sexta-feira, 22 de agosto de 2008

Viva o progresso!

Recentemente, lendo o jornal, me deparei na seção de cartas dos leitores, com o comentário de um leitor que comemorava a recente aprovação do estudo de células-tronco no Brasil. A comemoração de fato, foi apenas um pretexto para uma crítica à religião como um todo, já que a oposição à este estudo partiu de religiosos. Eu sinceramente desconheço toda a argumentação usada neste debate. Me parece que o que está envolvido é a decisão de se usar células que formariam um novo ser humano, para o tratamento de doenças em pessoas que já nasceram. Seria então um caso de se escolher qual vida sobreviveria. Minha intenção aqui não é discutir o tema e todos os argumentos envolvidos. O que me chamou a atenção em tudo isto foi a crítica deste leitor à religião, como algo que atrapalha o progresso. Isto me chamou a atenção, e pelo visto esta é uma opinião aceita por muitas pessoas hoje em dia.

Por isto, resolvi também comemorar o progresso, relembrando os grandes feitos em seu nome.


O progresso é sempre citado como um mantra, que encanta as multidões, e faz a cabeça de milhares. É tão eficaz neste papel que seria natural que entre as magias conjuradas pelo conhecido bruxo infantil Harry Potter haja uma magia chamada progressum mentalis para controle de mentes. Mas toda boa mágica, principalmente em livros infantis, precisa de um elemento extraordinário. Precisa fugir da realidade. O progresso já é muito bem usado pelos nossos magos da política. Os mais antigos destes magos já inseriram em 19 de novembro de 1889 o mantra em nossa bandeira, e desde aquele dia esperamos tanto a ordem como o progresso prometido. Alguns hoje acham que este progresso seria encher nossas estradas de pedágios ou vender tudo que o país conseguiu construir em toda sua história, e o governo é ruim justamente por que não promove este progresso.


Este poder de encantar se deve em parte por que o progresso é quase um padrão moral universal, e poderia muito bem ser adotado pelo sistema internacional de medidas. Quando uma coisa é ruim, ela atrasa o progresso, quando é boa ela faz o mundo progredir. E por isto religião é ruim, pois atrasa o progresso, pelo menos nossa noção atual de progresso, fique isto bem claro. Pois a religião na idade Média também supunha estar fazendo o mundo progredir, queimando seus hereges e fazendo um mundo espiritualmente mais uniforme (e mais obediente também). O tempo passa, o tempo voa, e o conceito de progresso não continua "numa boa". Esta indefinição sobre o que é o progresso, que ajuda os magos do progresso a progredirem a nível pessoal. Não é à toa que quem dita as regras dita também o conceito de progresso. O catolicismo da Inquisição ditava o que era o progresso, hoje governos ditam o que é o progresso. Progresso é a encarnação das vontades dos poderosos, independente de seu nível de poder. Veremos isto adiante.


O progresso que temos que comemorar hoje é o progresso tecnológico. A ciência impulsiona o progresso. Devemos agradecer à ciência por nos dar o computador, telefone, televisão, internet, por melhorar a nossa qualidade de vida no geral. Muitas doenças possuem hoje um tratamento eficaz graças a este progresso científico. Hoje eu sei que tudo que eu sinto, de amor a ódio, na verdade é simplesmente resultado de reações em meu organismo, mediadas por enzimas ou hormônios. Tenho que agradecer pelo fato de não sentir mais medo, agora o que tenho é muita adrenalina no sangue. Medo é uma ilusão. Com todo este progresso, até minha vontade está correndo risco de se tornar uma mera ilusão. Pobre Platão, que achava que a realidade era o mundo das idéias. A ciência, ou melhor, o positivismo lógico conseguiu inverter os papéis do mundo das idéias e o mundo dos sentidos de Platão. O mundo dos sentidos é a realidade que existe por trás do mundo das idéias, este sim o que vivemos. Claro, isto tudo se colocarmos a ciência como única capaz de explicar nosso mundo, como o positivismo lógico afirma e como parece ser o rumo que a coisidade está tomando.


E como estamos cada dia progredindo mais para que deixemos de ser humanos para ser alguma coisa, poderíamos até nos perguntar se nossa vida está realmente melhorando. Será que somos vivos mesmo, ou esta é apenas mais uma convenção de nosso ilusório mundo? É por isto que devemos sempre comemorar as novas conquistas da ciência, que nos dá a vida através das pesquisas com células tronco, enquanto a tira sorrateiramente de nós através dos conceitos que adotam. Atualmente vivemos uma total desconstrução do homem, comemoraremos muito quando conseguirem completar esta árdua tarefa. Será um grande progresso, e muitos leitores felizes irão mandar cartas para seus jornais prediletos, comemorando este novo progresso e criticando os tempos onde os sentimentos barravam o mesmo progresso. Provavelmente pessoas de alto gabarito como Josef Mengele serão reabilitados à ciência, quem sabe até "canonizados" por terem buscado empiricamente as respostas para suas dúvidas, e não se deixar levar apenas por seus "sentimentos". Finalmente todos seremos iguais, criminosos ou não. Vamos comemorar nossa igualdade, pois seremos igualmente nada.


Eu já sabia que eu não tinha vida nenhuma, o positivismo lógico só me confirmou isto. Pois quem chamaria de vida, o que eu levo? Eu não tenho a melhor televisão do mercado, não consigo comprar um notebook, tenho carro 1.0 parcelado em 60 vezes, meu celular tem tela monocromática e não tira foto, minha câmera digital tem apenas 3 Megapixels... Isto definitivamente não é vida. Pelo menos em nosso sistema capitalista. Pessoalmente não sou partidário do capitalismo, nem do socialismo. Porém, não posso deixar de observar o que foi deixado para nós através destes, o chamado progresso. O capitalismo em si é um grande progresso comparado com o feudalismo que o precedeu. Antigamente tínhamos os senhores feudais e os servos, agora aquele que explora se chama patrão e o que leva a pior é o empregado. As formas de exploração também ficaram bem mais sutis, uma grande revolução. Podemos perceber como as relações trabalhistas progrediram quando vemos o grau técnico dos trabalhadores. Antigamente, os servos já nasciam servos, e já começavam aquilo que consideravam ser sua vida trabalhando para seus senhores. Ninguém era obrigado a se especializar em nada, mesmo por quê não tinha como ser demitido por não saber o que fazia. Hoje não, somos bem mais modernos. Hoje além de sermos obrigados a ficar um terço de nossas vidas estudando para conseguir os menores salários oferecidos, muitos ainda fazem cursos para serem bons funcionários, fazem dinâmica de grupo, frequentam palestras sobre liderança, motivação... Tudo para que nos moldemos àquilo que definiram como o "empregado perfeito" (progresso como definido pelos que estão no comando). Curiosamente, nunca vi cursos para pessoas se tornarem "empregadores perfeitos". Aliás, o empregador nem precisa ser formado para ser empregador. Ele pode ser a pessoa mais arrogante que você conheceu, ou a pessoa mais dócil. Tanto faz. Ninguém vai condená-lo por ele ser o que é, e muitos dos grande empregados são aqueles que sabem ignorar a personalidade de seus superiores. Você nunca verá uma dinâmica de grupo com empregadores.


Um bom exemplo desta situação é o programa que tem passado todo ano chamado O Aprendiz, onde vários candidatos a "O usuário mais perfeito" se confrontam. Ali, são feitos vários testes para ver se todo mundo aprendeu tudo direitinho. Por exemplo, já vi alguns sendo demitidos, por que colocaram sua família em primeiro lugar. Os candidatos são isolados de todos os conhecidos enquanto estão participando do programa. Houve um caso onde um futuro pai estava dividido entre a vontade de acompanhar a esposa durante os últimos meses de gestação de seu filho, e a participação no programa. Em outro caso, a mãe queria voltar a ver seu filho pequeno. Mas eles tinham que colocar a empresa (no caso o programa) em primeiro lugar. A pessoa tem que viver para a empresa, e não para sua família. Geralmente, procuramos um emprego motivados por nossas famílias, para que possamos ajudá-las a se manter. Mas assim que entramos, deixamos a família de lado. A empresa deve vir em primeiro lugar. É o progresso definido pelos patrões, que se aproveita da desconstrução humana, para pregar que não devemos ter sentimentos, muito menos vida familiar. Por isto passamos quase um quarto de nossas vidas trabalhando, quando o funcionário não é obrigado a fazer horas extras ou trabalhar no fim de semana. O processo de desconstrução da sociedade é um passo inevitável, já que coisas não podem viver em sociedade. Voltarei a falar sobre isto adiante.


Outra pessoa foi demitida por que acreditava que estava aprendendo muito ali, e que ainda não sabia de tudo. Um bom funcionário então, deve saber de tudo. Ninguém deve aprender nada desempenhando suas funções. Imagino como seria uma reunião de funcionários que sabem tudo, e que porventura alguém entre em discordância com os demais. Imagino como seria muito complicado para estes funcionários que sabem tudo explicar como uma eventual falha possa acontecer. Pois as falhas acontecem, geralmente por que não sabemos de tudo. Não sabemos das n variáveis que podem influenciar nosso trabalho.


Tive que assistir com toda a revolta que pude reunir, como um grupo foi julgado por seu mau desempenho. Na verdade, não ficaram muito atrás de seus concorrentes. Mas isto não importava, tinha que se encontrar os culpados. Então o grupo foi obrigado a encontrar as falhas de cada um, coisa que ninguém conseguia fazer, pois ninguém conseguiu ver falha. Eles tinham feito tudo da melhor forma possível. Eles eram um grupo, eram uma equipe, e naquele momento, estavam sendo obrigados a ser "cada um por si". Eles não tiveram coragem de apontar tais erros, e foram repreendidos ainda. Mais uma vez, vemos a desconstrução da sociedade aqui também.


E o mundo de hoje incentiva este "cada um por si". Eu tenho que ser melhor que todo mundo. Você tem que ser melhor do que eu. Mesmo quando você está trabalhando em equipe, você tem que ser o melhor na equipe, mesmo que isto signifique às vezes prejudicar os outros. Em nome de ser o melhor possível, grandes empresas esmagam pequenas empresas que sustentam famílias honestas e trabalhadoras, apenas para conseguir menos do 1% atual a mais nos lucros. Em nome de ser o melhor possível, empregados que tem problemas de saúde e dependem de seu salário para pagar seus tratamentos são mandados embora por que sua produtividade está caindo. Em nome do melhor possível, pais de família com 5 filhos para criar devem aceitar míseros salários, pois senão serão substituídos por pessoas que não possuem nem um periquito para cuidar. Podemos dizer adeus ao trabalho ideal, aquele onde trabalhávamos não para sermos os melhores, mas para fazermos o melhor para todos, e não para alguns. Aquele que trabalhamos para o bem de todos, e não para o bem próprio, ou o bem dos patrões. Aquele que trabalhamos para mudar o mundo para melhor, o real progresso, e não para mudar o destino das próximas férias de nossos empregadores, ou as cifras de suas contas bancárias.


Isto não se limita infelizmente, ao mundo secular. Até as igrejas hoje parecem estar concorrendo para ser as melhores igrejas. A igreja melhor é a que possui grandes aparelhos de som, e que podem fazer um culto para todo o bairro escutar. Ou então a melhor igreja é aquela que resgata melhor as tradições de Israel, assim demonstrando que apesar de todo aquele show teatral, elas possuem alguma ligação com os judeus, talvez até com o cristianismo. A melhor igreja possui os melhores castiçais, a melhor iluminação, o melhor equipamento de som, os melhores músicos, o melhor logotipo...


Esta concorrência para ser o melhor nos faz cada vez mais consumistas. Deixamos de procurar aquilo que precisamos para precisar daquilo que outros definiram como necessário. E geralmente esta necessidade é alimentada por uma busca por status. Então, depois de algum tempo agindo assim, o consumismo se tornou normal. Hoje, pessoas desejam trocar de carro todos os anos só por trocar, só por que é bom ter carro novo. É certo que muitas vezes os carros mais velhos vão para a oficina mais vezes, porém nem sempre este é o caso, diria até que esta não chega a um quarto dos casos. Deixamos de ver o carro como um meio de transporte para encará-lo como um item de luxo necessário. Pagamos mais só por que ele corre mais, mesmo que não possamos correr tanto em nossas estradas, pagamos mais só por uma marca, pagamos para rebaixar o carro e deixá-lo muito diferente do que os projetistas o fizeram. Não critico as pessoas que modificam seus carros por hobby, uma vez que elas fazem isto por um prazer próprio, elas fazem isto por elas mesmas. Critico aqueles que o fazem para os outros. Critico isto naquelas pessoas que fazem isto para serem melhores que os outros.


Tudo isto de alguma forma contribui para nos afastarmos uns dos outros. Esta competição acaba com nossas relações sociais, na medida que transforma todos, mesmos inconscientemente, em concorrentes. É isto que chamo de desconstrução social, e ela prescede a desconstrução humana que já comentei. Pois precisaria primeiro deixarmos de ser uma sociedade humana, para depois deixarmos de ser humanos. Assim é mais fácil. Como consequência disto, agora temos até vergonha de pedir licença para uma pessoa nos deixar passar. Temos vergonha do diálogo. Evitamos todos, evitamos também as idéias dos outros. Hoje presencia-se o absurdo de se manter uma opinião por que simplesmente ela é sua opinião, deixando de lado os argumentos. Aliás, argumentos são fabricados, e por mais absurdos que eles sejam, são preferíveis do que a argumentação alheia. Nos isolamos dos outros, nos tornamos autônomos. E esta autonomia está agora se voltando contra nós mesmos. A solidão é a doença deste século, e não é à toa. Era até previsível isto. Nós estamos deixando de ser uma sociedade preocupada com seus membros. A preocupação com nossos membros só surge quando ela se torna um argumento para mantermos aquelas opiniões já ditas, ou quando ela se torna uma fonte de renda. Um bom exemplo disto é a carta do leitor que citei acima, onde ele comemora o progresso. Ele está tão preocupado com as pessoas doentes que esperam pelas pesquisas com células tronco, que deixou de comentar sobre elas em 95% de sua carta, para falar contra a religião.


Viva ao progresso, que desconstruiu o homem e sua sociedade. Viva ao progresso, que nos deu o poder de dizimar duas cidades com suas bombas atômicas, coisa que gastaríamos mais tempo para fazer, e atingiríamos somente os habitantes que viviam nas cidades durante os ataques. Viva o progresso que ajudou a acabar com a camada de ozônio. Viva o progresso que ajudou a construir Chernobyl. Viva o progresso que nos ajudou a construir armas mais violentas. Viva tudo isto. Não são coisas que costumamos nos lembrar quando comemoramos o progresso, por isto faço questão de lembrar a todos, que este progresso que muitas vezes comemoramos, teve um preço, e muitas vezes alto.


Espero que algum dia as pessoas ponham a mão na consciência, e reflitam sobre o que estão passando. Espero que algo possa ser feito para parar esta desconstrução pela qual passamos, e possamos mais uma vez ter a dignidade de nos considerarmos seres humanos, seres vivos. Espero que as pessoas voltem a se escutar, a se relacionar como pessoas, a se respeitar. Não será fácil isto. Um dos primeiros passos seria observar aquilo que já foi dito há muito tempo:

Amai aos vossos inimigos, e orai pelos que vos perseguem; para que vos torneis filhos do vosso Pai que está nos céus; porque ele faz nascer o seu sol sobre maus e bons, e faz chover sobre justos e injustos. Pois, se amardes aos que vos amam, que recompensa tereis? não fazem os publicanos também o mesmo? E, se saudardes somente os vossos irmãos, que fazeis demais? não fazem os gentios também o mesmo? (Mateus 5:44-47)

Infelizmente, como o texto é religioso, terá grandes chances de não ser valorizado. Afinal de contas, a religião atrasa o tal progresso. E não é verdade?

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