Leitura anterior: Eclesiastes - capítulo 8
O capítulo 9 de Eclesiastes começa ainda com o eco do último versículo do capítulo 8, ou seja, "o homem não pode compreender a obra que se faz debaixo do sol".
O capítulo 9 de Eclesiastes começa ainda com o eco do último versículo do capítulo 8, ou seja, "o homem não pode compreender a obra que se faz debaixo do sol".
O discurso do Pregador está perto do fim, e ele começa a preparar o leitor/ouvinte para a conclusão, não sem antes repetir alguns temas que já havia dito, e enfatizar a questão da morte, do tempo e do acaso, principalmente.
No primeiro versículo, há um jogo interessante entre as palavras "amor" e "ódio", que provoca uma certa controvérsia, sobre se ambos se referem a Deus ou ao homem.
Ambas as traduções são possíveis, como se percebe das diferentes versões em português:
"os seus feitos estão nas mãos de Deus; e, se é amor ou se é ódio que está à sua espera, não o sabe o homem" (Revista e Atualizada)
"O homem não conhece nem o amor nem o ódio; tudo isto lhe está pela frente" (Tradução Ecumênica)
"O que os espera, seja amor ou ódio, ninguém sabe" (NVI)
"o homem não sabe se Deus o ama ou odeia" (Bíblia do Peregrino)
"O homem não conhece o amor nem o ódio de tudo o que espera" (Bíblia de Jerusalém)
"Deus controla o que as pessoas sábias e honestas fazem e até o amor e o ódio delas" (NTLH)
"Deus controla o que as pessoas sábias e honestas fazem e até o amor e o ódio delas" (NTLH)
O versículo, a meu ver, deve ser entendido dentro do seu contexto, que inclui o último versículo do capítulo 8, ou seja, realmente o homem não sabe o que lhe está reservado nesta vida, já que ele não é dono de si mesmo, nem do seu destino, e mesmo as situações sobre as quais ele imagina ter controle geralmente são as que mais lhes escapam das mãos.
As palavras "amor" e "ódio" podem também significar, respectivamente, "aceitação" ou "rejeição" da parte de Deus, o que, de alguma maneira, se relaciona com o v. 7, em que o Pregador diz que o homem deve viver gostosamente, "pois Deus já de antemão se agrada das suas obras".
Mais do que propriamente a predestinação, Salomão fala aqui da providência divina, de uma forma que a graça de Deus está em destaque.
É interessante perceber que o próprio Calvino usa esses versículos para refutar o dogma escolástico de que a fé é uma conjectura moral, ou seja, a pessoa teria certeza de que tem fé em Deus se se sente em paz com Deus pelas obras que realiza:
As palavras "amor" e "ódio" podem também significar, respectivamente, "aceitação" ou "rejeição" da parte de Deus, o que, de alguma maneira, se relaciona com o v. 7, em que o Pregador diz que o homem deve viver gostosamente, "pois Deus já de antemão se agrada das suas obras".
Mais do que propriamente a predestinação, Salomão fala aqui da providência divina, de uma forma que a graça de Deus está em destaque.
É interessante perceber que o próprio Calvino usa esses versículos para refutar o dogma escolástico de que a fé é uma conjectura moral, ou seja, a pessoa teria certeza de que tem fé em Deus se se sente em paz com Deus pelas obras que realiza:
38. IMPROCEDÊNCIA DO DOGMA ESCOLÁSTICO DE QUE A CERTEZA DE FÉ É UMA CONJETURA MORAL.
Daqui se pode ajuizar quão pernicioso seja esse dogma escolástico de que não podemos estabelecer de outro modo quanto à graça de Deus para conosco do que por uma conjetura moral, segundo cada um não se reputa indigno dela. Certamente, se houvéssemos de julgar por nossas obras que afeto Deus nos tem, confesso que não o podemos compreender nem pela menor conjetura do mundo. Como, porém, deve a fé responder à simples e graciosa promessa, não se deixa nenhuma possibilidade de dúvidas. Ora, pergunto, de que confiança seremos armados, se raciocinarmos que Deus nos é propício com esta condição: desde que a pureza de nossa vida assim o mereça? Entretanto, uma vez que, para tratar destas coisas destinamos seu devido lugar, por ora não iremos mais longe, sobretudo vendo que nada pode haver mais contrário à fé do que a conjetura ou qualquer outro sentimento que tenha algo parecido com a dúvida ou incerteza.E para isso torcem mui abusivamente o testemunho de Eclesiastes, que por vezes, têm nos lábios: "Ninguém sabe se, porventura, seja digno de ódio ou de amor" [Ec 9:1]. Ora, deixando de parte que esta passagem foi incorretamente traduzida na versão corrente, contudo, não pode ser desconhecido até mesmo ás próprias crianças o que Salomão tem em mente com palavras desta natureza, isto é, se alguém queira julgar do presente estado das coisas, as quais delas Deus persegue com ódio, as quais delas abraça em amor, em vão labora ele e se atormenta com nenhum proveito, uma vez que "tudo sobrevém igualmente ao justo e ao ímpio, ao que oferece sacrifícios e ao que não os oferece" [Ec 9.2]. Do quê se segue que Deus não atesta perpetuamente seu amor para com aqueles a quem tudo faz suceder prosperamente, nem manifesta sempre seu ódio para com aqueles a quem aflige.E Salomão faz isso para comprovar a fatuidade do engenho humano, quando em coisas sumamente necessárias de se conhecer ele se vê dominado de tão grande obtusidade. Como havia escrito pouco antes [Ec 3.19], não se pode discernir em que a alma do homem difira da alma do animal, visto que parece morrer da mesma forma. Se alguém daí queira inferir que a convicção que temos acerca da imortalidade das almas se apóia em mera conjetura, porventura com razão não será tido por insano? Portanto, porventura são dotados de são juízo esses que, porque não se pode alcançar nenhuma conclusão da percepção sensória das coisas presentes, concluem que nenhuma certeza existe da graça de Deus?
(CALVINO, João. As Institutas. Edição Clássica. São Paulo: Cultura Cristã, 2006. 2. ed. vol. 3, cap. II, p. 63)
Nem "reciclados" somos, já que tudo jaz no esquecimento (v. 5). De nada adiantou amar, odiar, invejar, pois a vida se foi e tudo foi em vão (v. 6).
Palavras duras, sem dúvida, se o Pregador tivesse parado por aí. Entretanto, ele realmente crê que vale a pena viver (v. 7), que a vida é melhor do que o nada (v. 9).
Ele não está pregando uma alienação total, um desânimo generalizado, um distanciamento da vida, um nihilismo desenfreado.
Tudo o que vier às nossas mãos, façamos conforme as nossas forças (v. 10), até porque, no nosso destino final, nada disso existirá. Pode-se perceber ecos desta lição nas palavras de Jesus:
João 12:35 Disse-lhes então Jesus: Ainda por um pouco de tempo a luz está entre vós. Andai enquanto tendes a luz, para que as trevas não vos apanhem; pois quem anda nas trevas não sabe para onde vai.
E nas de Paulo:
Gálatas 6:10 Então, enquanto temos oportunidade, façamos bem a todos, mas principalmente aos domésticos da fé.
Já Derek Kidner, no seu livro "A Mensagem de Eclesiastes" (Ed. ABU, 2ª ed., 1998, pp. 69-70), vê ecos de culturas passadas, como o Gilgamesh, neste trecho de Eclesiastes:
Há notáveis semelhanças entre esta passagem (9:7-10) e algumas linhas da Epopéia de Gilgamesh [placa X], um poema acadiano que data do tempo de Abraão ou antes e que era muito conhecido no mundo antigo. Neste ponto da história o herói, impelido pela morte de seu grande amigo a ir em busca da imortalidade, chega ao jardim dos deuses. Ali a jovem Siduri, a fabricante de vinhos, lhe fala:
"Gilgamesh, por onde você está vagueando?
A vida que está procurando, você nunca encontrará,
Pois os deuses, quando criaram o homem, deram-lhe
A morte como quinhão, e a vida
Ficou retida nas mãos deles.
Gilgamesh, encha o estômago!
Alegre-se dia e noite,
Encha os seus dias de alegria,
Dance e faça música de dia e de noite.
Use roupas limpas,
Tome banho e lave a cabeça.
Olhe para o filho que lhe segura a mão,
E que sua esposa se deleite com o seu abraço.
Apenas essas coisas dizem respeito ao homem.
"Este não é o único lugar onde se encontram sentimentos deste tipo. A canção de um banquete fúnebre egípcio, talvez mais ou menos contemporâneo de Gilgamesh, contém o seguinte conselho, após advertir os vivos acerca do que terão de enfrentar:
"Realiza os teus desejos enquanto estiveres vivo. Unge a tua cabeça com mirra, veste-te de linho fino, e unge-te...., e não aborreças o teu coração, até que chegue o dia da lamentação."
Após destacar a questão da morte, o Pregador segue dizendo que "tudo depende do tempo e do acaso" (v. 11), o que não deixa de ser uma recordação do que já havia dito em Eclesiastes 3, no célebre texto do "há tempo para tudo".
Afinal, não sabemos a nossa hora de chegar nem de partir (v. 12). A maneira como decidimos sair do portão de casa pode definir a nossa vida (ou a nossa morte) de maneira totalmente inesperada.
A nossa vida pode depender do simples fato de decidirmos sair pela direita ou pela esquerda, pelo portão de casa, numa linda manhã.
A morte nos ronda todos os dias, conforme percebemos por uma simples passada de olhos nas manchetes dos jornais, com tantas vítimas do acaso, das balas perdidas, dos diques que se rompem, das pontes e dos meteoritos que caem.
Já repararam como, às vezes, tudo dá errado? Muitas vezes, eu tive que sair mais tarde de casa, ou pegar a estrada atrasado, porque simplesmente algo (ou uma sucessão de "acasos") deu errado.
Com o tempo, eu percebi que aquilo muito bem podia ser Deus simplesmente me protegendo de um acaso pior, e eu passei a relaxar depois desta percepção das coisas.
Mais do que a Lei de Murphy, existe uma providência divina agindo nas nossas vidas, de todos nós, e esta providência às vezes se parece mais com um agente secreto que espreita os acontecimentos mais banais e corriqueiros do nosso dia-a-dia, mas está sempre ali presente, batendo o ponto, influindo nos mínimos detalhes para o nosso bem, mesmo que o aparente mal nos aconteça.
No final do capítulo 9, o Pregador conta uma pequena parábola, para exaltar a sabedoria (v. 13). Ele conta a história de uma pequena cidade, cercada por um grande rei (v. 14), em que um homem pobre, mas sábio, a livrou (v. 15), mas logo caiu no esquecimento do povo que havia salvo (v. 16).
Esta é uma parábola com vários significados, mas o que mais salta aos olhos, a meu ver, é a questão da gratidão e da ingratidão.
No v. 7, já vimos que havia uma espécie de gratidão de Deus para com os seus servos, sem nenhuma razão específica, apenas pela graça dEle mesmo.
Aqui vemos que o povo daquela cidade deveria ser eternamente grato ao homem pobre, mas eles logo se esqueceram do benefício que este lhes havia feito.
De fato, não devemos esperar gratidão dos homens, porque a regra é a ingratidão.
Da mesma maneira, é esta regra que vigora no relacionamento dos homens para com Deus, como o próprio Jesus teve ocasião de vivenciar e delatar quando curou 10 leprosos (Lucas 17:11-19), e apenas um (ainda mais samaritano, ou seja, um pária para a época e contexto social em que vivia) retornou para lhe agradecer.
Isto depois do Mestre ter dito que o senhor não precisava agradecer ao servo por este ter feito o que lhe havia sido ordenado (Lucas 17:9).
Este é um claro contraste com Eclesiastes 9:7, que é muito mais existencialista, no sentido de nos mostrar a importância de viver uma vida bem vivida, com todos os seus bens e males, e nos lembrarmos sempre de agradecer a Deus pelo dom da vida que Ele graciosamente nos deu.
Afinal, não sabemos a nossa hora de chegar nem de partir (v. 12). A maneira como decidimos sair do portão de casa pode definir a nossa vida (ou a nossa morte) de maneira totalmente inesperada.
A nossa vida pode depender do simples fato de decidirmos sair pela direita ou pela esquerda, pelo portão de casa, numa linda manhã.
A morte nos ronda todos os dias, conforme percebemos por uma simples passada de olhos nas manchetes dos jornais, com tantas vítimas do acaso, das balas perdidas, dos diques que se rompem, das pontes e dos meteoritos que caem.
Já repararam como, às vezes, tudo dá errado? Muitas vezes, eu tive que sair mais tarde de casa, ou pegar a estrada atrasado, porque simplesmente algo (ou uma sucessão de "acasos") deu errado.
Com o tempo, eu percebi que aquilo muito bem podia ser Deus simplesmente me protegendo de um acaso pior, e eu passei a relaxar depois desta percepção das coisas.
Mais do que a Lei de Murphy, existe uma providência divina agindo nas nossas vidas, de todos nós, e esta providência às vezes se parece mais com um agente secreto que espreita os acontecimentos mais banais e corriqueiros do nosso dia-a-dia, mas está sempre ali presente, batendo o ponto, influindo nos mínimos detalhes para o nosso bem, mesmo que o aparente mal nos aconteça.
No final do capítulo 9, o Pregador conta uma pequena parábola, para exaltar a sabedoria (v. 13). Ele conta a história de uma pequena cidade, cercada por um grande rei (v. 14), em que um homem pobre, mas sábio, a livrou (v. 15), mas logo caiu no esquecimento do povo que havia salvo (v. 16).
Esta é uma parábola com vários significados, mas o que mais salta aos olhos, a meu ver, é a questão da gratidão e da ingratidão.
No v. 7, já vimos que havia uma espécie de gratidão de Deus para com os seus servos, sem nenhuma razão específica, apenas pela graça dEle mesmo.
Aqui vemos que o povo daquela cidade deveria ser eternamente grato ao homem pobre, mas eles logo se esqueceram do benefício que este lhes havia feito.
De fato, não devemos esperar gratidão dos homens, porque a regra é a ingratidão.
Da mesma maneira, é esta regra que vigora no relacionamento dos homens para com Deus, como o próprio Jesus teve ocasião de vivenciar e delatar quando curou 10 leprosos (Lucas 17:11-19), e apenas um (ainda mais samaritano, ou seja, um pária para a época e contexto social em que vivia) retornou para lhe agradecer.
Isto depois do Mestre ter dito que o senhor não precisava agradecer ao servo por este ter feito o que lhe havia sido ordenado (Lucas 17:9).
Este é um claro contraste com Eclesiastes 9:7, que é muito mais existencialista, no sentido de nos mostrar a importância de viver uma vida bem vivida, com todos os seus bens e males, e nos lembrarmos sempre de agradecer a Deus pelo dom da vida que Ele graciosamente nos deu.
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