segunda-feira, 27 de abril de 2009

A fé cura


“Não temas, crê somente.”
(Marcos 5:36)



Marcos 5:21-43 apresenta-nos duas mulheres doentes: uma menina de doze anos e uma mulher adulta, doente há doze anos.

A filha de Jairo está à morte. O pai vem ao encontro de Jesus, clamando por sua vida. Pergunto: tomando a menina como símbolo da nossa alma, conseguimos sentir quando nossa “criança interior” adoece? Temos um “lado pai” que cuida do nosso interior, que vai em busca da vida abundante em Cristo?

Dessa vez Jesus não faz um milagre à distância. Vai até a casa da menina. A restauração da alma ferida é um processo a realizar na intimidade, no “quarto-interior”.

No caminho, é tocado por uma mulher doente. Algo se esvai nessa mulher – perde sangue e recursos há doze anos. Segundo a lei da época, está impura, proibida de ter vida afetiva. Está sem abraços, marginalizada.

Talvez também estejamos assim na nossa adultez – fizemos tudo que sabíamos, gastamos toda a nossa sabedoria, nosso dinheiro, nossa educação, mas nada estancou a dor da alma. Será que nos arriscamos, como essa mulher, a quebrar os tabus e expor nossa dor? Jesus identifica e abençoa essa mulher que ousa. Bela combinação de atividade de Jesus e atividade humana na busca da cura.

Então chegam os pessimistas de plantão para anunciar que a menina já morreu. Também conhecemos o que em nós diz: “não adianta mais, já morreu”. E Jesus responde, encorajando: “não tenhas medo, somente fé”. Novamente, este é o requisito: fé.

O Evangelho relata como Jesus, acompanhado de poucos, chega à casa de Jairo, retira os pranteadores e, num ambiente de calma e intimidade, cuida da menina. Para tratar nossa criança interior, precisamos escolher apenas o essencial. E o toque restaurador de Jesus Cristo curará o que está ferido e moribundo dentro de nós.

(“Devocionais para Todas as Estações”, Ed. Ultimato, meditação de 28 de janeiro)

sexta-feira, 24 de abril de 2009

As crônicas de Marvin - 07

Auto-destruição

A congregação estava inquieta. A simples menção de pessoas suspeitas na congregação era motivo de preocupação. Acostumados a acreditar que não fazem parte do mundo, eles nunca pararam para pensar que no fundo são imperfeitos. Qualquer um ali poderia cair agora. Este era o motivo de tanto alarde. Resolvi então tomar uma atitude. Fui até a frente, e avisei:
- Irmãos, com a autoridade concedida a mim, tenho o dever de organizar tudo isto. Façamos o seguinte: se alguém conhecer pessoas que apresentaram o comportamento descrito na carta, me enviem, ou me telefonem. No dia primeiro nos reuniremos à noite para decidirmos algumas coisas, e falarmos sobre este tema.
Pronto. Agora eles teriam tempo para listar todos os que eles conheciam e que apresentaram tais dúvidas.
Naquela mesma noite recebi uma ligação. Eu havia acabado de chegar em casa, e me preparava para dormir, quando o telefone tocou.
- Alô.
- Marvin, aqui é o Estêvão. Por acaso você perdeu o juízo?
- Olá, irmão. Como vai você, como tem passado?
- Deixa disto. Eu quero saber por que você está usando nossa “arma final”. Você não deveria usá-la até nós aproveitarmos um pouco nosso tempo como manda-chuvas. O que houve?
- Estêvão, eu simplesmente perdi a minha paciência. Não poderia ver pessoas sofrendo por causa daqueles lunáticos mais... Eu tinha que fazer alguma coisa...
Estêvão estava nervoso com a situação, e não sem motivos. Ele estava adorando ser bajulado pelos seus irmãos de fé. Ele não ligava muito para questões morais não, na verdade ele achava aquilo mais do que justo pelo que ele teve que passar, depois de perder a irmã.
Nosso plano era perfeito. Dividimos ele em duas partes. Primeiro, pretendíamos colocar todas as testemunhas de Jeová como pessoas que defendiam qualquer coisa que fosse pregada pela Torre de Vigia, mesmo que fosse ridículo ou que fosse contraditório aos ensinos anteriores. A verdade é que nossa experiência havia levantado uma pergunta muito séria: Se considerarmos a Torre como a única referência da Verdade®, como distinguir se ela ainda se mantém na Verdade® ou não? Nós estávamos controlando o Corpo Governante, de forma a inserir as doutrinas que queríamos, e ninguém falava nada... Queríamos mostrar também que eles nunca checavam as fontes passadas pela Torre, ou suas declarações. Este seria um prato cheio para todos os grupos de ex-testemunhas existentes, pois daria mais e mais material para que eles construíssem uma resposta efetiva contra a Torre. Assim, estaríamos fortalecendo estes grupos, quase patrocinando eles. Todo mundo sabe que o pior inimigo da Torre é ela mesma. Ela tem um grande histórico de mudanças doutrinais, que já era bem explorado pelos grupos dissidentes. Só precisávamos deixar estas mudanças mais aparentes, destacando os erros que antigamente eram muito sutis para que uma testemunha normal pudesse perceber.
Mas isto não era suficiente. As testemunhas de Jeová já existiam há pelo menos 150 anos e uma coisa já havia ficado bem claro: simplesmente mostrar contradições não faria ninguém cair em si, e se voltar contra a Torre de Vigia. Muita gente já havia tentado isto durante estes anos, e os resultados não foram muito significativos. Isto porque a Torre se aproveita de conceitos que as pessoas geralmente possuem, para construir um raciocínio bem sólido entre seus fiéis. Um bom exemplo é usar o conceito de que todo mundo na igreja deve ser um santo, livre de qualquer defeito. Com base neste conceito, eles constroem uma definição de santidade que somente eles seguem, uma definição feita sob encomenda. Para provar que a definição está errada, você teria que primeiro se enquadrar nela, para se tornar uma pessoa confiável. Depois você teria que demonstrar seus argumentos contra esta definição, mas aí você seria contraditório, por ter adotado o padrão de santidade que tenta destruir. Até hoje, somente uma coisa conseguiu quebrar este raciocínio circular de forma eficaz: a desilusão.
É difícil encontrar uma ex-testemunha que deixou de ser testemunha por que resolveu estudar a Bíblia e descobriu as contradições doutrinárias da Torre. Sempre o “gatilho” para que a pessoa resolva estudar realmente suas doutrinas foi alguma desilusão com a Torre, ou com seus adeptos. Pessoas que foram proibídas de amar alguém de fora da Torre ficaram desiludidas com a atitude segregária da Torre. Pessoas que foram humilhadas por outras testemunhas ficaram desiludidas com tal atitude vinda de irmãos “santos”. Pessoas que perderam parentes ficaram desiludidas com as decisões malucas da Torre. Tudo foi desilusão. A desilusão é um sentimento muito poderoso, capaz de colocar as mentes mais acomodadas para trabalhar, embora não se saiba qual o resultado final de uma desilusão. E aí entra a segunda parte de nosso plano: causar uma desilusão coletiva nas testemunhas mais sinceras.
De fato, não criamos nada que já não existisse entre as testemunhas de Jeová. Ali dentro sempre há os grupinhos de testemunhas, sempre há aqueles que não se dão bem com alguém, aqueles que no fundo se acham mais conhecedores da Bíblia... E estes estão sempre buscando nas regras da Torre, algo para diminuir o papel de seus “rivais”. Traição seria algo a se lembrar aqui. Sempre havia aqueles que estavam prontos a trair suas amizades, esperando apenas uma justificativa moral para isto. Todo mundo espera justificativas morais para cometer os atos mais insanos. Afinal de contas, foi Deus quem declarou que o mundo era pecador. Nada mais justo (na visão deles) que Deus abrisse alguma exceção para eles, talvez por que em suas mentes insanas, eles achassem que eram mais santos do que os outros. Assim houve guerras e assassinatos, roubos, inveja, egoísmo, discriminação... Tudo permitido por um deus criado por eles mesmos... Então tudo o que fizemos foi criar uma regra clara que resultasse em desassociação rápida, permitindo que eles justificassem moralmente a traição. Foi o perfeccionismo que os levou à Torre, o mesmo perfeccionismo faria eles se excluírem. Todo mundo tentou destruir a Torre de fora, mas é muito mais simples destruí-la por dentro... Fizemos seus próprios membros se desassociarem.
Certamente os mais sinceros serão os primeiros desassociados. Eles possuem a sinceridade suficiente para confessar que possuem dúvidas. E os que não confessam dúvida nenhuma são aqueles que se consideram mais evoluídos espiritualmente. Escolhemos então o tema mais polêmico entre as testemunhas de Jeová, e lançamos um artigo muito ambíguo, que causasse dúvidas em todos. Deixaríamos então as dúvidas se firmarem, então lançaríamos a carta que tornasse estas dúvidas motivos de desassociação.
Então, testemunhas sinceras seriam desassociadas por sua sinceridade, sinceridade sobre um tema polêmico entre as testemunhas. Não seria muito difícil nestas condições ver como seus irmãos são pessoas em quem não se pode confiar, pessoas que estão sempre dispostas a mostrar sua santidade, até mesmo às custas dos outros. Eles verão a injustiça e a injustiça produzirá neles a desilusão. Desiludidos, eles finalmente estarão em condição de analisar os argumentos contrários à Torre sem pensamentos pré-concebidos. E aí, eles encontrarão todas as ex-testemunhas e seus argumentos enriquecidos pela nossa primeira parte do plano.
- Marvin, eu sei que eles são uns canalhas... Mas não podemos nos apavorar. Você mesmo que elaborou todo o plano, você deveria segui-lo mais à risca.
- Eu sei. Mas não pude me conter mais. Agora, o que está feito, está feito. Não há mais volta, Estêvão... Nós queríamos acabar com a Torre de uma vez por todas, e vamos fazer isto. Acho que qualquer plano de vingança só poderá ser bem-sucedido, se conseguirmos isto. Não podemos mais enrolar, temos que acabar logo com isto... Vidas humanas estão em jogo. Pense em sua irmã, e pense que muitas pessoas estão passando pelo mesmo que ela agora.
De certa forma, consegui fazer Estêvão se contentar com o que estava acontecendo. Era difícil para ele, ele estava gostando muito de ser o centro das atenções. Mas nosso plano deveria continuar. E se demorássemos muito, o efeito do artigo sobre o Mediador passaria. Era aquela a hora certa, apesar de tudo.

1 de setembro de 2051, 19:00

Estávamos novamente reunídos no Salão do Reino. Eu me sentia mais malvado que o próprio the Punisher, e estava preparado para usar todo o poder que consegui nos últimos meses.
A maioria dos irmãos estava sentada em seus lugares, somente alguns conversavam em pé, espalhados pelo salão. Minha chegada causou olhares desconfiados, como vítimas olhando para seu carrasco.
Peguei uma cadeira, e me sentei na frente, pedindo para todos se sentarem também. Então fiz o anúncio:
- Irmãs e irmãos, como todos vocês sabem, estamos nos aproximando do dia de Jeová, e estamos passando por tempos complicados. Estive por algum tempo observando a congregação, e avaliando a capacidade de orientação dos anciãos. Como todos sabem, nos primeiros dias muitos me procuraram para ser orientados, mas tive que redirecioná-los para os anciãos. Agora todos podem saber que eu estava os avaliando como anciãos.
Todos se entreolharam, assustados.
- Bem, irmãos, estou com a lista de pessoas que apresentaram comportamento suspeito. Estes nomes foram obtidos através de conversas com os irmãos, pessoalmente ou por telefone. E a lista é preocupante, o que reflete bastante a atitude de nossos anciãos. Afinal de contas, todos os irmãos foram denunciados aqui. Inclusive a irmã Mariana...
Uma voz assustada falou lá no fundo:
- Mas a Marianinha só tem 4 anos....
Eu também me assustei ao ver isto. Como disse antes, eu pensava que somente os mais sinceros seriam atacados... Mas me enganei. Na verdade, o que aconteceu é que os irmãos se aproveitaram do fato que não foi mencionado em momento algum, a exigência de provas para a denúncia. Eu mesmo não tinha me dado conta disto, a Torre geralmente não pede provas concretas. Ela simplesmente acredita. Como as investigações da Inteligência da Torre de Vigia eram conduzidas em segredo, ficava muito mais simples deixar a pessoa como culpada ou inocente, baseando-se apenas em simpatia. Provas só atrapalham nestes casos.
- Isto mesmo, até ela. É por isto que há muito para se fazer aqui. Não vou tomar as devidas atitudes ainda, prefiro trabalhar um pouco com vocês, para melhorar a situação por aqui. Em primeiro lugar, gostaria de falar ao irmão Marcos, que com muito pesar, terei que tratar de sua falta de humildade. Irmão, graças a esta falta de humildade, os irmãos viveram até o momento em dúvidas e sem direção. Por isto, você vai receber tarefas consideradas mais degradantes, para aprender o verdadeiro significado da humildade.
O irmão Marcos prontamente me respondeu:
- Degradantes?
- Sim. Você vai limpar a congregação. Quero ver os banheiros tinindo.
- Mas irmão...
- Não discuta comigo, eu sei o que é melhor para minhas ovelhas.
Ele baixou a cabeça...
- Ah, não se esqueça, você tem a obrigação de vir à congregação vestindo suas melhores roupas. Não pagamos mais o dízimo, mas devemos dedicar sempre a melhor parte a Jeová.
- O que você quer dizer com isto?
- Venha trabalhar aqui com seu terno.
- Mas onde já se viu fazer limpeza com terno?
- Deixe-me ver se entendi bem, irmão... Você está querendo definir nossos costumes segundo os hábitos do mundo?
- Eh... mas... Hummm....
- Não é por que as pessoas do mundo fazem a limpeza de suas casas e trabalhos com as piores roupas, que você fará o mesmo. Você tem que dar o exemplo. Mais uma coisa, venha aqui e pegue uma...
Tirei de minha pasta uma caixinha, e a abri. O irmão Marcos veio a meu encontro, e olhou com uma cara atônita. Estendeu a mão, e tirou de lá uma escova de dentes.
- Uma escova de dentes? Por quê?
- Você vai usar esta escova para fazer a limpeza da Congregação. Eu quero muita dedicação sua nesta tarefa.
Ele olhou assustado para a escova, e deu uma boa olhada para o Salão, medindo a área das paredes e do chão... É isto iria demorar muito. Enquanto isto, o irmão Jonas segurava-se para não rir.
- Irmão Jonas... A outra escova é sua.
Ele deu um salto da cadeira, e engoliu o riso.
- Eu??
- Sim, você. Você também é ancião aqui, e o tamanho desta lista também é culpa sua... Além do mais, eu sei que você tem alguns problemas de relacionamento com o irmão Marcos... Um pouco de trabalho em equipe irá aproximar os dois.
Certamente aproximou. Os dois agora me odiavam.
Enquanto o irmão Jonas pegava sua escova, continuei:
- Bem, tenho visto também que alguns jovens correm o risco de ir para o caminho do mundanismo. É por isto que eu resolvi tomar algumas medidas mais severas. Por favor, me entendam, é para o próprio bem de vocês. Pois bem, o caso mais sério é o do irmão Sérgio. Gostaria que ele desempenhasse um papel especial dentro da Congregação, que o fará se sentir mais próximo de Jeová.
Ele arregalou os olhos para mim.
- Bem, acho que não é o momento para ele se casar agora, pois ele tem muito o que dedicar a Jeová. Eu gostaria que ele, como filho de um dos anciãos, prestasse o serviço de cuidar de nossas viúvas e idosas, pois como Tiago mesmo diz, a verdadeira religião faz isto. Por isto, gostaria que ele evitasse namoros por este período, para ter mais tempo para a tarefa, como Paulo mesmo orientou.
Todos ficaram surpresos com a decisão. O Sérgio logo exclamou:
- O quê!?!?
Ficaram todos calados. Quem quebrou o silêncio foi a irmã Solange, a mais provável candidata à esposa do Sérgio:
- Mas isto não é justo!
Todos olharam para ela, certamente concordando com ela... Podia-se perceber o olhar triste das outras irmãs que faziam parte do fã-clube não oficial do Sérgio. De repente, o silêncio foi novamente quebrado, desta vez pelo irmão Júlio:
- Droga, isto é uma sacanagem!!
Imediatamente todos olharam para o Júlio com aquela cara assustada, como se dissesse “como assim?”. Até eu fiquei sem palavras... Ele percebeu a besteira que fez, enquanto olhava para todo mundo pensando no que iria falar.
- Ehrr, quer dizer... Bem, eu na verdade... Tipo, isto pode acontecer comigo também, não é? Eu tenho que falar algo antes que aconteça...
Percebi nesta hora que uns três afastaram um pouco suas cadeiras dele. A situação estava ficando meio estranha, então resolvi retomar o assunto antes que ficasse pior.
- Ehrr, irmãos, voltando ao assunto, como nossos dois anciãos estarão ocupados com as tarefas propostas aqui, resolvi anunciar outro ancião para ser o responsável por nossa congregação, durante este tempo.
Todos voltaram sua atenção novamente para mim... Consegui o que queria.
- Bem, devido a seu histórico como um irmão zeloso, gostaria de chamar o irmão Benedito para esta posição.
Todos ficaram sem entender mais nada... A conversa paralela foi inevitável, até que um irmão mais corajoso resolveu perguntar:
- Mas irmão, o irmão Benedito é surdo-mudo...
- Sábia observação, irmão! – Respondi com um sorriso...
- Mas ninguém aqui sabe a linguagem de sinais... Só o irmão Tiago, que ministrou seus estudos... E ele nem é tão bom assim...
- Oh, muito bem. Então eu acho que vocês terão uma grande oportunidade de aprendê-la aqui, não? Além do mais, o nome dele está na lista também, como é que vocês não entendem a linguagem de sinais, e dizem que ele apresentou aquelas dúvidas apresentadas na carta do Escravo?
Eu pelo menos já sabia que o nome do irmão Benedito estava ali naquela lista por que ele era muito próximo do irmão Jonas.
- Mas nem tudo que vim falar aqui hoje são críticas, irmãos... Tenho realmente muito apreço pela fé que algumas irmãs tem demonstrado, por isto, gostaria de destacá-las, dando uma melhor participação na congregação. É por isto que eu estou pedindo para a irmã Rosa fazer nossas leituras durante as Reuniões.
Todos estranharam a decisão, principalmente o irmão Osvaldo:
- Mas irmão, não nos é dito para que as mulheres fiquem caladas durante as reuniões?
- Irmão, seja qual for a interpretação daqueles versículos, isto nunca impediu que as irmãs respondessem as perguntas feitas na hora do estudo. Portanto, recomendo que estude melhor a passagem, para entender o que ela realmente quer dizer.
O irmão Osvaldo ficou envergonhado e acenou com a cabeça, consentindo com minha recomendação. Eu sei que fazer a leitura nas reuniões não é algo muito grandioso, mas já é o começo. Eu sinceramente nunca achei que as mulheres estavam ali apenas para aumentar os números nas estatísticas da Torre.
- É por isto também, que quero nomear duas mulheres para monitorar o trabalho de todos aqui, e me fazer um relatório sobre isto. Elas também poderão transmitir quaisquer instruções adicionais minhas que eu elaborar posteriormente. Primeiro gostaria de chamar a irmã Priscila...
Já estava olhando para ela quando ela sorriu. Tentei disfarçar qualquer tipo de sentimento comprometedor, e fiquei o mais frio possível. Eu havia escolhido ela, por que gostava da companhia dela, de sua alegria... Não me levem a mal... Está bem, ela é bonita, por isto escolhi ela. Seus cabelos cacheados e loiros eram muito bonitos...
Nem ia escolher outra pessoa, mas me lembrei que havia alguém que merecia algum reconhecimento... Alguém que como eu foi ignorado, mas que o episódio com a irmã Ana Clara me fez ver que era uma grande pessoa, preocupada com aquelas pessoas mais necessitadas.
- A outra irmã que gostaria de convidar é a irmã Amanda.
Ela estava com uma cara bem depressiva quando a chamei. De certa forma, eu consegui vê-la sorrir com aquele convite. Espero conseguir fazer algo por ela, já que ela fazia tanto pelos outros... Seus olhos verdes brilhavam agora, com o convite, enquanto ela me olhava, um pouco envergonhada.
- Gostaria de passar para as duas as intruções necessárias depois desta nossa reunião. Acho que por enquanto é só. Peço que os irmãos, em minha falta, comuniquem-se com uma das duas irmãs, que elas me repassarão os problemas. Infelizmente sou apenas um, por isto preciso de ajuda. Estão todos dispensados.
Todos se levantaram, talvez imaginando se aquilo era um pesadelo. Eu não tinha pensado ainda nas várias formas de tortura psicológica que eu poderia fazer. Há muito tempo que eu queria imitar meu personagem de filme brasileiro preferido e dizer “Pede pra sair, pede pra sair”, “Você é um fanfarrão”, e coisas do gênero. Claro, eu teria que adaptar para a linguagem tejotina, algo do tipo “Pede pra voltar (pro mundo), pede pra voltar (pro mundo)”, “Você faz parte do mundo”... Acho que está chegando a hora...
As duas moças estavam em minha frente, então. A Priscila, alegre como nunca. A Amanda, tímida como sempre.
- Ei, Amanda não fique tão tímida. Agora fomos escolhidas para fazer algo importante! – dizia a Priscila.
- Hummm, eu sei, desculpa...
- Bem, senhoritas, o que vou passar para vocês é bem simples. Aqui está meu telefone, me liguem em qualquer emergência. Vamos organizar visitas domiciliares. O importante é identificar os problemas existentes na família que vocês visitarem. Vamos fazer uma lista das famílias aqui na congregação, e dividí-las em três. Cada um visitará uma família, e buscará seus problemas...
Assim, discutimos todos os detalhes sobre aquela vistoria... Enquanto isto, corria a notícia de que pelo menos 40% das testemunhas de Jeová já haviam sido desassociadas por todo o mundo. Um bom número, mas que não foi maior por causa do receio das pessoas. Bom sinal, isto significa que eles não estavam tão dispostos a trair uns aos outros como eu pensava. Quanto à minha congregação, vou dar um choque neles primeiro, antes de permitir as desassociações.
Bem, voltei tranquilamente para casa. Tinha descarregado um pouco da minha raiva nos outros. Foi até legal.
Chegando em minha casa, avistei uma figura parada em meu portão. Seria um ladrão? Me aproximei, e no entanto, percebi que era uma pessoa bem conhecida...- Estêvão, o que você está fazendo por aqui?

Através de tudo

Daniel 3:8-30

“Foi nessa hora que alguns astrólogos aproveitaram a ocasião para acusar os judeus. Eles disseram ao rei Nabucodonosor:
- Que o rei viva para sempre! O senhor deu a seguinte ordem: “Quando ouvirem o som dos instrumentos musicais, todos se ajoelharão e adorarão a estátua de ouro. Quem desobedecer a essa ordem será jogado numa fornalha acesa.” Ora , o senhor pôs como administradores da província da Babilônia alguns judeus. Esses judeus – Sadraque, Mesaque e Abede-Nego – não respeitam o senhor, não prestam culto ao deus do senhor, nem adoram a estátua de ouro que o senhor mandou fazer.
Ao ouvir isso, Nabucodonosor ficou furioso e mandou chamar Sadraque, Mesaque e Abede-Nego. Eles foram levados para o lugar onde o rei estava, e ele lhes disse:
- É verdade que vocês não prestam culto ao meu deus, nem adoram a estátua de ouro que eu mandei fazer? Pois bem! Será que agora vocês estão dispostos a se ajoelhar e adorar a estátua, logo que os instrumentos musicais começarem a tocar? Se não, vocês serão jogados na mesma hora numa fornalha acesa. E quem é o deus que os poderá salvar?
Sadraque, Mesaque e Abede-Nego responderam assim:
- Ó rei, nós não vamos nos defender. Pois, se o nosso Deus, a quem adoramos, quiser, ele poderá nos salvar da fornalha e nos livrar do seu poder, ó rei. E mesmo que o nosso Deus não nos salve, o senhor pode ficar sabendo que não prestaremos culto ao seu deus, nem adoraremos a estátua de ouro que o senhor mandou fazer.
Ao ouvir isso, Nabucodonosor ficou furioso com os três jovens e, vermelho de raiva, mandou que se esquentasse a fornalha sete vezes mais do que de costume. Depois, mandou que os seus soldados mais fortes amarrassem Sadraque, Mesaque e Abede-Nego e os jogassem na fornalha. A ordem do rei tinha sido cumprida, e a fornalha estava mais quente do que nunca; por isso, as labaredas mataram os soldados que jogaram os três jovens lá dentro. E, amarrados, Sadraque, Mesaque e Abede-Nego caíram na fornalha.
De repente, Nabucodonosor se levantou e perguntou, muito espantado, aos seus conselheiros:
- Não foram três os homens que amarramos e jogamos na fornalha?
- Sim, senhor! – responderam eles.
- Como é, então, que estou vendo quatro homens andando soltos na fornalha? – perguntou o rei. – Eles estão passeando lá dentro, sem sofrerem nada. E o quarto homem parece um anjo.
Aí o rei chegou perto da porta da fornalha e gritou:
- Sadraque, Mesaque e Abede-Nego, servos do Deus Altíssimo, saiam daí e venham cá!
Os três saíram da fornalha, e todas as autoridades que estavam ali chegaram perto deles e viram que o fogo não havia feito nenhum mal a eles. As labaredas não tinham chamuscado nem um cabelo da sua cabeça, as suas roupas não estavam queimadas, e eles não estavam com cheiro de fumaça. O rei gritou:
- Que o Deus de Sadraque, Mesaque e Abede-Nego seja louvado! Ele enviou o seu Anjo e salvou os seus servos, que confiam nele. Eles não cumpriram a minha ordem; pelo contrário, escolheram morrer em vez de se ajoelhar e adorar um deus que não era o deles. Por isso, ordeno que qualquer pessoa, seja qual for a sua raça, nação ou língua, que insultar o nome do Deus de Sadraque, Mesaque e Abede-Nego seja cortada em pedaços e que a sua casa seja completamente arrasada. Pois não há outro Deus que possa salvar como este.
Então o rei Nabucodonosor colocou os três em cargos ainda mais importantes na província da Babilônia.”

Versículo-chave:

- Ó rei, nós não vamos nos defender. Pois, se o nosso Deus, a quem adoramos, quiser, ele poderá nos salvar da fornalha e nos livrar do seu poder, ó rei. E mesmo que o nosso Deus não nos salve, o senhor pode ficar sabendo que não prestaremos culto ao seu deus, nem adoraremos a estátua de ouro que o senhor mandou fazer.
(Daniel 3:17-18)

Meditação:

Duas palavras apenas, mas que nos dão a fé para passarmos pelas fornalhas da vida: “Se não”. A fé que Sadraque, Mesaque e Abede-Nego tinham firmava-se profundamente na soberania de Deus sobre toda a criação e em seu cuidado para com seu povo na Babilônia. Mas se Deus não decidisse tirá-los da fornalha, ainda assim não adorariam o bezerro de ouro de Nabucodonosor. A história do que aconteceu a Daniel e a seus amigos é uma fonte de ânimo e confiança para nós hoje. Jamais ficamos a sós em nossas fornalhas. O Senhor está conosco quando as chamas das dificuldades e provações nos envolvem. Ele está pronto a unir-se a nós no calor da vida, se pudermos dizer: “Se Deus pode ajudar-me nesta situação, ele me ajudará. Mas ainda que ele decida não intervir da maneira que eu gostaria, não desistirei, pois estou vivo para sempre. Nada nesta vida pode separar-me do seu amor.”
Esse tipo de submissão da dor e dos problemas da vida solidifica a crença de que jamais estamos sozinhos. As palavras que trouxeram o quarto homem, libertarão o seu poder hoje. Há um maravilhoso encontro de poder e paz sempre que sabemos com certeza que fornalha alguma ficará sem o Senhor, e que nada pode destruir nosso relacionamento com ele. Podemos ter o gozo do Senhor se possuirmos uma qualidade de fé que prossegue a despeito de tudo. Nossa esperança não se baseia no conseguir que Deus faça o que queremos, mas em desejar a ele, a despeito de como os eventos se resolvem.

Pensamento do dia:

“Através de tudo, através de tudo, aprendi a confiar em Deus” (André Crouch).

(“O que Deus tem de melhor para a minha vida”, Lloyd John Ogilvie, Ed. Vida, meditação de 08 de dezembro)

quinta-feira, 23 de abril de 2009

As crônicas de Marvin - 06

Prelúdio de uma “caça às bruxas”

Foi desta forma que passei de vingador a conselheiro das testemunhas de Jeová. Assim foram os dias que se seguiram à minha auto-escolha como uma espécie de profeta.
Eu poderia simplesmente me negar a aconselhar qualquer pessoa. Agora eu tinha autoridade para isto. Agora todos queriam saber o que eu pensava. E eu não precisava mais da atenção deles. Eu precisava da atenção das pessoas quando me encontrava sozinho antigamente, procurando alguém para conversar. Alguém que eu pudesse chamar de amigo. Agora que eu havia me acostumado, não me importava mais com eles.
Mas não poderia fazer algo muito drástico, para não chamar muito a atenção. Uma coisa que tive em mente ao planejar minha vingança era de introduzir sempre mudanças sutis. Esta era a forma de agir da Torre, e ela provou na prática que era uma tática boa para manter adeptos. Eu queria mostrar ao máximo de pessoas possível, como eles estavam sendo enganados. Para isto, eu teria que ficar o maior tempo possível na liderança.
Por isto, a primeira coisa que eu fiz foi elaborar um discurso para fortalecer o papel dos anciãos. Eles já se dispuseram com toda a alegria do mundo para fazer este papel mesmo. Tive que lembrar que aquele era o arranjo estabelecido por Jeová. Não foi fácil elaborar o discurso, mas acredito que tenha sido um sucesso. Muitos deixaram de me procurar, embora ainda houvesse aqueles que me procurassem. Este discurso eu fiz no primeiro fim de semana após o nosso congresso de distrito.
Assim, tudo foi mais tranquilo depois do discurso. Agora eu teria mais tempo para planejar outras formas de evidenciar os erros das testemunhas de Jeová.

23 de agosto de 2051, 19:00

Estava voltando do meu serviço naquele dia. Já estava me acostumando a ver os irmãos lotando o ônibus e conversando sobre o Novo Mundo. Pelo menos agora eles não me seguiam até em casa.
Resolvi passar na feira que havia perto de casa para fazer as compras do mês. Não ia comprar muita coisa, e grande parte era besteira. O doce de leite que vendiam ali era o melhor de todos...
Estava em uma das bancas, escolhendo o que eu iria levar, quando ouvi uma voz ao meu lado, dizendo:
- Olá, irmão. Você por aqui.
Pensei logo: “droga, me acharam aqui também...” Quando me virei para olhar, qual não foi minha surpresa ao ver a irmã Priscila, uma das duas irmãs que pregaram aquele dia em minha porta? Diante de tanta beleza, só pude sorrir.
- Olá, irmã. Como está?
Para minha sorte, ela tinha muito mais experiência em escolher legumes do que eu. Afinal de contas, era ela quem estava responsável por fazer a feira na casa dela. Ela fez questão de me ensinar todos os detalhes relevantes na hora de escolher os legumes. Ela era muito espontânea, e sabia sempre puxar conversa. Para alguém como eu que não sabe conversar, ter uma companhia assim é essencial. Além do mais, ela possuía uma alegria invejável e contagiante. Era difícil não ficar alegre também. Me lembro que no dia que resolvi estudar com as testemunhas, foi ela quem tomou a iniciativa de conversar comigo. Talvez por isto eu sempre tive uma grande simpatia por ela. Está certo que ela nunca me deu atenção depois daquele dia, mas eu já estava me conformando com o fato de que não costumo chamar muita atenção.
- Irmão, agora que você está tão destacado na congregação, e os irmãos sempre procurando sua ajuda, você deve estar muito sem tempo, não?
- Bem, não tenho tempo como tinha antigamente... Mas não posso reclamar. Estou gostando de tudo. Por que está me perguntando isto?
Quem sabe ela esteja querendo marcar um encontro? Hehehe... (engoli um sorriso)
- Hummm, sabe, é que eu queria aproveitar esta chance que estou tendo de falar com você à sós, para te confessar algo que está “martelando” em minha cabeça já há algum tempo...
Eu juro que tentei encarar isto com naturalidade. Mas não dei conta... É mesmo, eu agora tinha saltado para o topo da lista dos casáveis... Será? Será? Puxa, foi tudo tão repentino...
- “Martelando”? O que seria irmã?
- Bem, irmão. Eu queria que não se chateasse comigo...
- Não vou me chatear, pode falar...
Como eu poderia me chatear com alguma coisa que ela me dissesse? Sou todo ouvidos!!
- Está bem. Irmão, sabe, eu sempre pensei que você fosse muito esquisito... Fechado, no seu canto... Parecia ser de outro planeta...
Realmente eu estava enganado. Puxa, que sinceridade mortal. Valeu por fazer meu dia melhor, irmã.
- ... você sempre nos olhava com aquele olhar estranho... Dava calafrios, sabe? Primeiro a gente achou que você era bobo, ou coisa parecida, depois pensamos que você era safado e até colocamos em você o apelido de “o tarado da rua 10”...
Naquele momento percebi ali que as pessoas que dizem gostar de sinceridade são mentirosas. Eu não gosto de sinceridade, eu gosto de elogios! Tente ser sincero com alguém para ver se ele não te esgana... Basta observar que quando alguém quer ofender outra pessoa, ela simplesmente diz o que vai dizer e completa que está sendo sincera, como forma de se desculpar.
- Eu???
- Sim... desculpa por dizer isto tudo, irmão... Mas eu precisava te dizer isto, pois agora eu percebi o quanto fui tola... Me perdoa irmão... Sabe, esta vida é cheia de surpresas mesmo. Jeová é sábio o bastante em escolher a pessoa mais esquisita neste mundo para mostrar para nós o quanto nosso julgamento é errado e superficial...
E o Oscar de esquisitice vai para... Marvin!!!! Obrigado a todos, dedico este meu prêmio aos meus pais, que possibilitaram minha existência.
- Puxa, irmã, é claro que te perdoo... Eu não poderia guardar mágoa de você, ainda mais depois de toda sua sinceridade.
- Você me perdoa mesmo?
- Claro! Esqueça isto. Você pediu desculpas, isto é o que importa.
Foi então que ela deu aquele sorriso. Era um sorriso tímido, que eu nunca tinha visto em uma pessoa tão comunicativa como ela. Seus olhos também brilhavam, com um brilho diferente... Como se tivessem ganhado vida. Ela estava envergonhada da confissão, mas parecia estar mais “leve”.
- Obrigado, irmão. Eu tenho que ir.
Então ela olhou para os lados, talvez para ver se encontrava alguém conhecido. É claro que não havia ninguém naquela hora, eu estava até surpreso de encontrá-la. Para minha surpresa, ela não estava procurando uma nova companhia. Ela subitamente me deu um beijo no rosto, e saiu correndo...
- Tchau, Marvin!
A vida naquele momento parecia um filme, correndo em slow motion. Eu só a via correndo pela multidão, como se quisesse esconder. Eu estava paralisado. Mas por qual razão? Talvez eu tivesse percebido que ela foi realmente sincera em tudo que fez e disse. Talvez ela agora gostasse mesmo de mim. E isto era inédito para mim. Já me enganei muitas vezes com as pessoas, mas aquela experiência foi muito diferente... Daquela vez, eu estava realmente feliz.
Estava voltando para casa, enquanto pensava nestas coisas. Como deveria encarar o que aconteceu? Deveria aproveitar o momento? Deveria negá-la para que quando revelasse meus planos mais tarde, ela não me odiasse?
Estava passando pela porta da irmã Ana Clara neste momento. Foi quando me lembrei que já havia algum tempo que ela não estava indo às reuniões. Ela era viúva, e sozinha. Vendo aquela casa de luzes apagadas me fez lembrar dela. O que aconteceu com ela? Talvez a felicidade que me acompanhava aquela hora me fez decidir por investigar isto pessoalmente.
Toquei a campainha. Aguardei uns 5 minutos e nada. Toquei mais uma vez. Nova demora. Resolvi insistir mais um pouco, só que não esperando tanto tempo. Foi assim que pude reparar na cortina da janela se movimentando. Ela tinha me visto, e foi me atender.
Sua cara não era das melhores. Estava pálida, abatida.
- Irmã, fiquei preocupado com você. O que houve?
- Eu não estou me sentindo bem, irmão. Eu sei que você vai pensar que minha fé não é grande o suficiente, mas irmão, neste momento estou sentindo uma tristeza tão grande que mal posso suportar...
- Mas, por que eu acharia que você não tem fé suficiente?
- Ora, irmão, foi o irmão Marcos que me preveniu para não deixar que minha fé desapareça... Eu não sou tão forte quanto gostaria... Sinto muito...
- Não há necessidade de desculpas, irmã... Todos ficamos tristes de vez em quando...
- Ao ponto de desejar a própria morte? Pois não consigo deixar esta idéia de lado, irmão...
Percebi então que a alegria que me acompanhava havia pedido licença para tomar água. Ainda não entendia por que ela estava daquele jeito...
- Mas o que aconteceu para você estar assim?
- Irmão, eu fiquei muito feliz por você ser escolhido para uma tarefa tão importante. Você sempre foi atencioso comigo, não poderia ser outra pessoa além de você. Mas não posso deixar de lembrar que minha única filha, a única pessoa que ainda me resta, abandonou Jeová para viver no mundo... Faz 5 anos que não posso sequer olhar na cara dela... Sempre que penso nisto, me lembro de como eu e meu marido esperávamos pelo nascimento dela. Nos vestidinhos que compramos, no berço... Me lembro das primeiras palavras. Me lembro de como ela contava empolgada como tinha conhecido novas amiguinhas na escola. Me lembro dos livros de estórias que comprei, para contar para ela à noite, e como ela dormia como um anjinho... Agora não consigo nem dar um abraço nela, e às vezes sinto tanta saudade dela, que parece que vou morrer sufocada...
A voz baixa e tranquila adicionava a melancolia necessária para contagiar até mesmo eu com aquela tristeza... É, eu também sabia o que era solidão...
- Irmã, por que eu te faço lembrar dela?
- É por quê você é uma das testemunhas de Apocalipse... Isto quer dizer que o fim está mais próximo do que nunca... Isto quer dizer que eu não tenho muito tempo mais para convencer minha filha a voltar... Em pouco tempo, ela não estará mais conosco... Minha única filha... Eu nunca mais a verei...
Fez-se um breve silêncio. Ela então continuou...
- Irmão, eu peço desculpas pela minha fraqueza... Mas eu simplesmente não consigo mais ir às reuniões... Todo mundo lá está feliz pela proximidade do dia de Jeová. Eles já não fazem parte do mundo, e certamente muitos deles estarão no paraíso... Eu não consigo ficar feliz... Não poderia chorar no meio deles, e estragar a alegria que eles possuem... Tudo que eu queria era abraçar mais uma vez minha filha... Eu sei que isto é errado... Se você me condenar, eu não me importo irmão... Eu mereço isto... Não consigo mais fazer nada para Jeová... Sou inútil agora...
Eu tinha planejado toda minha vingança direitinho. Tinha imaginado cada caso. Mas para isto não estava preparado. Eu não tinha planejado me arrepender.
Vingança?
À primeira vista me parecia uma ótima opção. Mas naquele momento eu percebi que muitas vezes se paga um preço alto por um pouco de auto-satisfação. Eu me sentia como um assassino, e tinha acabado de tirar o último fio de vida daquela senhora... Aquela senhora que agora sentava-se em uma cadeira, e se colocava a chorar. Na mesma noite recebi dois choques, e eu ainda não conseguia compreender o significado daquilo. O que eu faria? O que eu diria? Eu não era nada. Eu não tinha sabedoria suficiente para lidar com aquilo. Eu era um tolo brincando com a vida das pessoas...
- Irmã, eu é que tenho que te pedir desculpas...
Ela enxugou o rosto...
- Mas por quê, irmão...? Você não fez nada.
- Exatamente, irmã... Eu não fiz nada... Este é meu erro...
Me aproximei dela, e a abracei. Assim ela começou a chorar novamente... Quem já foi testemunha de Jeová sabe mais do que ninguém que o amor entre eles é um amor distante, praticado verbalmente. E era exatamente as palavras que me faltavam... Um abraço era a última coisa que ela poderia esperar de mim, mas tinha o mesmo efeito de grandiosas palavras do mais hábil orador.
As pessoas precisam umas das outras. Ninguém vive sozinho. Elas podem se enganar às vezes, mas no fundo, elas estão sempre buscando o reconhecimento de alguém. Talvez o que consolou aquela senhora naquele momento foi saber que eu a reconhecia, que eu me importava com ela.
- Irmã, volte a ir à congregação. Nós vamos cuidar de você. Eu sou seu amigo, acima de tudo. Não quero te ver triste.
- Mas quase ninguém dá atenção para mim lá, irmão. Acho que ali só você e a irmã Amanda que se preocupam comigo.
- A Amanda?
- Sim... Ela é sempre tão atenciosa com todos...
Disto eu não sabia... Ela quase nunca falou comigo...
- Pois então, irmã... Já é um começo. Aos poucos, conversando com todo mundo, faremos mais amizades... Façamos o seguinte... Eu venho aqui na próxima reunião para ir com você, o que acha?
Ela ficou relutante, mas consegui convencê-la... Fui embora, mas ainda com uma certa melancolia... Tudo era mais fácil quando eu tinha que simplesmente me divertir às custas das testemunhas de Jeová... Infelizmente cometi o maior erro de todos, eu esqueci que eu estava lidando com pessoas, e muitas delas pessoas sinceras. Pessoas que sofrem, que se alegram, pessoas estas que estão de certa forma presas.
Me lembrei então da Priscila, correndo pela multidão. O que há de errado com aquele povo? Então compreendi que eles eram proibidos de ser imperfeitos. Já dizia o ditado, errar é humano. Eles estavam desesperadamente tentando deixar de ser humanos. Buscavam a santidade e perdiam a humanidade. Eles estavam proibidos de amar, e principalmente de demonstrar este amor. Havia uma espécie de lei que ditava como devia-se comportar quando se gostava de alguém, e isto tornava as relações tão superficiais, que a última coisa que se percebia ali era o sentimento (e a espontaneidade). Era um grande teatro, feito para agradar ao pequeno grande público. Isto obrigava as pessoas a se esconder quando desejavam vivenciar de fato o tão falado amor...
Mas eles estavam proibidos também de sofrer... A busca pela perfeição não podia permitir sofrimentos... Todas aquelas pessoas sentadas em suas cadeiras, cheias de preocupações, sofrendo seus problemas em silêncio para que a imagem de religião perfeita fosse mantida, às custas das imperfeições sufocadas. Os aconselhamentos tinham que ser sigilosos.
Aquela noite choveu. Uma chuva mansa, sem vento. Era quase como se todos os anjos juntos chorassem de uma só vez, junto comigo. Desde que jurei vingança até aquela noite, não tinha pensado seriamente sobre Deus. Agora, estava eu pedindo sabedoria... Certamente alguma coisa eu faria, e iria começar colocando meu velho plano em prática. Era hora de tirar as máscaras.

27 de agosto de 2051, 19:00

Como havia prometido, passei na casa da irmã Ana Clara. Ela estava melhor, mas ainda abatida. Perguntei a ela como ela passou aqueles dias, e ela me contou que ficou bem melhor.
Chegamos então na congregação. Como era de se esperar, todo mundo me cercou, deixando a irmã Ana Clara em segundo plano. Pelo menos a irmã Amanda se aproximou dela, e puxou conversa.
Ainda estava com raiva daquelas pessoas. Não podia mais suportar aquilo. Então fui até a frente, e pedi para iniciar a reunião. Então, falei para todos:
- Boa noite, irmãos. Gostaria de falar algumas coisas antes de iniciarmos a reunião de hoje.
Estavam todos com seus lindos sorrisos, aguardando o que eu tinha para dizer.
- Em primeiro lugar, gostaria de pedir aos irmãos que não me cerquem mais quando entrar neste salão. Há irmãos aqui que precisam muito mais de atenção do que eu. Hoje por exemplo, eu quero que todos se levantem, vão até a irmã Ana Clara, dêem um abraço nela, e digam a ela que ela é uma irmã preciosa para todos.
Não foi difícil reparar a surpresa daquelas pessoas. Eles se olhavam, como se perguntassem, “o que deu nele”?
- Isto mesmo, eu quero que vocês façam isto. De preferência agora, por favor.
O irmão Marcos então se levantou em defesa deles.
- Mas irmão, isto é dar honra indevida a uma pessoa...
- Não, irmão. Isto não é dar honra indevida a uma pessoa. Isto é diminuir a honra que vocês dão a vocês mesmos, e dar a uma pessoa que precisa e a merece.
Imediatamente ele fez uma cara de que não gostou da resposta. Não é para menos.
- E não faça esta cara. Você deveria ser o primeiro a ouvir e aplicar a correção dada. Seja humilde, você deveria ser o primeiro na fila.
Mas ele não foi o primeiro. A irmã Amanda, que já estava perto da irmã Ana Clara, foi a primeira. Depois dela, o resto da congregação. Havia tempo que não via a irmã Ana Clara tão feliz.
Eu já previa que o clima ali ficaria pesado. Foi por isto que providenciei uma música sobre amor no cancioneiro... A letra era mais ou menos assim:

One man come in the name of love
One man come and go
One man come, he to justify
One man to overthrow

In the name of love
One more in the name of love
In the name of love
One more in the name of love

One man come on a barbed wire fence
One man he resist
One man washed on an empty beach
One man betrayed with a kiss

In the name of love
One more in the name of love
In the name of love
One more in the name of love

Early morning, April four
Shot rings out in the Memphis sky
Free at last, they took your life
They could not take your pride

In the name of love
One more in the name of love
In the name of love
One more in the name of love

Spoken: For the Reverent Martin Luther King - saint.

In the name of love
One more in the name of love
In the name of love
One more in the name of love

In the name of love

Ninguém parece ter reconhecido a letra, mas cantaram muito bem, e até com alegria. Formaram um belo coro, e fizeram questão de ignorar a menção a Martin Luther King...
Mas esta não era a parte principal... O ponto máximo da reunião foi o aviso final, uma carta enviada do corpo governante a todas as congregações. Ela dizia assim:

Caros irmãos,

É com muito pesar que viemos por meio desta comunicar que alguns irmãos têm abandonado a fé verdadeira. Estes irmãos preferiram seguir as próprias especulações do que aguardar a orientação do Escravo Fiel e Discreto em tempo oportuno.
Há alguns dias, foi lançada uma matéria sobre o papel do Mediador para os cristãos. Parece que alguns irmãos ficaram com dúvidas se Jesus Cristo sendo uma criatura, poderia de fato nos salvar. Esta dúvida em si já seria motivo de grande preocupação. Mas percebeu-se que a partir desta dúvida, alguns irmãos concluíram que a saída lógica para isto seria crer, como algumas religiões da Babilônia a Grande, que Jesus seria Deus.
É por este motivo que estamos pedindo para os anciãos de cada congregação para conduzirem uma comissão para apurar quem despertou este tipo de dúvida, e questionar até que ponto ela foi prejudicial às pessoas. Os irmãos que apresentarem a fé comprometida serão desassociados por período indeterminado, a fim de salvar as ovelhas que ainda se mantém na fé verdadeira.
Se algum irmão souber de alguém que tenha apresentado tais dúvidas, que seja fiel a Jeová, e avise os anciãos, para que eles possam cuidar deste irmão da forma apropriada.

Pronto, meu primeiro plano estava completo. Eu acabei de abrir a caixa de Pandora, e ninguém sabe o que vai acontecer de agora para frente. Dava para perceber a cara assustada de todos eles... Dava ainda para ver o mórbido semblante satisfeito de alguns...

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