quarta-feira, 11 de outubro de 2017

Celebrando os 500 anos da Reforma com Lutero - parte 11


AS INDULGÊNCIAS E O PURGATÓRIO

Tese 19

Também parece não ter sido provado que as almas no purgatório estejam certas e seguras de sua bem-aventurança, ao menos não todas, mesmo que nós, de nossa parte, tenhamos plena certeza.

Pois nós, porque cremos que nenhuma alma vai ao purgatório a menos que pertença ao número daquelas a serem salvas, estamos certos da bem-aventurança delas, assim como estamos certos da salvação dos eleitos. Mesmo assim, não impugno muito se alguém afirma que elas estão certas [de sua bem-aventurança]. Eu digo [apenas] que nem todas estão certas. Mas como todo o assunto as almas no purgatório é sobremaneira abscôndito, explico a tese mais persuadindo do que demonstrando.

1. Em primeiro lugar, a partir das afirmações anteriores: se a pena do purgatório é aquele pavor e horror da condenação e do inferno, todo pavor, porém, torna o coração perturbado, incerto, privado de conselho e auxílio, e mais intenso e tanto mais quanto mais intenso e inopinado for. Ora, o pavor das almas é o mais intenso e inopinado de todos, como foi dito acima e como diz Cristo: "Aquele dia sobrevém como um laço" ([Lc 21.34]. E o apóstolo: "O dia do Senhor virá como ladrão de noite" [2 Pe 3.10; 1 Ts 5.2]. Por esta razão, é muito provável que, por causa de sua perturbação, elas não saibam em que estado estão, se condenadas ou salvas; sim, parece-lhes que já estão a caminho da condenação, que já estão descendo ao inferno e que, em verdade, já estão nas portas do inferno, como diz Ezequias. Mas também 1 Rs 2.6 diz: "O Senhor faz descer aos infernos e faz subir". Portanto, não sentem outra coisa senão que sua condenação está começando, só que sentem que a porta do inferno ainda não se fechou atrás delas e também não abandonam o desejo de auxílio, ainda que este não seja visível em parte alguma. Pois assim falam os que o experimentaram. Façamos uma comparação: suponhamos que alguém vem inopinadamente ao juízo da morte, caindo, por exemplo, nas mãos de salteadores, que o ameaçam de morte de todos os lados, ainda que tenham decidido aterrorizá-lo, não matá-lo. Neste caso, eles estão certos de que ele viverá, ele mesmo, contudo, nada mais vê exceto a morte iminentíssima e, por isso mesmo, já está morrendo. A única coisa que lhe resta é o fato de ainda não ter morrido e poder ser redimido da morte, mas não sabe de onde (pois vê que aqueles podem, porém não querem). Assim sendo, ele em quase nada difere de um morto. O mesmo parece acontecer no caso do medo da morte eterna, visto que não sentem outra coisa senão que a morte eterna os ameaça de toda parte. Assim canta a Igreja por eles: "Arranca suas almas da porta do inferno e liberta-as da goela do leão, para que o inferno não as engula", etc. O único conhecimento que lhes resta é que Deus pode redimi-los. No entanto, parece-lhes que ele não quer [fazê-lo]. Os condenados, porém, imediatamente acrescentam a blasfêmia a esse mal, ao passo que aqueles acrescentam apenas queixa e gemido inexprimível, auxiliados pelo Espírito. Pois aqui o Espírito de Deus paira por sobre as águas, onde há trevas sobre a face do abismo. Mas sobre isso [falei] mais amplamente acima.

2. Leem-se muitos exemplos nos quais se tem que algumas almas confessaram essa incerteza de seu estado, pois apareceram como que indo ao juízo, para o qual tinham sido chamadas, como [é dito] a respeito de S. Vicente, etc. Por outro lado, leem-se muitos exemplos nos quais confessaram sua certeza. Quanto a isto, digo: em primeiro lugar, eu disse que não todas estão certas. Em segundo lugar, conforme o dito anteriormente talvez [seria] melhor [dizer que] elas não estiveram certas, mas, por causa de seu desmedido desejo de ajuda, pediram, como se estivessem certas, que se as ajudasse mais rapidamente. Assim, elas antes julgam e timidamente presumem estar certas do que o sabem, da mesma forma como também no evangelho se diz, a respeito dos demônios, que eles sabiam que ele é o Cristo, isto é, eram fortemente de opinião, como diz a glosa. Pois assim acontece naturalmente em toda angústia e em todo pavor: somos fortemente de opinião que ainda podemos nos recuperar, ainda que aí haja mais um desejo de recuperação do que esperança ou saber, da mesma forma como nos demônios houve mais um desejo de saber do que o saber. É que o saber da salvação não se apavora nem treme, mas confia e tudo tolera com a maior coragem.

Neste ponto se diz: "Como fica então o juízo particular, que, como é voz corrente e como Inocêncio atesta, tem lugar na morte de qualquer pessoa? Pois parece que, por meio dele, o ser humano fica certo de seu estado". Respondo: não se segue que ele fique certo, mesmo que seja um juízo particular. Pode acontecer que o morto seja julgado e até acusado, mas que, ainda assim, a sentença seja adiada e não lhe seja revelada. Nesse ínterim, contudo, enquanto a consciência acusa, os demônios acossam e a ira de Deus ameaça, a mísera alma nada faz senão tremer por causa da sentença esperada com horror a todo momento, assim como faz em relação à morte corporal e como ameaça Dt 28.65 e ss.: "O Senhor te dará um coração pávido, e tua vida estará suspensa diante de ti. Pela manhã dirás: ah, quem me dera ver a noite! E à noite dirás: ah, quem me dera ver a manhã!". Assim também lá a morte eterna ferirá com pavor semelhante e supliciará a alma com terrível horror. Essa opinião não está muito dissonante da verdade, visto que, em Mt 5.22, também o Senhor distingue entre réu de juízo, réu de conselho e réu de inferno, isto é, entre um acusado, um convicto e um condenado. Mas também alguns insignes autores ousam afirmar, mais por conhecimento do que por ouvir dizer, que, por tremerem por sua vida, algumas almas são arrebatadas pela morte e de tal modo rejeitadas por Deus, que até o fim do mundo não sabem se estão condenadas ou se serão salvas. E caso se aceita aquela história sobre o monge que estava à morte e, como que condenado por causa do pecado da fornicação, já blasfemava, e que depois recuperou a saúde, fica suficientemente evidente que o juízo e a acusação do inferno podem afligir a alma mesmo que a sentença definitiva não tenha sido pronunciada ainda. O mesmo sentido tem o que o B. Gregório conta numa homilia a respeito de um jovem a quem, na morte, um dragão queria engolir.

É isso, pois, que proponho como verossímil a respeito de toda a matéria das penas do purgatório, movido, primeiramente, pela natureza do horror e pavor; em segundo lugar, porque a Escritura atribui essa pena aos condenados; por fim, porque toda a Igreja diz que são as mesmas as penas do inferno e do purgatório. Assim, creio que essa nossa opinião está suficientemente fundada nas Escrituras. Os apregoadores de indulgências, porém, parecem imaginar-se as penas das almas como se fossem infligidas de fora e fossem completamente externas, não nascendo a partir de dentro, na consciência, como se Deus apenas lhes tirasse as penas, ao passo que o contrário é mais verdadeiro: ele tira, antes, as almas das penas, como está escrito: "Ele afasta suas costas dos fardos" [Sl 81.6]. Ele não diz: "Afasta os fardos de suas costas". E mais uma vez: "Se passares pelo fogo, a chama não te fará mal" [Is 43.2]. De que forma não fará mal? Só porque ele dá confiança ao coração, para que não tema o fogo. Não, porém, de modo que não haja fogo quando ela tem de passar por ele. Por esta razão, o afastar as costas dos fardos não acontece senão curando o temor da alma e a confortando, assim como também foi dito acima que nenhuma pena é vencida sendo temida, e sim através de amor e desprezo. Ora, as indulgências não removem o temor, mas, pelo contrário, o suscitam tanto quanto podem, persuadindo que as penas a serem relaxadas são como que uma coisa odiosa. Entretanto, Deus se propôs ter filhos impávidos, seguros, generosos em eternidade e com perfeição, que absolutamente nada temam, mas, confiantes em sua graça, tudo vençam e desprezem, e considerem as penas e mortes um objeto de zombaria. Os demais ignaros ele odeia, os que são confundidos pelo medo de tudo, até mesmo pelo ruído de uma folha que voa.

De novo se objeta: "Se as almas suportam as penas de bom grado, por que oramos por elas?". Respondo: se não as suportassem de boa vontade, certamente estariam condenadas. Mas será que por isso não devem desejar orações? Pois também o apóstolo desejou que se fizessem orações por ele, para que fosse livrado dos descrentes e se lhe abrisse uma porta à palavra. Não obstante, era ele quem, cheio de toda confiança, se gloriava de desdenhar a morte. Mesmo que as almas não desejassem orações, é nosso dever condoer-nos de seu sofrimento e socorrê-las através da oração, assim como a quaisquer outros, por mais corajosamente que sofram. Depois, como as almas não sofrem tanto com a pena presente quanto com o horror da perdição iminente que as ameaça, não é de admirar que desejem intercessão, para que perseverem e não se tornem faltas de confiança, tendo em vista que, como eu disse, estão incertas quanto a seu estado e não temem tanto as penas do inferno quanto o ódio de Deus que existe no inferno, assim como é dito: "Na morte não há quem se lembre de ti; no inferno quem se confessará a ti?" [Sl 6.5]. Assim é evidente que não sofrem por temor da pena, mas por amor da justiça, como dissemos acima. Pois elas têm mais medo de não louvar e amar a Deus (o que aconteceria no inferno) do que de sofrer. Toda a Igreja ajuda, com razão, esse seu santíssimo, porém ansiosíssimo desejo tanto quanto pode, principalmente porque também Deus quer que elas sejam auxiliadas por meio da Igreja. E aqui finalmente chegamos ao fim desse tão obscuro e dúbio debate sobre as penas das almas. Não invejarei quem puder exibir coisa melhor, contanto que o faça apoiado em melhores passagens da Escrituras e não obnubilado pelas fumosas opiniões de seres humanos.

(LUTERO, Martinho, "Explicações do Debate sobre o Valor das Indulgências", in MARTINHO LUTERO. Obras SelecionadasOs primórdios – Escritos de 1517 a 1519. Tradução de Annemarie Höhn et al., São Leopoldo: Sinodal. Canoas: Ulbra. Porto Alegre: Concórdia, 2004, vol. 1, 2ª ed., pp. 107-110)



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