar com isto...
- Não há? Por que?
- B-Bem, quando uma pessoa diz que você é esquisito, na verdade está dizendo que você é muito diferente dele... Isto só poderia ser levado para o lado negativo, se você considerar ele como um padrão de normalidade ou de qualidade...
De fato... O que ela me disse me fez sorrir um pouco...
- Para mim, irmão... Você não é... esquisito... Humm... Você é a pessoa mais inteligente que eu conheço. Você sabe medir suas palavras, você sabe ser gentil, se preocupa com os outros e não se vê acima de ninguém... E-Eu acho que agora que você ocupa uma posição de tanta responsabilidade será o momento certo para todos perceberem todas estas qualidades suas, e poderão perceber o quanto estavam enganados a seu respeito...
Ninguém nunca me elogiou assim... Fiquei surpreso com tais palavras, imediatamente olhando com aquela cara de “como é que é?” para ela. Não pude deixar de reparar que ela ficou vermelha na mesma hora. Ou ela já estava vermelha?
Estávamos entrando na rua da casa da dona Ana Clara. Algumas crianças brincavam de bola na calçada, enquanto outras corriam para se esconder, provavelmente outra brincadeira.
“Perceber que estavam enganados”? É difícil mudar pessoas. Eu nunca consegui mudar ninguém. As lembranças de minhas tentativas tornaram a me entristecer...
- Irmã, acho difícil mudarem as opiniões que eles possuem sobre mim. Você não acha difícil mudar as pessoas? Já muitas vezes quis mudar o mundo, em vão...
Por um instante ela ficou calada, pensando, com uma carinha de tristeza também.
- Eu sei... Mas se você quer mudar o mundo, você começar com você mesmo. O mundo é muito grande, e cada pessoa nele tem suas próprias vontades, seus próprios planos. Eventualmente, você encontrará alguém que não quer ser mudado, ou talvez pior, alguém que quer te mudar, por que também quer mudar o mundo. Planos de mudar o mundo geralmente falham no momento que são idealizados...
Depois de uma curta pausa, ela completou:
- Não há angústia maior em não conseguir mudar aqueles que você mais ama...
- Irmã?
- Por muito tempo eu quis que meu pai mudasse... Que ele parasse de beber, e que pudesse se dedicar mais à nossa família... Mas ele gosta de beber, e ignora tudo que nós dizemos para ele... Nós é que somos idiotas, por não beber. Infelizmente ele só vai mudar, quando algo muito grave acontecer, e ele perceber que aquilo que ele está fazendo o vai levar para o fundo do poço...
Interrompemos o assunto, e finalmente paramos. Chegávamos à casa da irmã Ana Clara.

2 de setembro de 2051, 19:00

Era chegada a reunião... Hora de deixar um pouco os pensamentos tristes gerados durante a tarde, e me concentrar em coisas mais alegres.
Quando cheguei no salão do Reino, havia alguns irmãos já tomando água. Já tinha avisado ao Estêvão que a água poderia não ser boa naquele dia, mensagem que ele entendeu imediatamente. Não perdi tempo, fui até a irmã Amanda, e lhe dei uma garrafinha de água mineral.
- Irmã, é para não perder muito tempo indo beber água.
- Ah, obrigado, irmão.
Então fui até a irmã Priscila, e fiz o mesmo.
- Irmã, esta aqui é para que você não perca muito tempo indo beber água.
- Puxa, muito obrigado, irmão... Ei, irmão, eu queria te dizer uma coisa...
- Hum, sim? O que é?
- Bem, eu gostaria de te pedir desculpas por hoje à tarde. Na verdade, eu preferia ter ido com vocês... Gosto do irmão Estêvão, mas eu prefiro você...
- Oh, puxa, nem sei o que dizer...
- Bem, se tiver alguma coisa para dizer, só não o diga para o irmão Estêvão, hahahaha...
Então iniciei a reunião, chamando a todos:
- Irmãos, gostaria de anunciar algo muito importante hoje, então prestemos mais que a devida atenção. Eis que nosso irmão Estêvão, que compartilha comigo a responsabilidade de ser uma das testemunhas do Apocalipse, se mudou para esta congregação. A partir de hoje, estaremos agindo juntos aqui.
Todos se espantaram com tal declaração. Agora, aquela congregação pequena possuía duas figuras de alta importância. Pedi então que todos mudassem de posição, finalmente começando a reunião. A música de abertura foi linda, a letra era mais ou menos assim:

Eu te louvarei
Enquanto eu viver
Meu louvor estará para sempre
Em meu coração – meu coração
Levantarei minhas mãos
Enquanto eu louvar
Para não mais pecar contra ti
Me consagrarei

Faz-me um vaso
Faz-me feliz
Meu prazer, meu prazer
È cumprir, é cumprir
O que diz.


Houve até quem ensaiou uma dança, mas nada digno da Broadway ainda. Tudo em clima de alegria. Logo o discurso público começou. E tudo que eu tinha que fazer é esperar. No mínimo, uns 40 minutos, foi o que me disseram.
Bem, era um discurso sobre o fim do atual sistema de coisas, algo que estava se tornando corriqueiro, principalmente depois das nomeações minha e do Estêvão.
- O fim está muito perto, irmãos... – dizia o palestrante.
Enquanto isto, eu prestava atenção aos irmãos... Depois de uns 50 minutos, quase no final do discurso, um dos irmãos levanta-se correndo e vai até o banheiro, se trancando por lá. ‘Beleza, já começou’, pensei. Logo outros irmãos começaram a ir ao banheiro e formar duas filas por ali, uma no banheiro masculino e outra no feminino. A coisa começou a esquentar quando o irmão que estava lá dentro abriu a porta e cochichou algo para o primeiro da fila. Logo o irmão Marcos estava lá na porta, querendo saber o que havia acontecido. Todos na congregação se assustaram, quando aos berros, o irmão dizia:
- PUTA QUE PARIU, IRMÃO!!! EU VOU TER QUE LAVAR ESTE BANHEIRO AMANHÃ, DE TERNO, E COM UMA ESCOVA DE DENTES!!!!!!!
Ele abriu a porta e entrou de uma vez, para acabar escorregando na água e caindo de bunda no chão. O vaso estava entupido!! Não sei se foi mais engraçado o fato dele cair, ou o fato de algo ficar carimbado nas calças dele.
O irmão Jonas então correu lá para ver o que estava acontecendo... O pessoal da fila estava se contorcendo, enquanto o irmão desesperado só colocava a cara pra fora, tentando acalmar todo mundo. Só pra por moral, eu me levantei e disse:
- Irmão, olha o palavreado. Evitemos hábitos impuros.
Ele não me escutou... Estava tão preocupado com o que estava acontecendo dentro do banheiro que não me deu ouvidos... Logo o resultado no banheiro das mulheres pôde ser visto, então os dois anciãos ficaram mais desesperados. Quem estava fora ou estava se borrando, já que o purgante que eu coloquei na água era realmente forte, ou estava correndo para casa, pedindo desculpas para todos por sair mais cedo. Depois eu ouvi dizer que mais da metade deles não conseguiu chegar em casa a tempo. Nem era preciso dizer que eu tinha conseguido interromper a reunião, não é?
Logo, a tarefa de tentar desentupir os vasos começou. Um ancião em cada banheiro tentava fazer o possível para deixá-los pelo menos utilizaveis. ‘É agora’, pensei. Peguei meu celular, e através de um programa que fiz para ele, enviei o comando para as duas cápsulas que coloquei lá dentro.
“Bummmmmmmm”... Foi o barulho que saiu, e que assustou todos os irmãos... O Marcos já saiu de lá xingando:
- Mas que... MERRRRRRRRRDA!!!!
Muita merda, irmão. A explosão foi nostálgica... Bons tempos aqueles quando eu fazia isto na escola técnica... Eles nunca me descobriram naquele tempo, pois eu tinha aperfeiçoado minhas técnicas. E assim como naquela época, eu conseguia sujar bastante o banheiro, desde o chão até o teto. Bastava entupir o vaso com uma parede de papel higiênico, colocar a cápsula lá dentro, e depois colocar a segunda parede de papel. Com meu comando, as cápsulas imediatamente liberaram o seu conteúdo na água, que através de uma reação, começam a efervecer... Assim, a pressão entre as duas paredes de papel higiênico aumenta bastante, a ponto de forçar as duas paredes, uma para cada lado. Tem que se ter muitos anos de experiência para causar a explosão, sem destruir o vaso, como alguns diziam que acontecia.
- O diabo é muito sujo! - Falou um dos irmãos.
- É, e ele está usando nosso banheiro. – completei com ironia...
Enquanto o Estêvão saia para rir (ele tinha acabado de descobrir o significado de humor escatológico), eu cancelava a reunião daquele dia. Que pena, não conseguimos estudar a Sentinela naquele dia... E os anciãos ficaram um bom tempo para limpar o banheiro no domingo, com suas escovas de dentes...

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