""A palavra é a sombra da ação." (Demócrito, fragmento 145)

segunda-feira, 14 de abril de 2014

Compaixão à la Sheherazade


Esclareçamos logo de largada: Rachel Sheherazade e seus discípulos têm todo o direito a manifestar sua opinião, ainda que abjeta. Ponto.

Entretanto, quando ela se apresenta como “evangélica” e utiliza uma concessão pública para defender a violência, também deve estar preparada para ser contraditada. Faz parte do jogo democrático que, apesar de reconhecidamente falho, ainda não inventaram nada melhor.

Além disso, toda e qualquer questão polêmica tem vários ângulos pelos quais pode ser analisada. Portanto, quando a opinião se baseia em apenas um ponto de vista rasteiro, ela deve ser esmiuçada para que as pessoas que debatem (ou acompanham o debate) possam chegar à sua própria conclusão.

Quando Rachel Sheherazade lançou a campanha “adote um marginalzinho” em apoio ao quase linchamento de um rapaz negro e menor de idade, sua ironia barata apenas mostrava que o ovo da serpente estava chocando.

E seu veneno é tão tóxico que impede as pessoas de analisarem e dialogarem construtivamente sobre o caso.

Imediatamente se associa quem se opõe a esse raciocínio raso de Sheherazade a algum tipo de “amante do crime” ou “protetor de criminosos”, quando – na verdade – se trata de algo totalmente distinto, que a pressa em julgar e condenar não permite alcançar.

Quem prefere que as pessoas sejam investigadas, presas e condenadas segundo o rito previsto em lei não está apoiando o crime. Isto não significa que elas gostam de criminosos ou lhes queiram bem.

Tampouco se trata de divergências ideológicas entre direita e esquerda. O que se discute aqui é o respeito mínimo a regras de convivência em sociedade.

Significa apenas que os opositores do julgamento sumário (mais conhecido por “linchamento”) querem evitar o pior dos pesadelos na aplicação da justiça humana: a execução de um inocente.

Nesses casos, o comportamento de manada justiceira que se segue à indicação de alguém como responsável por um crime, como a própria expressão sugere, declina rapidamente para o instinto animal e impede que os passos lógicos da razão sejam seguidos para que se tenha certeza da culpabilidade do suposto criminoso, para somente então aplicar-lhe a punição cabível.

Essas regras básicas da vida em sociedade, entregando o suspeito às autoridades constituídas para que ele seja investigado e julgado segundo os ditames legais, nos permitem ter a consciência tranquila de que não vamos condenar um inocente à morte.

Se – mesmo assim – não estamos imunes aos erros judiciários, imagine o risco que corremos ao tomar a espada da Justiça em nossas mãos e decepar cabeças em “julgamentos” instantâneos.

Alegar que as autoridades constituídas para tanto não cumprem o seu papel (o que é absoluta realidade no Brasil em todos os níveis e esferas de responsabilidade), não basta para que combatamos a barbárie com a barbárie, o crime com o crime e o desrespeito com o desrespeito.

O fato de não vivermos num mundo ideal não nos isenta de buscar o equilíbrio e a racionalidade possíveis na sociedade e realidade ingratas que compartilhamos.

Um erro não justifica o outro!

A indignação contra a desídia, lentidão e impunidade patrocinadas pelas autoridades não pode servir de desculpa para que tomemos a justiça em nossas próprias mãos. Se eles erram por ação e – sobretudo – por omissão, nós corremos o risco de errar muito mais com “soluções” equivocadas e irreversíveis.

O linchamento de Alailton Ferreira às margens da BR 101 em Serra (ES), um jovem negro de 17 anos de idade e – supostamente - doente mental, revela o quanto a nossa sociedade pode ficar enferma quando um formador de opinião como Sheherazade, ainda que por via transversa e se valendo de uma concessão pública como é a televisão, defende a atitude execrável de fazer justiça com as próprias mãos.

Obviamente, a culpa que eventualmente se possa atribuir a Sheherazade deve ser diluída no caldeirão de descaso e indiferença para com os anseios de segurança da população, que as autoridades constituídas vêm cultivando ao longo de décadas, mas não há como eximi-la de responsabilidade, nem aqueles que repercutem seus delírios nas redes sociais.

Pior ainda é que muitos deles se dizem cristãos. Esquecem-se convenientemente de que foi o cristianismo que introduziu os conceitos de compaixão, perdão e reabilitação (conversão) na história do Direito e da Justiça.

Antes da influência cristã vigorava, nesses casos, a justiça retributiva dos gregos e a lei hebraica do talião: dente por dente, olho por olho. Ainda assim, pelo menos um simulacro de julgamento era necessário. Mesmo que fosse para soltar Barrabás.

Em 2014, no Brasil, nem isso mais é possível. Basta uma acusação qualquer que, em questão de segundos, o suposto meliante é executado pela massa ignara. Com direito a replay.

E pessoas que se dizem cristãs - e compartilham emotiva e hipocritamente lindos trechos bíblicos em suas redes sociais – disputam no tapa o delirante privilégio de atirar a primeira pedra.



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duas coisas que hoje há demais: Por um lado pessoas maldosas, que usam um raciocínio maléfico e envolvente; por outro lado descelebrados, mentes ocas e vazias de tudo. Enfim, um cenário perfeito.
Reinaldo de Carvalho's avatar

Reinaldo de Carvalho · 575 weeks ago

Há aqui uma distorção sobre o entendimento do que falou a apresentadora.

Ela não julgou correto fazer justiça com as próprias mãos. Também não disse que o linchamento é um meio legítimo. Mais uma vez: NÃO, ELA NÃO DEFENDEU ISSO COMO SOLUÇÃO. O que ela disse sim, é que é compreensível, diante da inércia, incapacidade, despreparo e insuficiência da segurança pública.

Além disso, evidenciou a presença dos Direitos Humanos junto aos bandidos, e sua ausência para com as pessoas de bem, quando lançou a famigerada campanha. Ela ironizou. Não fechemos os olhos propositalmente para isso: i-r-o-n-i-a. Não atentar para esse aspecto é no mínimo falta de honestidade intelectual, intencionalmente enxertando ideias onde não foram proclamadas.

O linchamento ocorrido é na verdade um reflexo, revide, resposta, e não uma proação. Já não aguentamos mais ter que nos esconder, acuados, confiando numa justiça que segue a lógica e a razão "para não culpar injustamente um inocente", mas que só funciona para os bem endinheirados. Ou por acaso você já viu algum caso em que um pobre conseguiu levar sua causa em inúmeras recorrências para o STF?
Temos uma polícia que só funciona em época de eleição ou quando um dos seus é atingido.

Se o prefeito de sua cidade ligar para a polícia, certamente em 2 minutos 5 viaturas estarão à sua porta. Experimente o mesmo processo para um cidadão qualquer, como você.

Você precisa entender, meu amigo, que o próprio cidadão, é complementar à sua própria segurança. Por isso que a campanha do desarmamento é um mal terrível para o povo.

Assim, o seu discurso é plenamente correto para quem defende a justiça com as próprias mãos. Eu concordo com ele. Mas seu erro está em atribuir esse pensamento à fala da apresentadora. É ir muito além do que foi dito.

Sou cristão há 13 anos, membro da Igreja Batista.
1 reply · active 575 weeks ago
Apenas para deixar a questão no terreno da "honestidade intelectual", já que você me acusa de ser desonesto neste quesito, ¿você poderia me dizer em que lei está prevista esta tal "legítima defesa coletiva da sociedade" com base na qual a Rachel Sheherazade justifica o justiçamento do "marginalzinho" atado ao poste? Adianto que conheço um regime satânico, iniciado em 30 de janeiro de 1933 na Alemanha, que usou e abusou desta tese, levando-a a proporções catastróficas e só foi parado 50 milhões de mortos depois. Aqui no blog falamos muito sobre ele, caso não tenha percebido.

Ainda falando de honestidade intelectual, ¿ você poderia me dizer qual a diferença de abordagem da musa Sheherazade no vídeo abaixo, em que ela defende (extasiada) Justin Bieber e condena (indignada) o "marginalzinho" ? Haveria alguma influência do fato de um ser rico, famoso e branco e o outro pobre, anônimo e negro? Que coisa é essa tal "síndrome da adolescência" que ela inventou para alisar o Bieber? Está catalogada na C.I.D.? Não, né... então pau no "marginalzinho"...

Percebeu a contradição? A "justiça" da musa dos justiceiros, usando as tuas próprias palavras, "só funciona para os bem endinheirados", não é mesmo?

E eu sou o desonesto intelectual... então tá!

O vídeo é este aqui: http://youtu.be/WDrqaFTy6Tc

Sou cristão batista há 30 anos, graças ao bom Deus, e não me acho melhor do que ninguém, só pra deixar registrado em ata.

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