5) TIPOS DE JUSTIÇA EM ARISTÓTELES
A noção de Justiça no mundo grego pré-Aristóteles tinha algo de esotérico, mítico, para além da realidade humana. Mais do que justiça propriamente dita, existia para o grego uma expectativa de justiça, dependente, em regra, dos humores do cosmos e realizável post-mortem. Como diz Bittar:
“Mesmo estando a Idéia da Justiça distante dos olhos do comum dos homens, sua presença se faz sentir desde o momento presente na vida de cada indivíduo. Existe, para além da ineficaz e relativa justiça humana (a mesma que condenou Sócrates à morte!), uma Justiça, infalível e absoluta, que governa o kósmos, e da qual não se pode furtar qualquer infrator. A justiça não pode ser tratada unicamente do ponto de vista humano, terreno e transitório; a justiça é questão metafísica, e possui raízes no Hades (além-vida), onde a doutrina da paga (pena pelo mal; recompensa pelo bem) vige como forma de Justiça Universal.”[1]
Desta maneira, nos textos platônicos, a justiça cósmica, divina, alheia à realidade palpável do homem grego, é que governa os destinos humanos. A ordem do mundo é dada pela infalível justiça retributiva divina.
É nesse contexto que surge Aristóteles, classificando genericamente a justiça como máxima virtude (areté) e, como toda virtude, um justo meio (mesótes), não inata, mas alcançável pela educação (paidéia), pelo viver ético (éthos) e deliberadamente escolhida pela reta razão (ortós logos) dentro de um Estado político (pólis), em que a noção de felicidade (eudaimonía) é algo absolutamente humano e, portanto, perfeitamente realizável no mundo concreto das múltiplas interações humanas.
Falando de felicidade, Aristóteles foi o primeiro pensador ocidental a tematizar o acaso, em especial no Livro I de Ética a Nicômaco, em que diz que “a felicidade parece requerer o complemento desta ventura, e é por isto que algumas pessoas identificam a felicidade com a boa sorte, embora outras a identifiquem com a excelência” [2].
Para ele, a virtude está ligada ao problema do acaso, que domina a própria convivência entre os humanos. Cabe à justiça a missão de racionalizar os problemas engendrados pelo acaso. E o exercício dessa missão se dá nas relações entre as coisas e entre pessoas e coisas.
Ainda não se discute, nesse contexto grego, a questão da vontade, como aconteceria com o início da influência cristã no mundo romano. Nos primeiros séculos cristãos, a justiça ainda teria algo a ver com a questão da convivência, só que agora a ênfase seria deslocada para a vontade. A virtude continuaria tendo importância, mas teria por base a vontade, o querer. Portanto, a noção de justiça seria posteriormente influenciada por uma noção de interioridade do ser humano, pois passaria a significar querer atribuir, distribuir, retribuir.
Entretanto, essa noção de vontade não era admissível nem compreensível para o grego contemporâneo de Aristóteles, porque lhes traziam basicamente dois problemas incontornáveis. O primeiro é que, para os gregos, a vontade não era algo que se processava dentro do homem. Não se discutia, ainda, a questão do arbítrio, nem se percebia qualquer dicotomia entre querer e poder, já que a filosofia grega concentrava-se no agir. A segunda questão que um grego poderia levantar nesse particular da vontade seria o fato de que, se a virtude e a justiça estão na interioridade humana, quem é que poderia dizer, afinal, o que é justo? Isso se justifica dentro do contexto judaico-cristão de um relacionamento vertical de transparência entre o homem e Deus, mas Aristóteles já vivia numa época em que essa visão cosmológica da justiça estava em desuso entre os gregos.
Para o estagirita, a justiça lida com a repartição de bens entre os homens. Nessa repartição deve imperar o equilíbrio. O tema da igualdade passa, pois, a ser fundamental. Entretanto, Aristóteles percebe que essa igualdade deve ser revestida da proporcionalidade. A igualdade necessita de parâmetros para repartir, comutar, distribuir os bens entre os homens, e Aristóteles buscou-os na geometria euclidiana, onde encontrou as igualdades aritmética e geométrica.
Como, pois, medir coisas diferentes? O critério deveria ser buscado em algo que fosse comum a ambas as coisas comparadas, e esse “algo” é o dinheiro, uma medida externa comum, que analisaremos com mais vagar quando estudarmos a justiça corretiva, a seguir. Este meio de comparação engendrou a Economia, que posteriormente passou a ser um ramo independente do conhecimento. Diz o estagirita:
Vê-se, diante desses parâmetros, que o principal (e importantíssimo) legado do Livro V da Ética a Nicômaco é dirigido não aos políticos ou aos eticistas ou moralistas, mas precisamente a uma terceira ordem de especialistas, ainda dentro da filosofia: os juristas.
É a partir da filosofia aristotélica que se poderá fundamentar a existência de juristas e do direito como uma instituição epistemologicamente autônoma. Será, pois, nessa perspectiva que iremos brevemente refletir sobre a Justiça em Aristóteles.
O filósofo começa por verificar a polissemia dos termos justiça e injustiça. Desde logo, destaca dois sentidos: o justo que o é pelo respeito à lei, e o justo que o é por respeito à igualdade. E concomitantemente os tipos de injustiça por desrespeito à lei e à igualdade (seja porque o injusto pretende mais do que lhe cabe nos bens, seja porque o injusto pretende menos do que seria seu dever nos males ou obrigações). Contudo, desde logo o filósofo compreende que a justiça da lei o é apenas num certo sentido, e que a Justiça tem várias dimensões: quer como virtude, quer como outra coisa, quando se relaciona com os outros.
Enquanto qualidade da alma no sujeito, como vimos anteriormente, ela é virtude, e a mais perfeita das virtudes. À justiça enquanto virtude chamamos justiça geral ou total, enquanto à justiça específica que vimos existir também chamamos freqüentemente de justiça particular. Essa é o objeto próprio do direito, do saber jurídico. Como mais tarde afirmará Ulpiano, trata-se do suum cuique tribuere (“dar a cada um o que é seu”), e é precisamente esta justiça que reparte as honras, os bens, as riquezas, e ( ainda que Aristóteles não se refira a este ponto expressamente) as próprias sanções. A divisão aristotélica era, de fato, distinta, já que ele apontava uma justiça corretiva englobando nesta categoria duas subespécies: a dos atos voluntários, essencialmente contratuais e afins, de índole privada, e os atos involuntários, em que se chegam a incluir os crimes.
É nesse contexto que surge Aristóteles, classificando genericamente a justiça como máxima virtude (areté) e, como toda virtude, um justo meio (mesótes), não inata, mas alcançável pela educação (paidéia), pelo viver ético (éthos) e deliberadamente escolhida pela reta razão (ortós logos) dentro de um Estado político (pólis), em que a noção de felicidade (eudaimonía) é algo absolutamente humano e, portanto, perfeitamente realizável no mundo concreto das múltiplas interações humanas.
Falando de felicidade, Aristóteles foi o primeiro pensador ocidental a tematizar o acaso, em especial no Livro I de Ética a Nicômaco, em que diz que “a felicidade parece requerer o complemento desta ventura, e é por isto que algumas pessoas identificam a felicidade com a boa sorte, embora outras a identifiquem com a excelência” [2].
Para ele, a virtude está ligada ao problema do acaso, que domina a própria convivência entre os humanos. Cabe à justiça a missão de racionalizar os problemas engendrados pelo acaso. E o exercício dessa missão se dá nas relações entre as coisas e entre pessoas e coisas.
Ainda não se discute, nesse contexto grego, a questão da vontade, como aconteceria com o início da influência cristã no mundo romano. Nos primeiros séculos cristãos, a justiça ainda teria algo a ver com a questão da convivência, só que agora a ênfase seria deslocada para a vontade. A virtude continuaria tendo importância, mas teria por base a vontade, o querer. Portanto, a noção de justiça seria posteriormente influenciada por uma noção de interioridade do ser humano, pois passaria a significar querer atribuir, distribuir, retribuir.
Entretanto, essa noção de vontade não era admissível nem compreensível para o grego contemporâneo de Aristóteles, porque lhes traziam basicamente dois problemas incontornáveis. O primeiro é que, para os gregos, a vontade não era algo que se processava dentro do homem. Não se discutia, ainda, a questão do arbítrio, nem se percebia qualquer dicotomia entre querer e poder, já que a filosofia grega concentrava-se no agir. A segunda questão que um grego poderia levantar nesse particular da vontade seria o fato de que, se a virtude e a justiça estão na interioridade humana, quem é que poderia dizer, afinal, o que é justo? Isso se justifica dentro do contexto judaico-cristão de um relacionamento vertical de transparência entre o homem e Deus, mas Aristóteles já vivia numa época em que essa visão cosmológica da justiça estava em desuso entre os gregos.
Para o estagirita, a justiça lida com a repartição de bens entre os homens. Nessa repartição deve imperar o equilíbrio. O tema da igualdade passa, pois, a ser fundamental. Entretanto, Aristóteles percebe que essa igualdade deve ser revestida da proporcionalidade. A igualdade necessita de parâmetros para repartir, comutar, distribuir os bens entre os homens, e Aristóteles buscou-os na geometria euclidiana, onde encontrou as igualdades aritmética e geométrica.
Como, pois, medir coisas diferentes? O critério deveria ser buscado em algo que fosse comum a ambas as coisas comparadas, e esse “algo” é o dinheiro, uma medida externa comum, que analisaremos com mais vagar quando estudarmos a justiça corretiva, a seguir. Este meio de comparação engendrou a Economia, que posteriormente passou a ser um ramo independente do conhecimento. Diz o estagirita:
“Já que tanto o homem injusto quanto o ato injusto são iníquos, é óbvio que há também um meio-termo entre as duas iniqüidades existentes em cada caso. Este meio-termo é o igual, pois em cada espécie de ação na qual há um “mais” e um “menos” há também um “igual”. Se, então, o injusto é iníquo (ou seja, desigual), o justo é igual, como todos acham que ele é, mesmo sem uma argumentação mais desenvolvida. E já que o igual é o meio-termo, o justo será um meio-termo. Ora: a igualdade pressupõe no mínimo dois elementos; o justo, então, deve ser um meio-termo, igual e relativo (por exemplo, justo para certas pessoas), e na qualidade de meio-termo ele deve estar entre determinados extremos (respectivamente “maior” e “menor”); na qualidade de igual ele pressupõe duas participações iguais; na qualidade de justo ele o é para certas pessoas. O justo, portanto, pressupõe no mínimo quatro elementos, pois as pessoas para as quais ele é de fato justo são duas, e as coisas nas quais ele se manifesta – os objetos distribuídos – são também duas. E a mesma igualdade existirá entre as pessoas e as coisas envolvidas, pois da mesma forma que as últimas – as coisas envolvidas – são relacionadas entre si, as primeiras também o são; se as pessoas não forem iguais, elas não terão uma participação igual nas coisas, mas isto é a origem de querelas e queixas (quando pessoas iguais têm e recebem quinhões desiguais, ou pessoas desiguais recebem quinhões iguais). Além do mais, isto se torna evidente porque aquilo que é distribuído às pessoas deve sê-lo “de acordo com o mérito de cada uma”; de fato, todas as pessoas concordam em que o que é justo em termos de distribuição deve sê-lo de acordo com o mérito em certo sentido, embora nem todos indiquem a mesma espécie de mérito; os democratas identificam a circunstância de a distribuição dever ser de acordo com a condição do homem livre, os adeptos da oligarquia com a riqueza (ou nobreza de nascimento), e os adeptos da aristocracia com a excelência.” [3]
Vê-se, diante desses parâmetros, que o principal (e importantíssimo) legado do Livro V da Ética a Nicômaco é dirigido não aos políticos ou aos eticistas ou moralistas, mas precisamente a uma terceira ordem de especialistas, ainda dentro da filosofia: os juristas.
É a partir da filosofia aristotélica que se poderá fundamentar a existência de juristas e do direito como uma instituição epistemologicamente autônoma. Será, pois, nessa perspectiva que iremos brevemente refletir sobre a Justiça em Aristóteles.
O filósofo começa por verificar a polissemia dos termos justiça e injustiça. Desde logo, destaca dois sentidos: o justo que o é pelo respeito à lei, e o justo que o é por respeito à igualdade. E concomitantemente os tipos de injustiça por desrespeito à lei e à igualdade (seja porque o injusto pretende mais do que lhe cabe nos bens, seja porque o injusto pretende menos do que seria seu dever nos males ou obrigações). Contudo, desde logo o filósofo compreende que a justiça da lei o é apenas num certo sentido, e que a Justiça tem várias dimensões: quer como virtude, quer como outra coisa, quando se relaciona com os outros.
Enquanto qualidade da alma no sujeito, como vimos anteriormente, ela é virtude, e a mais perfeita das virtudes. À justiça enquanto virtude chamamos justiça geral ou total, enquanto à justiça específica que vimos existir também chamamos freqüentemente de justiça particular. Essa é o objeto próprio do direito, do saber jurídico. Como mais tarde afirmará Ulpiano, trata-se do suum cuique tribuere (“dar a cada um o que é seu”), e é precisamente esta justiça que reparte as honras, os bens, as riquezas, e ( ainda que Aristóteles não se refira a este ponto expressamente) as próprias sanções. A divisão aristotélica era, de fato, distinta, já que ele apontava uma justiça corretiva englobando nesta categoria duas subespécies: a dos atos voluntários, essencialmente contratuais e afins, de índole privada, e os atos involuntários, em que se chegam a incluir os crimes.