terça-feira, 31 de outubro de 2017

Martinho Lutero, 500 anos depois


Exatos 500 anos atrás, o dia deve ter amanhecido bonito e tranquilo em Wittenberg, na Alemanha, e ninguém ali, naquela fria manhã de outono, imaginava que estava prestes a acontecer um incidente que mudaria a história da humanidade para sempre.

Afinal, o que importava à gente naqueles tempos era sobreviver um dia mais, da maneira que fosse possível, e quanto mais supersticiosamente fosse, menos ruim seria para suas invariáveis e miseráveis vidas sem futuro algum.

Não se sabe exatamente a que horas daquele dia um jovem monge agostiniano cruzou a praça central para afixar na porta da catedral um pequeno manuscrito em que desfilava em 95 teses sua indignação contra o comércio de indulgências que era obrigado a ver - talvez diariamente - naquele mesmo local.

Seu nome era Martinho Lutero e seus passos nervosos não davam a mínima ideia da importância que aquele momento teria na História.

Afinal, havia passado por ali naqueles dias um frade dominicano de nome Johann Tetzel, cuja principal incumbência era vender indulgências para garantir a reconstrução da Basílica de São Pedro, a mando do papa Leão X.

Tetzel era objeto de crítica em duas teses de Lutero:
27. Pregam doutrina mundana os que dizem que, tão logo tilintar a moeda lançada na caixa, a alma sairá voando [do purgatório para o céu].

28. Certo é que, ao tilintar a moeda na caixa, pode aumentar o lucro e a cobiça; a intercessão da Igreja, porém, depende apenas da vontade de Deus.
O fato é que - ao afrontar a Igreja oficial - Lutero escancarou, naquele dia 31 de outubro de 1517, as portas da modernidade. Encerrava-se ali - de fato - a Idade Média e o poder absoluto da Igreja de Roma.

Lutero era o homem improvável para aquela missão, o que revela os caminhos misteriosos que Deus elege para fazer sua vontade se expressar e ser concretizada no meio (e por meio) de homens e mulheres comuns, como você e eu.

Numa definição moderna, Lutero era 8 ou 80, capaz dos maiores acertos e erros na mesma proporção. Critique-se o que se quiser em sua vida, mas ele não pecava por omissão.

Aliás, é fácil criticá-lo hoje em dia pelo que fez de 1517 em diante, apesar do anacronismo do olhar retrovisor. 

Difícil mesmo é encontrar alguém que tivesse se aventurado a pensar em fazer o que ele fez.

Lutero tinha uma opinião (talvez forte demais, muitas vezes sarcástica) formada sobre tudo e não esperava que pisassem no seu calo para expressá-la.

Fez muitos inimigos, mas - e daí? - o mundo precisou se moldar ao seu pensamento revolucionário.

Uma conjunção (humanamente) inesperada de fatores políticos, pessoais e religiosos fez com que a ousadia de Lutero frutificasse muito além do que ele podia haver imaginado ou planejado.

Por isso estamos nós aqui hoje celebrando os 500 anos como frutos não de um gesto isolado de um homem chamado Martinho Lutero, mas do fato de Deus tê-lo usado como instrumento humano assumidamente imperfeito mas aberto e disponível a revolucionar os tempos, os modos e as eras segundo e seguindo a vontade do Seu Senhor.

Engana-se quem crê que sua importância se restringe ao círculo fechado da religião.

Traduziu a Bíblia na língua alemã, tornando o sagrado popular, fazendo a voz de Deus audível a quem realmente precisava (e queria) compreendê-la.

Preocupou-se com a educação pública, não só tornando as escolas acessíveis a todos mas instando os pais e as autoridades locais a educarem as crianças com qualidade e diversidade. Como disse:
Temos hoje os melhores e mais doutos jovens companheiros e homens com conhecimentos linguísticos e toda a ciência; esses poderiam muito bem produzir algo útil se fossem aproveitados para instruir a juventude. Não está evidente que hoje se pode formar um menino em três anos de modo que aos 15 ou 18 anos sabe mais do que lhe puderam ensinar até agora todas as universidades e conventos? Afinal, que se aprendeu até agora nas universidades e conventos a não ser tornar-se burro, tosco e estúpido? Houvem quem estudasse vinte, quarenta anos e não sabe nem latim nem alemão. Não quero nem falar da vida vergonhosa e dissoluta na qual a nobre juventude foi corrompida tão miseravelmente.

(LUTERO, Martinho. Aos Conselhos de Todas as Cidades da Alemanha para que criem e mantenham escolas cristãs. 1524. Tradução de Ilson Kayser. MARTINHO LUTERO. Obras Selecionadas. São Leopoldo: Sinodal. Porto Alegre: Concórdia. 1995. Vol. 5, pág. 306)
A repercussão de suas "marteladas" num dia qualquer em Wittenberg ajudou a gerar a modernidade, moldou a Alemanha e provocou a reação da Igreja Católica, que - na verdade - devia lhe agradecer porque, não fosse pela Reforma luterana, teria enfrentado dias e problemas muito piores.

No fundo, o Concílio de Trento (1545-1563) estruturou a Contra-Reforma católica que salvou Roma da extinção pura e simples. Tudo por Lutero!

A partir dali, os papas souberam que seu poder não era mais ilimitado e incontrastável, e os católicos encontraram outros rumos ao longo dos séculos que lhes permitem hoje celebrar conjuntamente com os luteranos os 500 anos daquele dia que, de tão iluminado e glorioso na História, espantou as trevas que ameaçavam devorar o bocado incipiente e medíocre que havia de civilização.

Trevas estas que, lamentavelmente, nunca desapareceram, e estão sempre prontas a mudar de nome e roupagem para destruir não só a Igreja, mas principalmente a humanidade.

Talvez tenha chegado a hora de novos Luteros e novas Reformas...


Encerrando nosso mês dedicado a Martinho Lutero, agradecendo aos nossos leitores pela paciência e companheirismo em nos acompanhar, e louvando a Deus por tê-lo escolhido e celebrando sua vida e sua magnífica obra, cantamos inicialmente seu hino clássico "Castelo Forte" com o Coral e Orquestra Filarmônica da UniCesumar:


E convidamos os nossos amigos leitores a participarem de uma sessão-pipoca para ver o ótimo filme "Lutero" (2003), com as brilhantes atuações de Joseph Fiennes, Peter Ustinov (ele próprio uma lenda da atuação, em seu último filme), Bruno Ganz e Alfred Molina, entre outros:




Celebrando os 500 anos da Reforma com Lutero - parte 31


PELA EDUCAÇÃO DOS FILHOS

Uma prédica de Martinho Lutero para que se mandem os filhos à escola

A todos os meus prezados senhores e amigos, pastores e pregadores que seguem fielmente a Cristo, Martinho Lutero.

Graça e paz em Cristo Jesus, nosso Senhor.

Meus muito amados senhores e amigos. Vedes com vossos próprios olhos como o asqueroso Satã nos ataca agora de todos os lados com violência e com astúcia, e nos aflige com toda sorte de pragas, para destruir o santo Evangelho e o reino de Deus. Ou então, não podendo destruí-los, pelo menos procura por obstáculos e atrapalhar por todos os meios para que não progrida ou alcance o predomínio. Entre suas artimanhas uma das mais importantes (se é que não é a mais importante) consiste em aturdir e enganar as pessoas simples de tal maneira que não queiram mandar seus filhos à escola nem encaminhá-los para o estudo. Ele lhes insufla os seguintes pensamentos perniciosos: como já não existe mais a perspectiva da monjaria masculina ou feminina e do clericato, como vinha acontecendo até agora, não há mais necessidade de pessoas instruídas nem de muito estudo; o que interessa é tratar de conseguir alimento e riquezas.

Isso me parece uma verdadeira obra de mestre da arte diabólica. Ao ver que hoje já não pode fazer e agir como quer, procura impor sua vontade a nossos descendentes, preparando-os diante de nossos olhos de maneira que nada aprendam e nada saibam, a fim de que quando estivermos mortos, tenha à disposição um povo despreparado, despojado e indefeso, com o qual possa fazer o que quer. Pois se desaparecerem a Escritura e as ciências, nada mais restará na Alemanha do que uma rude e selvagem horda de tártaros e turcos, e, quem sabe, uma pocilga e uma súcia de animais selvagens. Por enquanto, porém, lhes esconde sua intenção, cegando-os com maestria, a fim de que, quando as coisas chegarem a esse ponto e eles o enxergarem com seus próprios olhos, possa rir-se de todo o lamento e choro daqueles que, ainda que quisessem, não mais podem remediar a situação, e tenham que confessar: tarde demais. Daí então estariam dispostos a dar cem florins por um erudito medíocre, enquanto agora não teriam dado sequer dez por dois eruditos completos.

É o que mereceriam, porque agora não querem manter nem sustentar mestres e professores íntegros, honestos e disciplinados, postos à disposição e esforço, e além disso com pouco gasto e dinheiro. Em troca, recebem mestres de aluguel e professores auxiliares, grosseiros, asnos e lorpas, como os tiveram anteriormente, os quais somente ensinaram a seus filhos como ser burro, apesar dos altos custos. Em contrapartida, violentam suas mulheres, filhas e empregadas, pretendendo ser senhores da casa e dos bens, como vinha acontecendo até agora. Esta deve ser a recompensa para sua grande e escandalosa ingratidão, para a qual o diabo os induz com tanto ardil.

Visto que, como curas das almas, devemos ser vigilantes contra esse e outros ardis maliciosos, por força de nosso ministério, certamente não podemos cochilar neste ponto de tamanha importância; devemos, muito antes, estimular, advertir, encorajar, instigar com toda a força, empenho e cuidado, para que o homem simples não se deixe enganar e seduzir tão miseravelmente pelo diabo. Por isso cada qual deve ficar atento e desempenhar seu ministério, para que não cochile nesta matéria, permitindo que o diabo seja Deus e senhor. Pois se silenciarmos e dormirmos nesse ponto, deixando a juventude no abandono e permitindo que nossos descendentes se tornem tártaros e animais selvagens, então será por culpa de nosso silêncio e ronco, e teremos que prestar contas rigorosas sobre isso.

Sei perfeitamente que muitos dentre vós levam esse assunto adiante também sem minha exortação, melhor do que o poderia fazer e aconselhar. Além disso publiquei anteriormente um livrinho especial sobre essa matéria, dirigido aos conselheiros nas cidades. No entanto, caso alguém tivesse esquecido o assunto ou quisesse seguir meu exemplo com mais afinco, enviei-vos este sermão, pronunciado mais do que uma vez cá entre os nossos, para que percebais com quanta fidelidade estou colaborando convosco e que sempre estamos cumprindo nossa parte, de modo que perante Deus estamos desculpados no que se refere a nosso ministério. Sem dúvida, o assunto agora depende de nós, porque vemos que também os chamados clérigos procedem nessa matéria como se quisessem ver a ruína de todas as escolas, da disciplina e do ensino, e inclusive estão dispostos a colaborar para seu destroçamento, porque já não têm a mesma liberdade arbitrária como até agora. É o diabo que efetua isso através deles. Que Deus nos ajude. AMÉM.

(LUTERO, Martinho. Uma prédica de Martinho Lutero para que se mandem os filhos à escola. 1530. Tradução de Ilson Kayser. MARTINHO LUTERO. Obras Selecionadas. São Leopoldo: Sinodal. Porto Alegre: Concórdia. 1995. Vol. 5, págs. 331-333)



segunda-feira, 30 de outubro de 2017

Celebrando os 500 anos da Reforma com Lutero - parte 30


SOBRE O CASAMENTO E O CELIBATO


S. Paulo escreve: É bom para os viúvos e as viúvas que permaneçam no estado em que também eu vivo. Caso, porém, não se dominem, que se casem. É melhor casar do que viver abrasado. [1 Cor 7.8-9]

Sem dúvida, é bom permanecer como S. Paulo. No entanto, coloca ao lado disso a razão por que não é bom permanecer assim, e por que é melhor casar-se de novo do que permanecer viúvo. S. Paulo resumiu todas as razões para o casamento num só ponto e delimitou toda a glorificação da castidade nas palavras: “Caso, porém, não se dominem, que se casem”. Isso significa: a necessidade te obriga a casar. Por mais que se glorifique a castidade, e por mais nobre que seja a dádiva da castidade, a necessidade a impede, de maneira que poucos são aptos para ela, pois não se dominam. Embora sejamos cristãos e tenhamos o Espírito de Deus na fé, nem por isso está eliminada a criatura de Deus, tu como mulher, eu como homem. Apesar disso o Espírito deixa ao corpo sua natureza e suas funções naturais, como comer, beber, dormir, digerir, defecar, como o faz o corpo de qualquer pessoa.

Da mesma forma também não elimina os caracteres femininos ou masculinos, seu instinto, sua fecundidade e capacidade de procriar. O corpo de um cristão se procria e se multiplica da mesma forma como o de outros seres humanos, pássaros e todos os animais, para o que foi criado por Deus (Gn 1.28). Por isso um homem tem que se unir à mulher e a mulher ao homem por necessidade, quando Deus não faz um milagre por meio de um dom especial, impedindo [a destinação de] sua criatura. É isso que S. Paulo quer dizer aqui: “Quem não se domina, que se case”, como a dizer: A quem Deus não conceder o dom especial, mas deixa ao corpo, seu gênero e natureza, para este é melhor, sim, necessário, que se case, e que não permaneça nem viúvo nem virgem. Ora, Deus não tem a intenção de dar essa graça às pessoas em geral; o comum há de ser o casamento, tal como o instituiu uma vez e como criou ambos os corpos. Não anulará ou bloqueará em todas as pessoas os caracteres recebidos na criação.

Além do mais, um cristão é espírito e carne. Por causa do espírito ele não necessita de matrimônio. Visto, porém, que sua carne é carne comum, corrompida em Adão e Eva, cheia de maus desejos, ele necessita do matrimônio por causa dessa mesma enfermidade e não está em seu poder livrar-se dele. Pois seu corpo tumultua, arde e tem o desejo de procriar como o corpo de qualquer outra pessoa, se não lhe vem em socorro e o dominar com o devido remédio o matrimônio. Deus tolera esse tumultuar por causa do matrimônio e seu fruto. Pois revelou em Gn 3.16 o que está disposto a tolerar no homem, ao não revogar a bênção da multiplicação, pelo contrário, a confirmou, embora soubesse que a natureza corrupta, cheia de maus desejos, não seria capaz de efetuar essa benção sem pecado.

Querer desprezar o estado matrimonial, afastar dele e querer atrair as pessoas para a castidade, visto que acarreta muito sofrimento e incômodos, de nada adianta e não vale, é um empreendimento louco e maldoso. Pois assim não se resolve o problema, porque a necessidade sempre se interpõe e diz: Não pode ser, não é possível, a gente não consegue viver neste céu. Como diz S. Paulo: “Quem não se domina, que se case”. Por outro lado, também não resolve glorificar o estado matrimonial, pois de fato é algo divino, cheio de bens espirituais, pois ninguém ou somente poucos se deixariam comover ao casamento por causa de tais bens. A natureza teme esforço e trabalho.

Existem muitos motivos para casar. Alguns se casam por causa de dinheiro e bens; grande parte casa-se por paixão, à procura de prazer e satisfação; outros ainda para gerar herdeiros. S. Paulo aponta este um, e em princípio não conheço outro mais forte do que este: a necessidade. Sim, necessidade. A natureza procura realizar-se, quer fecundar e multiplicar-se e Deus não quer que isso aconteça fora do matrimônio. Portanto, por causa dessa necessidade, todos têm que procurar o matrimônio, se quiserem viver de boa consciência e orientar-se em Deus. Além dessa necessidade, todas as demais, evidentemente, farão um mau matrimônio, especialmente a paixão que leva as pessoas doidas a entrarem levianamente num estado tão sério, necessário e divino, para logo depois se darem conta do que prepararam para si mesmos.

No entanto, que significa: “Casar-se é melhor do que viver abrasado”? Sem dúvida, toda pessoa que quer viver sem matrimônio e castamente sem a graça [especial] entenderá essa palavra e saberá o que significa. Pois S. Paulo não fala de segredos, mas dos sentimentos comuns e evidentes daqueles que vivem castamente sem serem casados e que, não obstante, não receberam a graça para tanto. Pois diz que vivem abrasados todos os que vivem na castidade sem possuírem a graça, e aponta como único remédio o matrimônio. Se isso não fosse algo tão comum ou se existisse outra solução, não teria aconselhado o matrimônio, embora em alemão se fale do “sofrimento oculto”, que não seria tão comum se fosse um mal oculto.

Também é indubitável que aqueles que têm a graça da castidade não obstante sentem às vezes o mau desejo e são tentados. Mas é algo passageiro, por isso não se pode falar em ardor. Resumidamente, viver abrasado é o ardor da carne que não cessa de tumultuar, é a atração diária pela mulher ou pelo homem que existe em toda parte onde não há gosto e amor pela castidade, de maneira que são tão poucos os que não vivem abrasados, como são poucos os que receberam a graça de Deus para a castidade. Esse ardor é mais forte num, mais brando no outro. Alguns o sentem com tanta violência que se satisfazem a si mesmos. O lugar de todos esses é o casamento. Ouso até dizer: Para cada pessoa casta deve haver mais do que cem mil pessoas casadas.

Nada melhor do que um exemplo: S. Jerônimo, que glorifica a castidade da forma mais exagerada, confessa que não conseguiu dominar sua carne nem com jejum nem com vigílias, de modo que sua castidade se lhe tomou extremamente amarga. Quantas horas boas deve ter perdido com pensamentos carnais! Insistia em que a castidade deve ser trabalhada e que é algo comum. Ora, o homem vivia abrasado e devia ter-se casado. Aí percebes o que significa viver abrasado. Ele foi um daqueles que devia ter casado, e injustiçou-se e fez sofrer a si mesmo pelo fato de não ter-se casado. Há muitos desses exemplos nas biografias dos pais.

S. Paulo chega à seguinte conclusão: Onde não existe o especial dom de Deus, há que se viver abrasado ou casar-se. Em todo o caso (diz Paulo) é melhor casar do que viver abrasado. Por quê? Viver abrasado é castidade inexistente, ainda que não se concretize em atos, porque não é vivida com prazer e boa vontade, mas com grande desgosto, aversão e sob coerção. Desse modo ela é considerada incastidade perante Deus, pois o coração é incasto embora o corpo não ouse ser incasto. De que adianta sustentares uma castidade inexistente e incasta com grande, amargo sacrifício contra tua vontade? Em todos os casos seria melhor ser casado e fugir desse dissabor. Embora também o matrimônio tenha seus desgostos e dissabores, é possível aceita-los e de vez em quando ter seus dias de sossego e prazer. E onde, fora do matrimônio, não existe a graça [especial], é impossível consentir com a castidade e viver nela com prazer.

Aí vês quão tolos mestres e governantes são esses que em toda parte obrigam a juventude à castidade e ainda pretextam que quanto mais amarga e quanto maior a resistência, tanto melhor seria a castidade. Brinca desse jeito com outros assuntos, mas não com a castidade, pois ninguém pode aceder prazerosamente a ela quando não tiver a graça especial. Todas as demais coisas podem ser aceitas prazerosamente, desde que haja fé. Procedem como os judeus que queimavam seus filhos em sacrifício ao ídolo Moloque [cfe. Jr 32.35], de modo que até parece que S. Paulo usou o termo “arder” porque quis apontar e denunciar essa abominação. Pois que diferença existe entre manter um jovem abrasado a vida inteira num convento ou de outra forma e queimar uma criança em honra ao diabo, somente para manter uma miserável castidade inexistente?

Em homenagem a esses mestres e governantes tenho que contar o que ouvi certa vez a respeito de um homem valente, para que essas grosseiras cabeças cegas compreendam com que sabedoria procedem em seu governo. Um desses pregadores escrevera certa vez que quem quisesse prestar um serviço a Deus, deveria empreender algo grande e machucar bastante a si mesmo. Para tanto cita como exemplo a Simeão de Vitae Patrum [*], que ficou um ano inteiro apoiado numa só perna sobre uma alta coluna, orando sem cessar, nem comer nem beber, até que se desenvolveram vermes em seu pé. Ao caírem, os vermes se transformaram em pedras preciosas. É assim que deves proceder contigo, se quiseres servir a Deus (disse dito pregador). É próprio desses pregadores pregar essas mentias que o diabo sem dúvida inventou outrora por meio de malvados patifes para zombar dos cristãos, para acabar com seus milagres que faziam em grande número naqueles tempos, como se todos eles não passassem de tais ludíbrios.

Um desses pregadores doidos teve por discípulo outro doido, conforme o provérbio: “Um louco produz mais outros dez”. Este quis servir a Deus e resolveu torturar-se a si mesmo e começou a reter a urina. Tendo retido a urina por quatro dias, ficou doente; mas ninguém conseguiu dissuadi-lo e quis morrer. Até que Deus inspirou alguém que elogiou seu intento e o apoiou dizendo que ele estava certo (como se deve falar com loucos, para que o entendam, diz Salomão [cfe. Pv 26.5]). “No entanto”, disse ele, “estás fazendo isso por pura vaidade. Se assim for, de nada vale”. Ouvindo isso, desistiu de seu intento e disse: “Se é como me acabais de explicar, desisto”.

Ora, isso é uma loucura grosseira, mas não se deve desprezá-la simplesmente. Com isso Deus mostrou (como disse) o que esses mestres e governantes são capazes de aprontar. Vamos sublinhar o seguinte: a realidade é como a ensina a Escritura e toda a experiência: esta vida na terra é miserável, cheia de miséria e sofrimento, qualquer que seja a posição social que venhas a escolher (desde que seja divina). No entanto, ninguém é tão miserável como aquele a quem se ordena reter a urina ou as fezes. Seria preferível escolher qualquer das condições [de miséria e sofrimento] do que sujeitar-se a algo tão impossível. Visto que ninguém tem obrigação de cumprir tal mandamento, as pessoas não percebem o quanto é agradável urinar e defecar; enquanto isso ficam contemplando e lamentando a miséria em sua condição, que não é a décima parte do que seria essa miséria.

A mesma coisa acontece com esse fogo. Pois os casados estão livres dele, podem apagar seu fogo e esquecem o sofrimento (do mesmo modo como a mulher pensa de maneira muito diferente depois do parto do que antes e durante o parto), e passam a olhar somente para as dificuldades e dissabores de seu estado. Pois ninguém dá atenção às coisas boas que tem, e as coisas más se esquecem depois que passaram. Aqueles, porém, que vivem abrasados e não têm perspectivas, só podem zombar e chamar de loucos aqueles que são casados e, não obstante, se queixam do matrimônio. Pois estão obrigados a dominar o que não se pode dominar, e ainda deverão dominá-lo em vão e perder toda essa amarga fadiga. Sem dúvida, uma desgraça lamentável! O quanto preferiram suportar todos os dissabores do matrimônio do que esse fogo. É isso que S. Paulo quer dizer com: “É melhor casar do que viver abrasado”, querendo significar: casar é ruim, mas viver abrasado é pior. Em resumo: o matrimônio cheio de dissabores é melhor do que a castidade cheia de dissabores. O matrimônio amargo e difícil é melhor do que a castidade amarga e difícil. Motivo: esta de nada vale, aquele pode ser útil.

Digo isso a respeito do fogo que sofrem os que se dominam, que são muito poucos, pois a maioria não suporta esse ardor e não se domina, mas encontram maneiras para se livrarem dele. Disso, porém, não pretendo escrever agora. Quando, porém, se livram dele fora do matrimônio, logo a consciência os acusa, o que é a desgraça mais insuportável e a mais miserável condição na terra. O resultado final de tudo é que a maior parte dos solteiros e dos que vivem na castidade sem terem o dom para isso são constrangidos e obrigados a pecar fisicamente com incastidade, e os demais são obrigados a viver castos exteriormente e incastos interiormente. Dessa maneira aqueles levam uma vida condenável e estes, uma vida desgraçada e sem sentido. E onde estão os governantes espirituais e seculares que se preocupam com esse sofrimento das pobres almas? Com sua incitação e constrangimento [à castidade] apenas ajudam ao diabo a multiplicar diariamente essa miséria.

[*] Vitae patrum. Migne, Patrol. Lat. Tom. 73, cl. 328s. A citação refere-se a Simeão, o Estilita (390-459), que levou a vida eremita e ascética a um certo auge, vivendo sobre uma coluna [em grego stylos - "pilar"] de 20 metros. Do alto dela dirigia-se aos que o procuravam, tendo grande influência em seus dias com suas pregações de acento calcedonense [o Concílio da Calcedônia foi realizado no ano 451 d. C.].

(LUTERO, Martinho. O 7º Capítulo de S. Paulo aos Coríntios. 1523. Tradução de Ilson Kayser. MARTINHO LUTERO. Obras Selecionadas. São Leopoldo: Sinodal. Porto Alegre: Concórdia. 1995. Vol. 5, págs. 204-208)



domingo, 29 de outubro de 2017

Celebrando os 500 anos da Reforma com Lutero - parte 29


SOBRE A MÚSICA

Prefácio a todos os bons hinários

Dona Música.
Dentre todos os prazeres sobre a terra
Não há maior que seja dada a alguém
Do que aquela que eu proporciono com meu canto
E com certas doces sonoridades.
Não pode haver má intenção
Onde houver companheiros cantando bem,
Ali não fica zanga, briga, ódio nem inveja,
Toda mágoa tem que ceder,
Mesquinhez, preocupação e o que mais atribular
Se vai com todas as tristezas.
Além disso, cada qual tem o direito
Desse prazer não ser pecado,
Mas, ao invés, agrada a Deus muito mais
Do que todos os prazeres do mundo inteiro.
Ela destrói a obra do diabo
E impede que muitos malvados matem
Isto demonstra o ato do rei Davi
Que muitas vezes, com doce toque da harpa,
Impediu que Saul praticasse grande matança.
Para a palavra e verdade divina
Ela silencia e prepara o coração.
Isto Eliseu declarou,
Ao encontrar o espírito pela execução da harpa.
A melhor época do ano é para mim
Quando cantam todos os passarinhos,
Enchendo os céus e a terra
Com canto agradável e abundante.
Puxa a frente o rouxinol querido
Alegrando tudo em toda parte
Com seu canto maravilhoso;
Por isso, devemos ser-lhe sempre agradecidos
Mais ainda ao amado Deus Senhor
Que assim a criou
De modo a ser uma grande cantora
Maestrina da música.
Para ele ela canta e dança noite e dia;
Ela por nada se cansa do seu louvor,
A ele glorifica e louva também o meu canto
E lhe expressa um agradecimento eterno.


(LUTERO, Martinho. Prefácio a todos os bons hinários. 1538. Tradução de Ilson Kayser. MARTINHO LUTERO. Obras Selecionadas. São Leopoldo: Sinodal. Porto Alegre: Concórdia. 2000. Vol. 7, págs. 483-484)



sábado, 28 de outubro de 2017

Celebrando os 500 anos da Reforma com Lutero - parte 28



UM SERMÃO SOBRE A INDULGÊNCIA E A GRAÇA

Pelo Mui Digno Doutor Martinho Lutero, Agostiniano de Wittenberg

1. Em primeiro lugar, cumpre que saibam que vários novos mestres, tais como o mestre das Sentenças, S. Tomás e seus seguidores, atribuem três partes à Penitência, quais sejam: a contrição, a confissão e a satisfação. Esta distinção, em seu conceito, dificilmente ou mesmo de forma alguma se acha fundamentada na Sagrada Escritura e nos antigos santos mestres cristãos. Mesmo assim queremos admiti-la por ora e falar ao modo deles.

2. Dizem eles que a indulgência não elimina a primeira ou segunda parte – a contrição e a confissão -, mas sim a terceira, a satisfação.

3. A satisfação também é subdividia em três partes: orar, jejuar, dar esmola, e isto da seguinte forma: “orar” compreende todas as obras próprias da alma, como ler, meditar, ouvir a palavra de Deus, pregar, ensinar e similares; “jejuar” inclui todas as obras de mortificação da carne, como vigílias, trabalho, leito duro, vestes grosseiras, etc.; “dar esmolas” abrange todas as obras de amor e misericórdia para como próximo.

4. Para todos eles não resta dúvida que a indulgência elimina as obras da satisfação, que devemos fazer ou que nos foram impostas por causa do pecado. Se ela de fato eliminasse todas essas obras, nada de bom restaria que pudéssemos fazer.

5. Para muitos foi uma questão importante – e ainda não resolvida – se a indulgência elimina mais do que essas boas obras impostas, ou seja, se ela também elimina a pena que a justiça divina exige pelos pecados.

6. Desta vez não questiono a opinião deles. Afirmo, entretanto, que não se pode provar, a partir da Escritura, que a justiça divina deseja ou exige do pecador qualquer pena ou satisfação, mas sim unicamente sua contrição ou conversão sincera e verdadeira, com o propósito de, doravante, carregar a cruz de Cristo e praticar as obras acima mencionadas (mesmo que não estejam prescritas por ninguém). Pois assim diz o Senhor através de Ezequiel: “Se o pecador se converter e fizer o que é reto, não mais me lembrarei do seu pecado” [Ez 18.21s; 33.14-16]. Da mesma forma ele mesmo absolveu a todos estes: Maria Madalena, o paralítico, a mulher adúltera, etc. Gostaria de ouvir quem haveria de provar outra coisa, não levando em conta que alguns doutores julgaram poder fazê-lo.

7. O que se encontra é isto: Deus castiga alguns segundo a sua justiça ou os leva à contrição através de penas, como em Sl 88[89].31-33: “Quando seus filhos pecarem, punirei com a vara o seu pecado, mas minha misericórdia não retirarei deles”. Porém a dispensa destas penas não está na mão de ninguém a não ser de Deus somente; sim, ele não quer emiti-las, mas promete que as imporá.

8. Por isso não se pode dar nome algum à pena imaginária, tampouco sabe alguém qual seria ela, visto que não é este castigo nem as boas obras acima mencionadas.

9. Afirmo que, mesmo que a Igreja cristã decidisse e declarasse hoje que a indulgência elimina mais do que as obras de satisfação, ainda assim seria mil vezes melhor que cristão algum comprasse ou desejasse a indulgência, mas preferivelmente praticasse as obras e sofresse a pena. Pois a indulgência não é nem pode tornar-se outra coisa do que uma dispensa de boas obras e de benéficas penas, que seria melhor fossem preferidas do que abandonadas, ainda que alguns novos pregadores tenham descoberto dois tipos de penas: medicativas e satisfatórias, isto é, umas para o aperfeiçoamento, outras para a satisfação. Nós, porém, temos mais liberdade para desprezar (Deus seja louvado!) essa espécie de conversa do que eles têm pra inventá-la. Porque toda pena, sim, tudo o que Deus impõe é útil e contribui para o melhoramento do cristão.

10. De nada vale dizer que as penas e as obras seriam demasiadas, que a pessoa não conseguiria realizá-las por causa da brevidade de sua vida e que, por isso, precisaria de indulgência. Respondo que isso não tem fundamento e é pura invenção. Porque Deus e a santa Igreja a ninguém impõem mais do que lhe é possível carregar, como também o diz Paulo: Deus não permite que alguém seja tentado acima do que pode carregar [cfe. 1 Co 10.13]. É grande vergonha para a cristandade ser acusada de impor mais do que podemos carregar.

11. Mesmo que ainda vigorassem as penitências fixadas no direito canônico, de impor sete anos de penitencia para cada pecado mortal, a cristandade deveria deixar as mesmas de lado e nada mais impor acima do que cada um pode suportar. Como atualmente não mais vigoram estas determinações, tanto menos razão há para cuidar que se imponha mais do que cada um tem condições de suportar bem.

12. Diz-se muito bem que o pecador deve ser remetido ao purgatório ou à indulgência com a pena restante, mas dizem ainda outras coisas sem fundamento e prova.

13. Incorre em grave erro quem pretende fazer satisfação por seus pecados, pois Deus os perdoa a toda hora grátis, por graça inestimável, e nada deseja em troca senão que doravante se leve uma vida boa. A cristandade, esta sim, faz exigências; portanto, ela também pode e deve dispensar delas e não impor nada pesado ou insuportável.

14. A indulgência é permitida por causa dos cristãos imperfeitos e preguiçosos, que não querem exercitar-se resolutamente em boas obras ou não desejam sofrer. Pois a indulgência não promove o melhoramento de ninguém, e sim tolera e permite sua imperfeição. Por esta razão não se deve falar contra a indulgência, mas também não se deve recomendá-la a ninguém.

15. Agiria de maneira mais segura e melhor quem desse algo para o edifício de S. Pedro, ou o que é mais citado, por puro amor a Deus, ao invés de aceitar indulgências em troca. Isso porque é perigoso fazer semelhante dádiva por causa da indulgência e não por causa de Deus.

16. Muito melhor é a obra feita em benefício de um necessitado do que dar para dita construção; também é muito melhor do que a indulgência concedida em troca. Pois, como dissemos, melhor é uma boa obra realizada do que muitas dispensas. Indulgência, porém, é dispensa de muitas boas obras, ou, senão, nada é dispensado.

Sim, e para que os ensine corretamente, atentem bem: antes de todas as coisas (sem preocupação com o edifício de São Pedro nem com a indulgência) deves dar ao teu próximo pobre, se queres dar alguma coisa. Mas se chegar o momento em que, em tua cidade, não há mais ninguém que necessite de ajuda (o que jamais será o caso, se Deus quiser), então deves ofertar, se quiseres, às igrejas, altares, ornamentos, cálice, em tua cidade. E quando isso também não mais for necessário, só então – se quiseres – podes contribuir para o edifício de S. Pedro ou para alguma outra coisa. Mesmo assim, também não deves fazê-lo por causa da indulgência. Pois São Paulo diz: “Quem não faz o bem sequer aos de sua própria casa não é cristão e é pior do que o descrente” [1 Tm 5.8]. E podes crer: quem te disser outra coisa está te seduzindo ou procura tua alma em teu bolso; e se encontrasse aí alguns centavos, isso lhe seria preferível a todas as almas.

Se agora dizes: “Então nunca mais comprarei indulgências”, replico: isso eu já disse acima, que minha vontade, desejo, pedido e conselho é que ninguém compre indulgência. Deixa os cristãos preguiçosos e sonolentos comprarem indulgência. Tu, porém, segue teu caminho!

17. A indulgência não é nem prescrita nem recomendada, mas está entre o número de coisas permitidas e autorizadas. Por isso ela não é uma obra de obediência nem é meritória, e sim uma fuga da obediência. Por isso, embora não se deva impedir ninguém de compra-la, dever-se-iam afastar dela todos os cristãos, estimulando-os e fortalecendo-os para as obras e penas que são aí remitidas.

18. Se as almas são tiradas do purgatório através da indulgência, isso eu não sei e também ainda não acredito, mesmo que alguns novos doutores o afirmem. Mas não podem prova-lo, e também a Igreja ainda não decidiu sobre o assunto. Por isso, para maior segurança, é muito melhor que ores e atues por elas, pois isto está mais comprovado e certo.

19. Sobre esses pontos não tenho dúvida alguma, pois estão suficientemente fundados na Escritura. Por isso também vocês não devem ter dúvida alguma, e deixem os doutores escolásticos serem escolásticos. Todos eles não são suficientes, com suas opiniões, para fundamentar um sermão.

20. Ainda que alguns, para os quais esta verdade dá grande prejuízo material, agora me chamem de herege, não dou muita importância a semelhante palavrório, pois quem está a fazê-lo são alguns cérebros tenebrosos que nunca cheiraram a Bíblia, nunca leram os mestres cristãos, nunca entenderam os seus próprios professores e já estão a decompor-se em suas opiniões esburacadas e esfarrapadas. Pois se os tivessem entendido, saberiam que não devem difamar a ninguém sem ouvi-lo e convencê-lo do seu erro. Que Deus dê a eles e a nós um entendimento correto! Amém.

(LUTERO, Martinho. Um Sermão sobre a Indulgência e a Graça pelo Mui Digno Doutor Martinho Lutero, Agostiniano de Wittenberg. 1518. Tradução de Walter O. Schlupp. MARTINHO LUTERO. Obras Selecionadas. São Leopoldo: Sinodal. Porto Alegre: Concórdia. Canoas: Ulbra, 2004, 2. ed. vol. 1, págs. 31-34)



sexta-feira, 27 de outubro de 2017

Celebrando os 500 anos da Reforma com Lutero - parte 27


LIVRE-ARBÍTRIO E PRESCIÊNCIA DE DEUS

Na verdade confesso que a questão é difícil, e até impossível, se queres estabelecer ao mesmo tempo ambas as coisas, a presciência de Deus e a liberdade do ser humano. Pois o que é mais difícil, e até mais impossível, do que sustentares que as coisas contrárias ou contraditórias não se opõem, ou que um número qualquer seja simultaneamente dez e nove? A dificuldade não está em nossa questão, mas é buscada e introduzida do mesmo modo que se busca e se introduz violentamente a ambiguidade e a obscuridade nas Escrituras. Por esta razão ele refreia os ímpios, os quais se ofendiam com essas palavras claríssimas, porque percebiam que a vontade divina se cumpre estando nós sob a necessidade e percebiam que está irrevogavelmente definido que nada lhes resta de liberdade ou de livre-arbítrio, mas que tudo depende apenas da vontade de Deus. Refreia-os, porém, ordenando-lhes que se calem e reverenciem a majestade do poder e da vontade divina em relação à qual não temos nenhum direito, mas que, em relação a nós, tem direito pleno de fazer o que quiser. E a nós não se faz qualquer injustiça, pois Deus não nos deve nada, nada recebeu de nós e nada prometeu além do que quis e lhe agradou.

Por conseguinte, este é o lugar e o tempo de adorar não aquelas grutas de Corício [grutas que ficam perto de onde estava o oráculo de Delfos], mas a verdadeira majestade em suas temíveis maravilhas e incompreensíveis juízos, e de dizer: “Faça-se tua vontade, assim como no céu também na terra” [Mt 6.10]. Nós, porém, em nenhum lugar somos mais irreverentes e temerários do que quando penetramos e acusamos esses mesmos mistérios e juízos ininvestigáveis; entrementes, contudo, simulamos uma incrível reverência ao escrutarmos as Santas Escrituras que Deus nos ordenou escrutar. Aqui não escrutamos; lá, porém, onde proibiu que escrutássemos, não fazemos nada exceto escrutar com contínua temeridade, para não dizer blasfêmia. Porventura não é um escrutar temerário envidar esforços para que a presciência libérrima de Deus concorde com nossa liberdade, dispostos com isso a derrogar a presciência de Deus se não nos conceder a liberdade ou se impuser a necessidade de dizer com os murmuradores e blasfemadores: De que ele se queixa ainda? Quem resiste à sua vontade? Onde está o Deus clementíssimo por natureza? Onde está o que não quer a morte do pecador? Acaso nos criou para deleitar-se com os tormentos dos seres humanos? Estas perguntas e outras semelhantes serão eternamente uivadas nos infernos e entre os condenados.

Mas a própria razão natural é forçada a confessar que o Deus vivo e verdadeiro precisa ser tal que nos imponha a necessidade por meio de sua liberdade, pois certamente seria um Deus ridículo – ou melhor, um ídolo – aquele que previsse de modo incerto o que há de acontecer ou que fosse enganado pelos eventos, já que até os gentios concederam aos seus deuses um “destino inelutável”. Ele seria igualmente ridículo se não pudesse e não fizesse todas as coisas, ou se algo acontecesse sem ele. Porém, admitidas a presciência e a onipotência, segue-se naturalmente, por meio de uma consequência lógica irresistível, que nós não fomos feitos por nós mesmos, e não vivemos nem fazemos coisa alguma que não [ocorra] através de sua onipotência. Mas já que ele pré-soube anteriormente que haveríamos de ser tais como somos, e agora nos faz, move e governa como tais, eu te pergunto: o que se pode imaginar em nós que seja livre, que seja diferente e que aconteça de modo diferente do que ele pré-soube e agora faz? Por isso, a presciência e a onipotência de Deus opõem-se diametralmente ao nosso livre-arbítrio. Pois ou Deus se enganará em sua presciência e errará também ao agir (o que é impossível), ou nós agiremos e seremos conduzidos segundo a sua presciência e ação. Todavia, não chamo de onipotência de Deus aquela onipotência pela qual ele não faz muitas coisas de que é capaz, mas, sim, aquela [onipotência] ativa, pela qual faz poderosamente tudo em tudo, da maneira como a Escritura o chama onipotente. Digo que esta onipotência e presciência de Deus abolem completamente o dogma do livre-arbítrio. E aqui não se pode pretextar a obscuridade da Escritura ou a dificuldade do assunto. As palavras são claríssimas, conhecidas até por meninos. O assunto é evidente e fácil, examinado até mesmo pelo juízo natural do senso comum, de modo que nada importa, por maior que seja a série de séculos, tempos e pessoas que escrevem ou ensinam de outra maneira.

Naturalmente, ofende no mais alto grau aquele senso comum ou razão natural de que Deus, por sua mera vontade, abandone, endureça e condene os seres humanos, como se encontrasse deleite nos pecados e nos tão grandes e eternos tormentos dos míseros, [logo] ele, de quem ser prega que possui tamanha misericórdia e bondade, etc. Ter tal opinião acerca de Deus pareceu iníquo, cruel e intolerável; por isso também se ofenderam tantos e tão grandes homens por tantos séculos. E quem não se ofenderia? Eu mesmo me ofendi mais que uma vez até a profundeza e o abismo do desespero, de sorte que desejei jamais ter sido criado como ser humano antes que soubesse quão salutar aquele desespero seria, e quão próximo da graça. Foi por isso que se suou e trabalhou tanto a fim de escusar a bondade de Deus e acusar a vontade do ser humano; aí foram inventadas as distinções entre vontade ordenada e vontade absoluta de Deus, entre necessidade da consequência e necessidade do consequente, e muitas outras semelhantes. Contudo, com essas coisas nada se obteve exceto lograr os incultos com a inânia [vazio de conteúdo] das palavras e a oposição daquilo que é falsamente chamado de ciência. Entretanto, quer para os incultos quer para os eruditos, permaneceu sempre cravado no fundo do coração – quando porventura se chegava a tratar seriamente do assunto – aquele acúleo [espinho, desgosto] quando percebiam nossa necessidade ao se crer na presciência e na onipotência de Deus.

E a própria razão natural, que se sente chocada por essa necessidade e tanto se esforça por suprimi-la, é forçada a admiti-la, convencida por seu próprio juízo, ainda que não houvesse Escritura alguma. Pois todos os seres humanos encontram este pensamento escrito em seus corações, e o reconhecem e aprovam (mesmo que contra sua vontade) quando ouvem falar dele: primeiro, que Deus é onipotente não só segundo o poder, mas também segundo a ação (como eu já disse); de outra maneira seria um Deus ridículo. Segundo, que ele conhece e tem presciência de todas as coisas, e que não pode errar nem enganar-se. Uma vez admitidos estes dois pontos no coração e no entendimento de todos, são forçados a admitir imediatamente, mediante uma conclusão inevitável, que nós não fomos feitos por nossa vontade, mas por necessidade; e assim, conforme a presciência de Deus e conforme conduz de acordo com [seu] conselho e poder infalível e imutável. Por isso, acha-se simultaneamente escrito nos corações de todos que o livre-arbítrio nada é, ainda que isso seja obscurecido por tantos debates contrários e pela tão grande autoridade de tantos homens que por tantos séculos ensinaram de maneira diferente. O mesmo também ocorre (conforme o testemunho de Paulo) com toda a outra lei em nossos corações: é reconhecida quando tratada de modo correto, e obscurecida quando maltratada por mestres ímpios ou tomada por outras opiniões.

Volto a Paulo. Se ele não explica a questão em Rm 9 e nem define a necessidade a que estamos ligados a partir da presciência e da vontade de Deus, por que lhe seria necessário introduzir a analogia do oleiro, que de um e o mesmo barro faz um vaso para a honra e o outro para a desonra? E não obstante, a obra não diz ao que a faz: por que me fazes assim? Isso porque ele fala sobre os seres humanos, comparando-os ao barro e Deus ao oleiro. A analogia é sem dúvida tímida, e até absurda e aduzida em vão, se ele não compartilha a opinião de que nossa liberdade é nula. E o que é mais: todo o debate de Paulo, com o qual defende a graça, é inútil. Pois toda a epístola tem por alvo mostrar que não somos capazes de nada, nem mesmo quando parecemos obrar bem; é como ela diz, na mesma passagem, a respeito de Israel, que, ao perseguir a justiça, não a alcançou, ao passo que os gentios a alcançaram sem a perseguir. Tratarei disso mais extensamente quando fizer avançar nossas tropas.

Mas a Diatribe [“Diatribe sobre o livre arbítrio”, de Erasmo de Roterdã] finge não ver todo o corpo do debate paulino e a direção para a qual Paulo tende, consolando-se entrementes com palavras tiradas [do contexto] e distorcidas. Tampouco em nada auxilia a Diatribe o fato de que posteriormente, em Rm 11.20, Paulo de novo exorte dizendo: “Estás de pé pela fé, vê que não te ensoberbeças”; e, semelhantemente: “Também aqueles, se tiverem crido, serão enxertados” [11.23], etc. Pois ali ele nada diz acerca das forças dos seres humanos, e, sim, pronuncia palavras imperativas e subjuntivas; e o que é feito por estas foi suficientemente dito acima. E o próprio Paulo se adianta, nesta mesma passagem, aos que gabam o livre-arbítrio: não diz que aqueles podem crer, mas diz que Deus é poderoso para enxertá-los. Resumindo: ao tratar estas passagens de Paulo, a Diatribe procede de forma tão tímida e hesitante que em sua consciência parece divergir de suas próprias palavras. Pois quando ela deveria ter prosseguido acima de tudo e aduzido provas, quase sempre interrompe o discurso dizendo: “Aqueles diriam assim”. E diz muitas outras coisas similares, deixando a questão em dúvida, de modo que não sabes se ela quis dar a impressão de falar em favor do livre-arbítrio ou apenas de eludir Paulo com palavras inanes, seguindo nisso sua lei e costume pelo fato de que para ela inexiste um problema sério neste pleito. A nós, porém, não nos convém ser frios desta maneira, andar sobre ovos ou ser agitados pelos ventos como uma cana, mas, sim, fazer asserções com certeza, constância e ardor, e então demonstrar de maneira sólida, destra e copiosa aquilo que ensinamos.

Mas quão belamente ela conserva agora a liberdade ao mesmo tempo que a necessidade quando diz: “Nem toda necessidade exclui a vontade livre, assim como Deus Pai gera o Filho necessariamente e, não obstante, o gera porque quer e livremente, pois não foi coagido”. Peço-te: porventura debatemos agora acerca da coação e da força? Acaso não testemunhamos em tantos livros que estamos a falar sobre a necessidade da imutabilidade? Sabemos que o Pai gera o Filho porque quer, que Judas entregou a Cristo porque quis; mas dizemos que, se Deus teve presciência, este querer teve de existir no próprio Judas de maneira certa e infalível. Ou, se ainda não se compreende o que digo, queremos referir uma necessidade obrigatória à obra e uma outra necessidade infalível ao tempo. Que aquele que nos ouve compreenda que estamos falando acerca da última, e não da primeira; ou seja: não debatemos se Judas tornou-se traidor contra a própria vontade ou por querer, mas se, após Deus ter predefinido o tempo, foi necessário acontecer infalivelmente que Judas entregasse a Cristo por querer. Vê, porém, o que a Diatribe diz a respeito: “se olhas para a presciência infalível de Deus, Judas havia necessariamente de ser traidor; e, não obstante, Judas podia ter mudado sua vontade”. Compreendes também o que falas, cara Diatribe? Deixando de lado o fato de que a vontade não pode senão querer o mal, como se provou acima: como pôde Judas mudar sua vontade ficando de pé a infalível presciência de Deus? Acaso pôde mudar a presciência de Deus e torná-la falível? Aqui a Diatribe sucumbe; e, depois de ter abandonado os estandartes e deposto as armas, retira-se do campo de batalha remetendo o debate para as sutilezas escolásticas concernentes à necessidade da consequência e do consequente, como quem não quer seguir essas argúcias até o fim. Certamente ages com prudência quando, após teres levado a causa para um debate tumultuado e no momento em que mais é necessário um debatedor, volta as costas e deixas a outros a tarefa de responder e definir.

Esse conselho deveria ter sido seguido desde o início, abstendo-se totalmente de escrever, conforme o dito: “Quem não sabe lutar, abstenha-se dos jogos marciais”. Pois não se esperava que Erasmo fosse provocar essa dificuldade relativa ao modo com que Deus poderia ter presciência com certeza, e, não obstante, nossas ações poderiam produzir-se de maneira contingente. Esta dificuldade estava no mundo muito antes da Diatribe. Contudo, esperava-se que a respondesse e definisse. Mas ele, tendo usado uma transição retórica, arrasta consigo a nós que somos ignorantes na retórica como se aqui não estivesse em jogo coisa alguma sobre a questão, e como se meramente houvesse certas argúcias; retira-se corajosamente do meio do tumulto da luta, coroado de hera e louro.

Assim não dá, irmão! Nenhuma retórica basta para enganar uma consciência verdadeira; o acúleo da consciência é mais forte que todas as forças e figuras da eloquência. Não toleraremos aqui que o retórico passe de largo [por essa questão] e dissimule; neste momento não há lugar para tal atitude. Aqui se ataca o ponto principal dos assuntos e o essencial da questão. E aqui ou se extingue o livre-arbítrio ou ele triunfará de todo. Tu, porém, percebendo o perigo e até a vitória certa contra o livre-arbítrio, simulas não perceber nada exceto argúcias. Acaso isso significa agir como teólogo confiável? A questão não te afeta seriamente? A ti, que desta maneira deixas os ouvintes em suspenso e o debate confuso e inflamado, querendo, entretanto, causar a impressão de que deste satisfação honestamente e levaste a palma? Em questões profanas, esta manha e astúcia pode ser tolerada; em um assunto teológico, porém, onde se busca a simples e aberta verdade em favor da salvação das almas, ela é extremamente odiosa e intolerável.

Também os sofistas perceberam a força invencível e irresistível deste argumento; por isso inventaram a necessidade da consequência e do consequente. Contudo, ensinamos acima como esta invenção nada efetua. Pois tampouco eles observam o que dizem e o quanto admitem contra si próprios. Pois se admitires a necessidade da consequência, está vencido e prostrado o livre-arbítrio, e de nada ajuda a necessidade nem a contingência do consequente. Que me importa se o livre-arbítrio não é coagido, mas faz o que faz de acordo com a vontade? Para mim é suficiente que admitas isto: há de acontecer necessariamente que ele faça o que faz de acordo com a vontade, e não pode ser diferente se Deus teve presciência disso. Se Deus tem presciência de que Judas cometerá traição ou que mudará sua vontade de trair, acontecerá necessariamente aquilo de que ele teve presciência; ou Deus se enganará em sua presciência e predizer, o que é impossível. Pois é isso que realiza a necessidade da consequência; arbítrio nada é. Esta necessidade da consequência não é obscura nem ambígua, de modo que, ainda que os doutores de todos os séculos sejam cegos, são todavia forçados a admiti-la, pois ela é de tal modo evidente e certa que se pode apalpá-la. Mas a necessidade do consequente, com a qual se consolam, é um mero fantasma, e opõe-se diametralmente à necessidade da consequência. Haverá por exemplo uma necessidade da consequência se eu tiver dito: Deus teve presciência de que Judas cometeria traição, portanto acontecerá segura e infalivelmente que Judas será traidor. Diante desta necessidade e consequência, tu te consolas assim: visto que Judas pode mudar sua vontade de trair, não há necessidade do consequente. Como, eu te pergunto, se coadunam essas duas afirmações: Judas pode não querer trair e: é necessário que Judas queira trair? Dizes que ele não será coagido a trair contra sua vontade. Que tem a ver isso com o problema? Tu falaste acerca da necessidade do consequente, a saber, que aquela não é introduzida pela necessidade da consequência; não disseste nada sobre a coação do consequente. A resposta relacionava-se com a necessidade do consequente e tu apresentas um exemplo sobre a coação do consequente. Pergunto uma coisa e tu respondes outra. O motivo disso é aquela oscilação por causa da qual deixa-se de observar como essa ficção da necessidade do consequente nada efetua.

(LUTERO, Martinho. Da Vontade Cativa. 1525. Tradução de Luís Marcos Sander, Luís Henrique Dreher e Ilson Kayser. MARTINHO LUTERO. Obras Selecionadas. São Leopoldo: Sinodal. Porto Alegre: Concórdia. Canoas: Ulbra, 1993. Vol. 4, págs. 136-142)



quinta-feira, 26 de outubro de 2017

Celebrando os 500 anos da Reforma com Lutero - parte 26


SOBRE OS PREGADORES ITINERANTES E CLANDESTINOS - PARTE 4

(este texto é continuação do anterior, que pode ser lido clicando aqui)

Resumindo: São Paulo não tolera a petulância e insolência de alguém intrometer-se em algum ministério alheio; cada qual observe a ordem e o ofício recebido e se dedique a ele, deixando intacto e em paz o ofício do outro. No mais, pode instruir-se, ensinar, cantar, ler, explicar a não querer mais, desde que tenha o direito e autorização para isso. Se Deus quiser fazer algo especial, fora e acima dessa ordem dos ministérios e da vocação, e suscitar alguém que esteja acima dos profetas, ele o demonstrará com sinais e feitos, como falou através da jumenta e repreendeu os profetas de Baal, seu senhor. Quando não fizer isso, queremos ater-nos aos ministérios e mandatos instituídos. Se [seus titulares] não ensinarem corretamente, que tens tu a ver com isso? Tu não precisas prestar contas disso.

Por essa razão, São Paulo usa mais vezes o termo “comunidade” neste capítulo, fazendo certa distinção entre os profetas e o povo. Os profetas falam, a comunidade ouve. Pois diz: “Quem profetiza edifica a comunidade” [1 Co 14.4], e mais abaixo: “Procurai edificar a comunidade, para que tenhais plena suficiência” [v. 12]. Quem são esses que devem edificar a comunidade? Acaso não são os profetas e (na expressão dele) os que falam em línguas, isto é, os que leem e cantam o texto, enquanto a comunidade ouve? São os profetas que devem explicar o texto para a edificação a comunidade? Ora, está suficientemente claro que aqui ele ordena à comunidade que ouça e se edifique, e não à doutrina nem ao ministério da pregação. E faz mais outra distinção clara, chamando a comunidade de “leigos”, dizendo: “Se bendisseres no espírito, como poderá aquele que ocupa o lugar do leigo dizer “amém”, visto que não entende o que dizes? Com efeito, dás graças de maneira maravilhosa, mas o outro não é edificado” [1 Co 14.16s]. Aí se estabelece uma vez mais uma diferença entre pregador e leigo. Mas que necessidade temos de muitas palavras? O teto está aí e, também, a razão ensina que não se deve interferir em um ministério alheio.

Pois São Paulo diz: “Que falem dois ou três profetas e os outros julguem”, etc. [1 Co 14.29]. Aqui não se fala de outra coisa senão dos profetas, dos quais um ou dois devem falar, enquanto os outros julgam. Quem são esses “outros”? O povo? De forma alguma! Trata-se dos outros profetas que devem auxiliar na pregação na Igreja e edificar a comunidade. Esses devem julgar e ajudar a cuidar, para que se pregue corretamente. E se um dos profetas ou pregadores conseguir expressar-se com acerto, o primeiro deve consentir e dizer: É verdade, tens razão: eu não havia entendido corretamente o assunto – como acontece em torno de uma mesa ou em outro assunto qualquer, onde um dá razão ao outro (também em questões seculares). Da mesma forma, um deve ceder tanto mais ao outro no presente caso.

Aí se vê de que modo maravilhoso e diligente os intrusos leram as palavras de São Paulo, das quais deduzem para si o direito de se manifestarem em todas as igrejas, ou seja, de agredir a todos os pregadores da cristandade inteira, julgar e ofendê-los, arvorando-se eles mesmos em pessoas ordenadas e juízes de púlpitos alheios. São verdadeiros assaltantes e assassinos os que interferem criminosa e violentamente no ministério alheio. Contra isso, São Pedro ensina em 1 Pe 4[.15]: “Nenhum de vós sofra como malfeitor ou como quem se intromete em negócio alheio”.

Embora haja caído no esquecimento o costume de os profetas ou pregadores estarem sentados na igreja e falarem alternadamente (como São Paulo diz aqui), ainda restou um pequeno indício e vestígio disso no canto alternado do coro e das leituras alternadas, cantando-se depois uma antífona, um hino ou responsório em conjunto; ou quando um pregador interpreta a leitura do outro e um terceiro, a explica ou prega sobre ela. Portanto, a maneira correta de se ensinar na Igreja seria essa referida por São Paulo. Aí um cantaria ou leria em línguas, outro profetizaria ou interpretaria, o terceiro o explicaria, mais outro, por sua vez, o confirmaria ou explicitaria melhor com citações e exemplos, como o fez São Tiago em Atos 15[.13ss], e São Paulo em Atos 13[.14s.]. Isso seria melhor que a mera leitura da perícope [passagem bíblica para pregação], ou do que cantá-la em latim, numa língua desconhecida, como as freiras rezam o Saltério. Embora São Paulo não condenasse a glossolalia para si mesmo, não a recomenda nem ordena na igreja sem interpretação.

Não quero, porém, aconselhar a reintrodução desse procedimento e a eliminação do púlpito; antes quero defendê-lo, pois hoje as pessoas são demasiadamente intempestivas e intrometidas, e poderia insinuar-se um diabo entre pastor, pregador e capelão, de modo que um quisesse estar acima do outro, passando eles a brigar e ofender-se diante do povo, querendo cada qual ser o melhor. Por isso é melhor conservar o púlpito, pois aí as coisas acontecem, como ensina São Paulo, de modo decente. Basta que numa paróquia os pregadores preguem um depois do outro e, se quiserem, alternadamente nos diferentes lugares, que um deles explica à tarde ou pela manhã o que o outro recitou ou leu na matutina ou na missa, como se faz, de vez em quando, com o Evangelho e a Epístola. Pois São Paulo não insiste tanto em que se devesse adotar a mesma prática, mas em que tudo seja feito em ordem e decência, dando um exemplo. Visto que nossa prática de pregação é mais ordeira entre nosso povo louco do que aquela, queremos mantê-la.

Nos tempos dos apóstolos foi fácil manter a prática de os profetas estarem sentados [no meio do povo], pois era um antigo costume de prática diária entre o disciplinado povo do sacerdócio levítico, observado desde Moisés. Mas não seria aconselhável reintroduzi-la hoje entre este povo rude, indisciplinado e insolente.

Isso a respeito do dito de São Paulo. Resumindo: os intrusos e pregadores clandestinos são apóstolos do diabo, dos quais São Paulo sempre se queixa [cfe. Tt 1.10], que entram nas casas e as perturbam, ensinando sempre sem saberem o que estão dizendo ou afirmando. Por isso advirto e admoesto o poder espiritual, advirto e admoesto o poder secular, advirto a todos os cristãos e a todos os súditos: acautelai-vos deles e não lhes deis ouvidos. Quem os tolera e lhes dá ouvidos, saiba que está ouvindo o maldito diabo em pessoa, do mesmo modo como fala através de uma pessoa possessa. Fiz minha parte e também falei sobre esse assunto na explicação do Salmo 82. Estou desculpado. O sangue de cada um que não aceita um conselho bom e sincero recaia sobre sua cabeça. Com isso encomendo, caro senhor e amigo, a vós e os seus à graça e misericórdia de Deus. A ele glória e gratidão, honra e louvor em eternidade, em Jesus Cristo, nosso amado Senhor e Salvador. AMÉM.

(LUTERO, Martinho. Carta do Dr. Mart. Lutero sobre os Intrusos e Pregadores Clandestinos. 1532. Tradução de Ilson Kayser. MARTINHO LUTERO. Obras Selecionadas. São Leopoldo: Sinodal. Porto Alegre: Concórdia. Canoas: Ulbra, 2009, vol. 7, págs. 122-124)



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