terça-feira, 29 de abril de 2008

Uma bandeira para o tamanduá

Passo com uma certa freqüência pela Rodovia Raposo Tavares (SP-270), no trecho entre Paranapanema e Itapetininga, que ainda tem algumas poucas "ilhas" de mata atlântica em meio a canaviais e milharais, além da beleza sempre ameaçada do começo do Rio Paranapanema. 

No começo do ano, me surpreendi ao ver um enorme tamanduá-bandeira morto no acostamento da estrada, ali perto da primeira ponte do Paranapanema, quando ele ainda não é tão caudaloso. 

Primeiro, eu não imaginava que ainda existissem tamanduás-bandeira no Estado de São Paulo; e, segundo, se eles existem, deveriam ser protegidos. 

O tempo passou e no último domingo eu passei por este trecho de novo, e desta vez vi dois tamanduás-bandeira mortos no acostamento, sentido capital, um no Km 203 e outro ali pelo Km 175 (entre Angatuba e Itapetininga). 

São animais grandes, que parecem do tamanho de um bezerro. Têm hábitos noturnos e tudo indica que todos eles foram atropelados. 

Hoje eu passei de volta pela Raposo, e ali no Km 233 havia outro tamanduá morto, agora no acostamento sentido interior. 

Só eu contei três tamanduás atropelados em três dias. 

Alguma coisa muito errada está acontecendo na Raposo Tavares e ninguém está dando a mínima, já que o nosso querido governo tucano só pensa em pedágios para as rodovias. 

Eu sei que impedir os tamanduás de cruzar a pista é praticamente impossível, mas devia haver pelo menos muitas placas alertando sobre a travessia deles (não há nenhuma).

Talvez algum tipo de passagens subterrâneas nas áreas de maior incidência de atropelamentos. 

O fato é que algo precisa ser feito urgentemente pelos tamanduás-bandeira de São Paulo. 

Eu li no site do ZôoSP que se trata de uma espécie vulnerável, quase ameaçada de extinção. 

Queira Deus que não tenhamos que esperar que eles estejam à beira da extinção para alguém levantar uma bandeira pelos tamanduás. Pelo menos a minha eu vou levantar.


P.S.: Para uma atualização sobre esta situação, leia o texto "Bandeira 2 para o tamanduá" ou clique na tag "tamanduá-bandeira" na coluna direita desta página (De tudo um pouco).


O evangelho de Lucas - parte 25

Em Lucas 14, vemos novamente nosso Senhor entrando na casa de um fariseu, convidado para jantar, ou como diz o texto, comer pão. No sábado as refeições eram mais elaboradas, por motivos religiosos. E este tema domina o capítulo. Provavelmente ele convidou nosso Senhor para o pegar em alguma palavra (Mt 22:15), como estavam acostumados. Por isto talvez o primeiro versículo diz que eles estivessem o observando. Apesar disto, e apesar de conhecer o pensamento deles (Lc 5:22), Jesus sempre ia quando era convidado. Nosso Senhor nunca recusou um convite, por pior que fosse quem o convidava. Devemos sempre seguir seu exemplo, e pregar a palavra de Deus a todos. Todas as vezes que nosso Senhor fez isto, acabou dando uma grande lição para todos.

Para ensinar novamente a caridade e provavelmente também por que os fariseus o observavam, tomou um homem hidrópico, e questionou se poderia curar aos sábados. Estava levantada a questão: grandes refeições no sábado eram incentivadas como forma até de ser perdoado, mas e a caridade? Valeria ela tanto quanto festas, para se obter o perdão? Jesus então cura o homem, que sofria de uma doença rara.

Qual o argumento que Cristo usou para curar no sábado? Que fariseus e doutores da lei salvavam até seus animais de poços, por que Cristo não poderia salvar aquele homem? Para isto, eles não poderiam responder.

Observando o modo como as pessoas se comportavam, nosso Senhor resolveu ensinar a humildade aos presentes através de uma parábola. Aquele que chega em uma festa e se senta nos primeiros lugares, tem muita chance de ser levado aos últimos lugares, por se sentar onde não está reservado a ele. E isto seria uma humilhação. No entanto, quem se senta nos últimos lugares, terá sempre chances de ser exaltado. Assim acontece com aqueles que se humilham, aqueles que não buscam honra diante dos homens. Devemos entender corretamente o que é humildade. O humilde se contenta com o pouco porque ele não busca honra diante dos homens. Quando buscamos muito para nos exaltar, não estamos sendo humildes. Diferentemente quando você busca fazer o melhor, em seu trabalho por exemplo, não para chamar a atenção de seus patrões, mas porque é justo trabalhar da melhor forma possível, você não está ferindo a humildade.

Para aqueles que festejam também a humildade pode ser expressa, quando se convida pessoas que não podem festejar e chamar a pessoa. Além da humildade, há caridade nisto. Devemos sempre lembrar, como cristãos, que devemos ajudar aqueles que não podem ajudar ninguém. Se um homem ajuda pessoas que podem lhe retribuir, ele será retribuído aqui, nesta vida. Mas se um homem ajuda aqueles que não podem retribuí-lo, é Deus quem o retribui. É fácil entender a vantagem da última. Pois a retribuição se dará na ressurreição dos justos.

Ao falar nesta expressão muito comum no meio judaico, um homem responde a Jesus: "Bem-aventurado aquele que comer pão no reino de Deus." Acontece que a expressão era muito comum na escatologia judaica, para se referir ao reino messiânico terreste, governado pelo Messias. Segundo as espectativas judaicas, este reino seria temporal e composto apenas de judeus.

É por isto que o evangelista emprega então uma conjunção adversativa, porém, para introduzir a resposta de Jesus. Jesus negaria então a declaração daquele judeu, mostrando que os judeus como nação eleita não mais existiria. Para isto, empregou outra parábola. Nela, um certo senhor faz uma festa, e manda convidar seus amigos, que representam os judeus sendo convidados para o reino de Deus por Ele. Alguns disseram que compraram um campo ou animais, mostrando que muitas vezes os judeus se preocuparam mais com bens materiais do que com o reino de Deus. Outros falaram que se casaram, indicando que as preocupações com a família tomaram mais importância que este reino. Irritando-se o senhor com isto, enviou o servo para que buscasse todos que pudessem encontrar, e que queriam vir, não os amigos, mas os pobres e aleijados, que estariam simbolizando os gentios. Feito isto, havia ainda lugar para mais pessoas. Então o patrão diz para que o servo fosse pelos caminhos, e obrigasse eles a entrar, ou compelisse. Apesar da palavra poder ser usada para uma obrigação forçada, ela poderia ser usada também por um convencimento através de argumentação, como no caso abaixo:

(Mt 14:22) Logo em seguida obrigou os seus discípulos a entrar no barco, e passar adiante dele para o outro lado, enquanto ele despedia as multidões.

Esta parábola nos mostra por que os judeus foram rejeitados como nação, apesar de que judeus individualmente podem ser membros do corpo de Cristo, como os apóstolos e primeiros cristãos foram. Não devemos dar desculpas para não sermos cristãos hoje. O cristianismo é uma religião que enfatiza o hoje, por isto não devemos alongar demais nossas decisões e atos, não devemos viver sob máscaras.

Justamente para complementar isto que falou pela parábola, Jesus diz claramente que o cristão aborrecerá seu pai e sua mãe, aborrecerá até sua própria vida, em algumas versões aparece a palavra odiar. A palavra usada aqui é miseo, que parece incluir desde não gostar de alguma coisa até odiar com a intensidade máxima. Jesus fala especificamente destes casos onde várias coisas se colocam entre a pessoa e Cristo, que foi relatada na parábola. Quem destes escolher os pais, não pode ser discípulo de Cristo. Quem não levar sua cruz, que são suas aflições, não pode seguir Cristo. E todo mundo deve estar ciente disto, pois aquele que passa a ser seguidor de Cristo sabendo disto, e não estiver preparado para isto, terá agido de forma irresponsável.


Obs.: Para acessar o estudo feito pelo Hélio sobre Lucas 14, neste blog, clique aqui.

domingo, 27 de abril de 2008

Eclesiastes - capítulo 1

Sugerimos a leitura, primeiramente, do artigo Eclesiastes - uma introdução.



Depois de se apresentar como "rei de Jerusalém", o Pregador inicia o livro de Eclesiastes com uma afirmação até certo ponto surpreendente: "Vaidade de vaidades, tudo é vaidade". 

Ainda faz questão de enfatizar a expressão "vaidade de vaidades", duplicando-a, como que dizendo que o próprio texto que ele estava começando a escrever já poderia, por assim dizer, terminar por ali mesmo, pois - afinal - também era vaidade. 

Pelo menos é essa a impressão que o leitor mais apressado tem, e, já que tudo é vaidade, por que continuar a ler o livro? A resposta a esta pergunta é que vai ser sorrateiramente escondida, murmurada, sussurrada pelo Pregador até o final do livro, mas desde o início ele prende a atenção do leitor mais sagaz por - deliberadamente - inverter a ordem das coisas num livro de sabedoria (ou filosofia). 

O sábio e o filósofo geralmente apresentam uma série de premissas e vão discutindo-as até chegar a uma conclusão final, com o perdão da redundância. É que Eclesiastes começa com uma "conclusão inicial", ou pelo menos parece começar com ela. 

"Vaidade de vaidades, tudo é vaidade". Mas será que tudo é vaidade mesmo? 

Afinal, esta é uma ideia que o próprio Paulo retomaria em de Romanos (8:20 – "Porque a criação ficou sujeita à vaidade, não por sua vontade, mas por causa do que a sujeitou), e que o apóstolo também insistirá em Efésios (4:17 – "não andeis mais como andam também os outros gentios, na vaidade da sua mente"). 

A palavra "vaidade" é repetida 37 vezes nos 12 capítulos de Eclesiastes, e "vaidade" é a tradução da palavra hebraica הבל - hebel - que significa uma brisa suave, um vento leve, algo temporário, passageiro e sem importância. 

O curioso é que "hebel" também pode ser um nome próprio, talvez não por acaso o de Abel, que, de acordo com o relato bíblico, foi a vítima do primeiro homicídio da humanidade, cuja vida foi ceifada na sua mocidade, e viveu muito pouco em relação aos seus parentes. Foi mais um que deu razão à advertência de Tiago: "Que é a sua vida? Vocês são como a neblina que aparece por um pouco de tempo e depois se dissipa" (Tiago 4:14 – NVI).

[se tiver interesse em conhecer nossa breve interpretação sobre Caim e Abel, sugerimos a leitura do artigo "Caim e Abel, um clamor por justiça"]

Logo de início, o Pregador se apresenta, portanto, como alguém desanimado, conformado com o nada, e sem nenhuma esperança. Parece um contra-senso na Bíblia, mas o Pregador não está sozinho. 

Jonas talvez tenha sido o profeta mais desanimado que houve. A Jeremias coube a terrível frustração de ver sua pregação ignorada e o seu povo morto ou levado escravo, Jerusalém e o Templo destruídos. Só lhe restou lamentar-se. Asafe desfiou sua inveja dos ímpios prósperos no Salmo 73. 

A Bíblia está longe de ser um livro mitológico, de comportamentos impávidos e assépticos. Ela é composta de gente como a gente, com todas as nossas dúvidas e os nossos defeitos, mas também as nossas qualidades. 

Afinal, ser humano é algo tão bom que o próprio Deus quis passar por esta experiência. E Eclesiastes é um livro sobre a vida, sobre o mundo, sobre tudo o que implica o verbo existir

O Pregador era existencialista quando o existencialismo nem existia, e dele nem se cogitava. 

Ele recorre à expressão "debaixo do sol" 30 vezes no seu livro. Só no capítulo 1 ele a repete 3 vezes. 

"Debaixo do sol" é o equivalente em Eclesiastes ao "mundo" dos Evangelhos, principalmente o de João: "Deixo-lhes a paz; a minha paz lhes dou. Não a dou como o mundo a dá" (14:27). "Não se perturbem os seus corações, nem tenham medo. Neste mundo vocês terão aflições; contudo, tenham ânimo! Eu venci o mundo" (16:33), "Eles não são do mundo, como eu também não sou" (17:16). 

Há mais semelhanças com a pregação de Jesus do que parece à primeira vista. 

Afinal, logo no 3º versículo, o Pregador pergunta: "Que proveito tem o homem, de todo o seu trabalho, com que se afadiga debaixo do sol?", algo que Jesus também questionará, associando ainda "vida" e "mundo": "Pois que aproveita ao homem se ganhar o mundo inteiro e perder a sua vida? ou que dará o homem em troca da sua vida?" (Mateus 16:26). 

A vida, o mundo, o tudo e o nada, estes são os temas de Eclesiastes.

Assim, o Pregador começa Eclesiastes levando ao extremo os seus argumentos, como se fosse um ateu em relação à religião, pelo menos no sentido que o ateísmo poderia ter naquele contexto judaico fortemente religioso. 

Logo, para que serviam todos aqueles rituais? Por que a vida do mundo judaico era centrada na religião se a rotina era a regra do mundo? 

Tudo era uma eterna mesmice... o sol se levanta, o sol se põe, o vento vai, o vento vem, num tédio só. Os rios correm para o mar, mas o mar não se enche, a água evapora e retorna como chuva. 

Tudo num ciclo monótono sem fim. Como existir nesse contexto?

Outra tradução possível para "Todas as coisas são canseiras tais que ninguém as pode exprimir" (v. 8) é "Todas as palavras são frágeis", ou seja, até o discurso é vão, o Pregador estava cansado de tanto nhem-nhem-nhem. 

Talvez a ideia pareça absurda para a Bíblia, mas é esta mesma a intenção do Pregador: chocar

Ele força a sua argumentação testando os limites do suportável. Faz as vezes de "advogado do diabo" para atacar a Deus e, para isso, não desperdiça argumentos. 

Falando da mesmice da vida, ele, pelo menos por alguns instantes, consegue fazer com que o seu ouvinte esqueça que "as misericórdias do Senhor são a causa de não sermos consumidos, porque as suas misericórdias não têm fim; novas são a cada manhã, grande é a tua fidelidade" (Lamentações 3:22-23). 

O que ele está usando, no fundo, é um recurso da apologética

Colocando-se no lugar de inimigo das coisas de Deus, ele é propositalmente provocador, insolente, chegando às tênues fronteiras da blasfêmia, para depois mostrar o que representa, na verdade, um mundo sem Deus. 

Primeiro, o Pregador encurrala os seus ouvintes nos limites do seu pequeno mundo, debaixo do sol, de tal maneira que eles não parem para olhar nem pensar além do que lhes é próximo e palpável. 

Salvo engano, atribui-se a Winston Churchill o conselho de que, ao entrar numa igreja o homem deveria tirar o chapéu, mas não a cabeça. 

Depois desse choque inicial, os ouvintes do Pregador estão preparados para atender um convite que lhes foi feito e eles ainda não perceberam: pensem, pensem, pensem!

Para tanto, existam, existam, existam...



Leitura seguinte: Eclesiastes - capítulo 2


Grandes filmes - 1

Ontem à noite eu vi "Rocky Balboa" no Telecine. Por mera nostalgia, devo confessar. Afinal, "Rocky, um lutador" é daqueles grandes filmes que vão sendo esquecidos ao longo das décadas. Nem lembram que ganhou o Oscar de melhor filme em 1977, ano em que eu o assisti pela primeira vez, lá em Balneário Camboriú, quando tinha apenas 14 anos de idade. Sylvester Stallone não quer ser esquecido também. Tanto que as seqüências anteriores chegaram ao Rocky V, que pouca gente viu. Eu vi até o IV, mas até que o II (principalmente) e o III são ótimas seqüências. Depois disso, além da franquia de Rambo, a coisa toda virou apelação para engordar a conta bancária do Stallone. Ele próprio se auto-ironiza no último filme, pois agora Rocky é o dono de um restaurante e não para de contar sempre as mesmas histórias para os fregueses. Bem, o fato é que "Rocky Balboa" é um bom filme para os nostálgicos. Está quase tudo lá: a trilha sonora, a crise familiar aliada à da idade, a coreografia frenética do boxe, a superação dos limites, os cenários de Philadelfia que ainda estão no nosso imáginário, pelo menos daqueles com mais de 30 (ok... 40). Só não está lá Talia Shire, que ajudava a carregar o andor. Faz falta, é verdade, mas sua ausência não chega a comprometer o resultado. Entretanto, a escadaria continua lá e nos créditos finais, aparece uma série de pessoas comuns repetindo a cena de subi-la e festejá-la, com direito a trilha sonora. Enfim, uma boa diversão que lembra um dos grandes filmes que Hollywood produziu.

sábado, 26 de abril de 2008

O evangelho de Lucas - parte 24

Ainda no capítulo 16, após terem ouvido a parábola do administrador infiel, os fariseus, avarentos como eram (Lucas faz questão de lembrar), ridicularizavam Jesus (v. 14), que lhes responde algo que vai deixar mais claro em outra parábola no capítulo 18, a do fariseu e publicano (18:9-14), ou seja, "todo o que se exalta será humilhado, mas o que se humilha será exaltado" (18:14). Ciente de que os fariseus supunham que a Lei lhes garantia a posição e a reputação, Jesus diz que a Lei e os Profetas, ou seja, a Tanach, que hoje conhecemos como o Velho Testamento, vigorou até João Batista (v. 16), mas desde então o evangelho do reino de Deus estava sendo anunciado e todo homem se esforçava por entrar nele, e era mais fácil passar o céu e a terra do que cair um til da Lei (v. 17). Jesus é a consumação espiritual da Lei, conforme Calvino explica:


16. ABOLIDA A LEI CERIMONIAL NO QUE TANGE A SEU
USO
Outra é a situação das cerimônias, as quais foram abolidas não no efeito, mas somente no uso. Embora, por sua vinda, Cristo lhes tenha posto fim, nada lhes subtraiu à santidade: ao contrário, ainda mais a recomenda e enaltece. Ora, assim como ao povo antigo teriam as cerimônias oferecido um espetáculo vazio, salvo se nelas fosse revelado o poder da morte e da ressurreição de Cristo, assim também, se elas não cessassem, hoje não seria possível discernir com que propósito foram instituídas.

Conseqüentemente, para provar que a observância delas não era apenas supérflua, mas até nociva, Paulo ensina que foram sombras cujo corpo encontramos em Cristo [Cl 2.17]. Vemos, pois, que em seu cancelamento refulge melhor a verdade do que se continuassem – ainda de longe e como que por trás de um véu – tipificando o véu do templo que se rasgou em duas partes [Mt 27.51], porque já era vinda à luz a imagem viva e expressa dos bens celestes, que fora iniciada apenas em delineamentos obscuros, como diz o autor da Epístola aos Hebreus [10.1].

A isto se aplica a declaração de Cristo: "A Lei e os Profetas vigoraram até João; a partir de então começou a proclamar-se o reino de Deus" [Lc 16.16]; não que os santos patriarcas tenham sido privados da pregação que contém a esperança da salvação e da vida eterna, mas, ao contrário, que apenas vislumbraram de longe e sob sombreamentos o que hoje contemplamos em plena luz.

Por que, porém, se fez necessário à Igreja de Deus começar com esses rudimentos e subir mais alto, explica-o João Batista: "Porque a lei foi dada por Moisés, a graça, entretanto, e a verdade foram trazidas por intermédio de Jesus" [Jo 1.17]. Pois, ainda que nos sacrifícios antigos foi, na verdade, prometida a expiação, e a Arca da Aliança foi seguro penhor do paterno favor de Deus, tudo isso teria sido enganoso, salvo se fundado na graça de Cristo, em quem se acha sólida e eterna estabilidade.

Contudo, que isto fique estabelecido: ainda que os ritos legais tenham deixado de ser observados, entretanto, por seu próprio fim, melhor se conhece quão grande tenha sido a sua utilidade antes da vinda de Cristo que, ao abolir seu uso, por sua morte, lhes selou a força e efeito.

(CALVINO, João. As Institutas. Edição Clássica. São Paulo: Cultura Cristã, 2006. 2. ed. vol. 2, pp. 126)

Ainda dentro do contexto da parábola anterior, em que a usura proibida pela Lei era contornada pelos judeus (principalmente pelos fariseus, que era a camada mais rica da população) mediante o escrito de uma dívida muito maior do que a que havia sido pactuada, Jesus censura também os fariseus por eles facilitarem o divórcio segundo suas interpretações de conveniência. Aparentemente, o v. 18 está deslocado no meio dessas duas parábolas, mas se repararmos bem, Jesus exemplifica com o divórcio para mostrar a hipocrisia dos fariseus, tão zelosos das coisas mínimas, mas tão "liberais" em relação a temas que lhes convinham. É nesse contexto que deve ser entendido também o "esforçar-se" do v. 16. Os fariseus viviam uma vida cômoda, fácil, e muitas vezes "esplêndida e regalada" como o rico da parábola (v. 19), enquanto o povo vivia na miséria e, realmente, se esforçavam no meio da multidão para encontrar e tocar Jesus, como acontecera com a mulher que tinha uma hemorragia que não estancava (Lucas 8:42 -"as multidões o apertavam"-48). Outro detalhe importantíssimo do evangelho de Lucas é que ele gosta dos pobres, não por um mórbido prazer socialista extemporâneo, mas para ressaltar a elevação da importância de um povo jogado na miséria material e espiritual pelos seus líderes pomposos e formalistas. Neste sentido, o evangelho de Lucas pode ser lido, sim, como socialista, embora não se deva perder nunca, a sua ótica eminentemente espiritual.

Jesus não perde a oportunidade e lhes conta a parábola do rico e Lázaro (vv. 19-31), uma das mais belas e profundas de seu ministério. O Mestre começa comparando o estilo de vida luxuoso e inconseqüente do homem rico (v. 19) e do mendigo que, coberto de chagas, jazia à sua porta (v. 20). Este mendigo se chamava Lázaro, o único personagem chamado pelo nome em todas as parábolas que Jesus contou. Houve até uma tentativa de dar ao rico um nome também, Dives, segundo a antiga tradição latina, mas realmente o rico não tem nome nenhum nesta parábola, o que não deixa, desde já, de ser um contraste marcante. Tanto a sociedade antiga como a atual tende a prezar os ricos, chamando-lhes por nome e principalmente pelo sobrenome, e os pobres são o que são: pobres, e, geralmente, indignos de terem sequer o seu apelido lembrado. Isto deve ter chamado a atenção dos ouvintes de Jesus, muitos acostumados a ouvir suas parábolas, e que agora constatavam que um dos personagens (justo o pobre) tinha um nome, Lázaro. Sua situação era tão desesperadora que se alimentava das migalhas que caíam da mesa do rico e mesmo os cães vinham a lamber-lhes as feridas (v. 21). Neste momento, há uma ruptura na história: o mendigo morre e é levado pelos anjos ao seio de Abraão, e também morre o rico e é sepultado (v. 22). Nesta comparação entre os dois quanto ao destino comum de todo ser humano, a morte, fica claro que o mendigo deve ter morrido e, se alguma alma caridosa ainda teve o cuidado de jogá-lo num buraco, certamente isso já seria uma certa surpresa, já que todos o desprezavam. Já o rico deve ter tido um funeral com direito a toda pompa e circunstância, enquanto Lázaro nem sepultura teve. Teve algo melhor, entretanto: foi carregado pelos anjos (em espírito) ao "seio de Abraão", que é uma linguagem metafórica que indica grande honra, da pessoa que se assenta em um banquete ao lado do anfitrião, como João, o discípulo amado, recostado no seio de Jesus (João 13:23, 21:20). A idéia de encontrar os patriarcas no paraíso era recorrente no imaginário judaico e o próprio Jesus confirmara esta visão após o encontro com o centurião romano que o surpreendeu com sua fé:

Mat 8:11 Mas eu vos digo que muitos virão do oriente e do ocidente, e assentar-se-ão à mesa com Abraão, e Isaque, e Jacó, no reino dos céus;
Mat 8:12 E os filhos do reino serão lançados nas trevas exteriores; ali haverá pranto e ranger de dentes.


A morte dos dois personagens da parábola gera um problema para os espiritualistas e os aniquilacionistas (que não crêem na imortalidade da alma). Para estes, se a história tivesse parado no "foi sepultado" do v. 22, vindo a seguir o juízo final, sem nenhum estado intermediário, tudo se encaixaria na sua pregação; para aqueles, se ao invés de ter sido levado pelos anjos ao paraíso com Abraão, Lázaro tivesse ascendido a outro plano espiritual onde se prepararia para a próxima reencarnação, a sua pregação seria legitimada. Entretanto, não é isso o que acontece. Logo após ter sido sepultado, o rico se encontra afligido no inferno (no Hades) e de longe vê Lázaro com Abraão ao seu lado (v. 23). Este versículo também mostra que existe o inferno como um lugar de tormento, como o próprio Jesus havia se referido anteriormente ao Hades, relacionando-o com a visão de Abraão, Isaque e Jacó (Lucas 13:27-29). O rico pede, então, a Lázaro que lhe refresque a língua com um dedo molhado, pois não agüentava mais o calor da chama (v. 24), e é Abraão que lhe responde dizendo que ele havia tido os seus bens em vida enquanto a Lázaro coubera os males (v. 25). Ademais, havia um enorme abismo entre ambos, e ainda que fosse possível a comunicação verbal, o mesmo não acontecia com o transporte pra lá e pra cá (v. 26). Aterrorizado com sua situação, o rico quis, pelo menos, salvar sua parentela, seus cinco irmãos, pedindo que Abraão lhe permitisse comunicar-se com eles (vv. 27-28), ao que o patriarca respondeu que eles tinham Moisés e os Profetas, ou seja, a Palavra de Deus, e deviam ouvi-los (v. 29). Conhecendo bem seus parentes, o rico tentou argumentar dizendo que era melhor que um morto fosse ter com eles, ao que Abraão, sabiamente, contestou dizendo que se não ouviam nem Moisés nem os Profetas, nem que alguém ressuscitasse eles se converteriam. Aqui está, portanto, uma negação peremptória da possibilidade de comunicação entre mortos e vivos, como o espiritismo defende. Nem que quisessem, os mortos poderiam se comunicar com os vivos. Também está negada a possibilidade de batismo pelos mortos, como os mórmons pregam, pois, a contrario sensu, se alguém não se converteu em vida, certamente não o fará depois de morto. Tanto os espíritas como os aniquilacionistas se defendem dizendo que esta parábola é uma alegoria apenas, e que seria imprestável para contrariar as suas doutrinas, mas dizer isto, com o devido respeito às opiniões divergentes, é atribuir a Jesus um falar sem sentido, uma verborragia inconseqüente. Admitir que uma parábola não tem a intenção de ensinar uma profunda verdade espiritual subjacente é o mesmo que assemelhar a Bíblia a histórias da carochinha. Supondo o absurdo de que Jesus tivesse contado, por exemplo, histórias de ficção científica, com viagens interestelares, para uma audiência que nem imaginava o que isto significava, mesmo assim, haveria alguma verdade profunda a ser comunicada, como o próprio Mestre dissera aos seus discípulos em Lucas 8:10, relacionando as parábolas aos mistérios do reino de Deus. Não se pode negar, portanto, que os ouvintes originais desta parábola sabiam muito bem do que Jesus estava falando, e Ele não fez esforço algum em desmentir a visão que eles tinham da imortalidade da alma[1], da existência de um céu e um inferno após uma única vida neste mundo, e da impossibilidade de comunicação entre mortos e vivos. Lutero assim se manifesta:


Assim, quer dizer aqui que deve existir uma vida diferente daquela que procuram e têm em mente, e que um cristão tem que contar com tristeza e sofrimento no mundo. Quem não admite isso, pode perfeitamente ter bons dias nesta terra e viver conforme todos os seus desejos, depois, porém, haverá de sofrer eternamente, conforme diz em Lucas 6[.25]: "Ai de vós que, aqui, estais rindo e se alegrando, pois tereis que lamentar e chorar", como aconteceu com o homem rico em Lucas 16[.19], que viveu todos os dias esplendidamente e em alegria e se vestia com seda preciosa e púrpura; pensava consigo mesmo que era um grande santo e que estava muito bem com Deus, por lhe ter dado tantos bens. Não obstante, deixava o pobre Lázaro atirado diariamente diante da porta, coberto e úlceras, passando fome, aflição e grande miséria. Mas qual foi a sentença derradeira que alguém ouviu quando se encontrava no fogo do inferno? "Lembra-te que recebeste coisas boas em vida, mas Lázaro recebeu males. Por isso, agora, és torturado; ele, porém, está consolado", etc. [Lc 16.25].


(Martinho Lutero, "Prédicas Semanais sobre Mateus 5-7", in Obras SelecionadasInterpretação do Novo Testamento – Mateus 5-7 – 1 Coríntios 15 – 1 Timóteo, Eds. Sinodal/Ulbra/Concórdia, 2005, vol. 9, pp. 35-36)

Concluindo, é de se perguntar: qual é a mensagem central de Lucas 16?

A meu ver, no contexto em que estão inseridas essas duas parábolas, é preciso lembrar que Lucas 15 termina com aquela que é, talvez, a maior das parábolas sobre a infinitude do amor e da graça de Deus, a do filho pródigo, passando pela administração das coisas terrenas presentes (a do mordomo infiel) e terminando com a firmeza das promessas e as terríveis conseqüências da ira de Deus (a do rico e Lázaro). Em tudo isso, uma expressão se destaca: a "verdadeira riqueza" (Lc 16:11). Qual é ou qual deveria ser a nossa verdadeira riqueza? Enquanto depositamos nosso amor, nossa fé e nossa esperança em coisas e pessoas vãs e passageiras, ainda que seja em nós mesmos, certamente seremos miseráveis. A verdadeira riqueza está, portanto, na salvação propiciada por Jesus, e esta é, a meu ver, a mensagem central de Lucas 16.

[1] Para uma visão do que pensa Calvino respeito da imortalidade da alma, em especial no último parágrafo do seu texto, clique aqui.


P. S.: Para acessar o estudo feito pelo Gustavo sobre Lucas 16, clique aqui.

Grandes livros - 4

Minha querida amiga Kika, conhecedora da minha "queda" por boas leituras, certo dia chegou pra mim dizendo que queria adquirir este bom hábito e por isso tinha comprado o livro "Neve", do escritor que ganhara o Prêmio Nobel daquele ano, 2006, o turco Orhan Pamuk, que havia sido lançado naquele mesmo ano pela Companhia das Letras, num desses raros faros para sucesso editorial que só eles têm. Ela tinha adorado a leitura, e quis que eu lesse o livro para saber se ela estava num bom caminho. Confesso que sou meio reticente quanto a esses prêmios, principalmente o Nobel, que de vez em quando premia alguns escritores de gosto duvidoso, como foi o caso, por exemplo, do japonês Kenzaburo Oe em 1994, cuja obra "Uma Questão Pessoal" geralmente leva o leitor a ter uma questão pessoal contra o autor, no caso, querer o dinheiro de volta e o tempo perdido na leitura de uma bobagem como essa. Confesso também que fujo da lista de best-sellers, talvez um pouco por arrogância da minha parte, mas, em geral, tem bobagens ali (como Lya Luft e suas receitas de água e ar açucarados) que deveriam estar na lista dos livros proibidos para propensos ao enjôo.

Comecei a ler "Neve" com este espírito de nariz empinado, mas aos poucos fui abaixando-o, conformando-me com minha pequenez e deliciando-me com a leitura. A história se passa na Turquia, mais especificamente na região curda, numa cidade chamada Kars, onde a neve parece eterna (não por acaso, "kars" significa "neve" em turco). O passado de guerras entre os impérios otomano e russo, e o presente fronteiriço com Síria, Iraque, Irã e Armênia dão uma idéia da conturbação por que passa aquela parte do mundo, que contamina o personagem central, um poeta turco emigrado para a Alemanha, chamado Ka. Os confrontos são inevitáveis, entre turcos, curdos e armênios, islâmicos radicais e nominais, ocidentais e orientais, ateísmo, secularismo e religião, democracia e opressão, e as pessoas se encontram, desencontram e inexoravelmente se perdem neste labirinto sem fim (nem via de escape). Logo no começo já sabemos que Ka não chegará vivo ao final do livro (o que não tira o prazer da leitura, devo alertar). Revendo sua antiga cidade, seus antigos amores (a bela Ïpek) e dilemas, Ka submerge na neve ensandecida de Kars, e a sua história é contada em primeira pessoa, mas só conhecemos quem a narra no final. A Turquia é um país misterioso, do qual quase nada sabemos. Ler "Neve" é uma maneira de mergulhar neste país e nesta cultura que nos parece tão exótica, mas ao mesmo tempo tão próxima. Terminada a leitura, devolvi o livro pra Kika e a felicitei. Que bom gosto tem esta mulher!

sexta-feira, 25 de abril de 2008

Pecados e pecadores

Eu sinto falta da simplicidade nas igrejas, e parece que Paulo já sentia isto quando disse aos coríntios que temia que eles se afastassem da simplicidade que há em Cristo (2ª Coríntios 11:3). Deus foi muito misericordioso comigo (e continua sendo, graças a Ele). Quando me converti, lá no longínquo ano de 1983, o pastor que me batizou, em janeiro de 1984 (dia 29, pra ser mais exato) era um desses homens de Deus, simples pra caramba, que nasceram pra pregar o evangelho em lombo de burro, sabendo que Deus proveria o suficiente pra ele se manter. Mesmo assim, fundou muitas igrejas batistas pelo interior do Brasil. Homem de profunda sabedoria e simplicidade, certo dia conversávamos sobre o pecado, e o Pr. Nelson me disse algo que eu nunca me esqueci: "o homem natural não peca, só o crente é pecador, porque só o crente tem consciência do pecado e do que ele significa para si e para Deus". Na hora, eu achei meio esquisita esta afirmação, mas o tempo e a vida me provaram que ele estava certo. Simples assim: enquanto temos consciência do pecado, estamos ligados a Deus. Por isso, quando um irmão chega e me diz que está em pecado, tem um lado meu que fica feliz: ele está conectado à Fonte. Já é 99,9% do caminho andado pra solucionar o problema, que é mais simples do que parece. A não ser que ele queira ou goste de complicar.... aí já é outro problema... mas, por incrível que pareça, enquanto ele estiver pecando, há esperança...

O evangelho de Lucas - parte 23

O capítulo 16 de Lucas segue relatando duas parábolas muito importantes contadas por Jesus, a do administrador infiel e a do rico e Lázaro, que também são exclusivas deste evangelho, não aparecendo em nenhum outro. São parábolas que geram uma certa polêmica quanto à sua interpretação, mas que devem ser entendidas no contexto em que estão inseridas, ou seja, Jesus estava na presença de fariseus e escribas que o criticavam por receber e comer com publicanos e pecadores (Lucas 15:1). Todos eles o ouviam, e todas essas parábolas são relatadas neste contexto. O capítulo 16 fala basicamente sobre o bom e o mau uso do dinheiro. A parábola imediatamente anterior, a do filho pródigo (15:11-31), não deixa de ter um fundo com este tema, ainda que sua preocupação central seja outra, mais espiritual. A parábola do administrador infiel é dirigida aos discípulos (16:1), e é também conhecida como a parábola do mordomo infiel. Tendo em vista a conotação negativa que a palavra "mordomia" assumiu na sociedade brasileira, em função dos privilégios e do nepotismo de muitos governantes, hoje se prefere falar em "administrador", para que a idéia fique mais clara, mas muitas igrejas ainda utilizam o termo "mordomia" para referir-se ao serviço que todo discípulo de Cristo deve ter em relação ao seu Senhor. Já a parábola do homem rico e de Lázaro (vv. 19-31) é dirigida, prioritariamente, aos fariseus, como o próprio contexto indica (vv. 14-18). Examinemo-las mais de perto.


A parábola do administrador infiel (vv. 1-13) tem a sua interpretação dificultada pelo fato de não termos a noção exata do que representava, naquela época, a utilização de um administrador para dirigir os negócios de uma pessoa rica. Ainda hoje, este recurso é muito utilizado, com os mesmos problemas inerentes à má administração, mas na sociedade judaica daquela época era comum que um homem rico entregasse a direção dos seus negócios a um administrador de confiança. Ocorre que, na parábola contada por Jesus, este foi denunciado como mau gestor da fortuna alheia (v. 1), pelo que o homem rico o convocou para que prestasse contas. "Prestação de contas" é até hoje o nome técnico para definir essa situação jurídica, havendo inclusive um tipo especial de ação cível assim denominada. Se alguém se recusa a prestar contas da sua administração voluntariamente, poderá ser forçado judicialmente a fazê-lo. No caso bíblico, o homem rico exigiu-a com a maior rapidez o administrador teve pouco tempo pra pensar (v. 2). De imediato, descartou mendigar e trabalhar a terra (v. 3), serviço que ele julgava humilhante para quem, até então, tinha uma alta posição e gozava de considerável reputação na sociedade em que estava inserido. Ele queria minimizar o prejuízo, queria, pelo menos, continuar sendo recebido pelas pessoas de suas relações (v. 4) e, para tanto, arquitetou um plano (v. 5) em que ele perguntava a cada credor quanto eles deviam e fazia um desconto. Deve-se ter em mente que esta era uma prática comum entre alguns judeus de mais posses. Afinal, a lei, esta velha conhecida de quem é desonesto e hipócrita, existe para ser burlada. A lei proibia a usura, ou seja, cobrar juros (Ex 22:25, Lev 25:36-37, Deut 23:19-20). A artimanha usada para contornar esta proibição era registrar um número bem maior do que devia ser pago, em relação ao que havia sido efetivamente emprestado ou vendido a prazo. Assim, como relata a parábola, é muito provável que o que havia sido negociado era cinqüenta cados de azeite (ou algo menos), mas o escrito de dívida registrava cem cados (vv. 5-6). O mesmo fez o administrador infiel com a conta de cem coros de trigo, pela qual aceitou oitenta (vv. 7-8). O seu senhor elogiou a astúcia do administrador infiel (v. 8), pois, segundo o rigor da lei judaica, não havia sido defraudado em nada, embora, obviamente, se pudesse alegar que tinha tido, sim, prejuízo, pelo fato do administrador não seguir os costumes hipócritas locais. Entretanto, o senhor não poderia cobrar a dívida em juízo do administrador, já que ao fazer isto admitiria que patrocinava, ou pelo menos concordava com o descumprimento da lei. É nesse contexto que Jesus aconselha que "das riquezas de origem iníqua fazei amigos, para que, quando aquelas vos faltarem, esses amigos vos recebam nos tabernáculos eternos" (v. 9).


Aqui é que está o problema, aparentemente insolúvel, de interpretação da parábola. Estaria Jesus aconselhando a se aproveitar das riquezas ilícitas? Não contrariaria esse suposto ensinamento de Cristo, expressamente, a própria Palavra de Deus que o Mestre tanto prezava? Afinal, um dos "ais" de Habacuque é justamente quanto a esta questão: "Ai daquele que ajunta em sua casa bens mal adquiridos, par por em lugar alto o seu ninho, a fim de livrar-se das garras do mal!" (Habacuque 2:9). A questão, talvez, seja um pouco mais profunda do que parece. Será que existe alguma riqueza, no mundo, seja a da pessoa aparentemente mais honesta e trabalhadora, que não guarde no seu início, ou em um dos elos da cadeia sócio-econômica que a gerou, algum fato ilícito, por mínimo que seja? Em suma: toda e qualquer fonte de riqueza deste mundo não deve estar centrada em Deus, e ser exercida em seu louvor e honra? O homem iníquo, que repudia a Deus, ao que tudo indica, não é o objeto, o destinatário desta parábola. É aos seus discípulos que Jesus se dirige, ensinando-os algo que o Salomão já dizia, e que Paulo retomaria como mensagem central da carta aos Romanos (em conexão com o próprio Habacuque): "Não há homem justo sobre a terra que faça o bem e que não peque" (Ecl 7:20) e "Não há um justo, nem um sequer" (Romanos 3:10), ao qual Paulo ligaria Habacuque 2:4 – "o justo viverá por fé" (Romanos 1:16). Retomando o significado da parábola, portanto, o que Jesus está ensinando aqui é o desapego ao dinheiro, a não servir dois senhores, Deus e as riquezas (o deus Mamon – v. 13), não no sentido de ser perdulário e dissoluto como o filho pródigo da parábola anterior, mas com o propósito de fazer o bem aos outros, pois, a rigor, nenhum de nós é imune aos erros, aos problemas e à injustiça que o dinheiro traz intrinsecamente consigo. Logo, façamos amigos com os poucos ou muitos recursos que tivermos. Há um perigo aqui, entretanto, de se confundir esta atitude com algum tipo de boas obras através das quais mereçamos o favor de Deus. Comentando sobre essa parábola, Calvino ensina:



Além disso, a Escritura tem também uma terceira regra pela qual regula o uso das coisas terrenas, acerca da qual dissemos algo quando tratávamos dos preceitos da caridade. Pois declara-se que todas elas nos foram assim outorgadas pela benignidade de Deus e destinadas ao nosso proveito, para que sejam como que depósitos dos quais um dia se haja de prestar conta. Portanto, assim importa administrá-las para que aos ouvidos nos soe constantemente esta ordem: "Dá conta de tua mordomia" [Lc 16.2]. Ao mesmo tempo, deve ocorrer-nos por quem é exigida essa prestação de contas. Deveras é por aquele que, como tanto recomendou a abstinência, a sobriedade, a frugalidade, a moderação, também abomina o luxo, a soberba, a ostentação, a vaidade; a quem não é aprovada outra gestão de bens senão aquela que esteja associada com a caridade; que já de sua boca condenou todos e quaisquer deleites que afastem o coração do homem da castidade e da pureza ou embotam sua mente de trevas.

(CALVINO, João. As Institutas. Edição Clássica. São Paulo: Cultura Cristã, 2006. 2. ed. vol. 3, p. 195)


Mas a Escritura nos humilha ainda mais e, no entanto, ao mesmo tempo, também nos exalta. Ora, além de vedar que se glorie nas obras, visto que são dádivas graciosas de Deus, concomitantemente ensina que elas estão sempre sujas de certas poluições; de sorte que, se forem examinadas de conformidade com o padrão de seu juízo, não podem satisfazer a Deus. Mas, para que não nos desfaleça o bom ânimo, a mesma Escritura declara também que elas são agradáveis a Deus, porque ele as apóia. Mas ainda que um pouco diferentemente de nós fala Agostinho, contudo, em substância se verificará que suas palavras não se desafinam das de Bonifácio, o qual, depois de comparar entre si dois homens, supondo que um fosse de vida mui santa e perfeita, e que o outro, também de vida boa e honesta, porém não tão perfeito como o outro, por fim conclui que o que parece não ser tão perfeito como o outro, pela retidão de sua fé em Deus pela qual vive e segundo a qual se acusa de todos seus pecados, louva a Deus em todas suas obras boas, atribuindo-se a si mesmo a ignomínia e a Deus, a honra, e recebendo dele a remissão dos pecados, e o anseio de fazer bem suas obras, quando chega a hora de deixar esta vida será recebido em companhia de Cristo. Por quê, senão graças à fé, a qual, embora a ninguém salva sem as obras (pois ela é uma fé não réproba, que opera por amor), entretanto, por meio dela os pecados são também perdoados, pois que o justo vive da fé, mas sem elas as obras que parecem boas a pecados se convertem? Aqui, sem dúvida, ele está a confessar, não obscuramente, o que tanto temos discutido: que a justiça das boas obras depende e procede do fato de que Deus as aprova por fazer uso de sua misericórdia e de perdoar as falhas que há nelas.

6. AS PASSAGENS BÍBLICAS QUE FALAM DE RIQUEZA OU TESOUROS NOS CÉUS NÃO COMPROVAM O MÉRITO ÀS OBRAS

Há outras passagens quase semelhantes às que acabamos de expor, a saber: "Granjeai amigos com as riquezas da injustiça; ara que, quando estas vos faltarem, vos recebam eles nos tabernáculos eternos"; "Manda aos ricos deste mundo que não sejam altivos, nem ponham a esperança na incerteza das riquezas, mas em Deus, que abundantemente nos dá todas as coisas para delas usufruirmos; que façam bem, enriqueçam em boas obras, repartam de boa mente, e sejam comunicáveis; que entesourem para si mesmos um bom fundamento para o futuro, para que possam alcançar a vida eterna" [1 Tm 6.17-19]. Ora, as boas obras estão sendo comparadas com as riquezas que haveremos de usufruir na bem-aventurança da vida eterna.

(CALVINO, João. As Institutas. Edição Clássica. São Paulo: Cultura Cristã, 2006. 2. ed. vol. 3, pp. 295-296)
No seu comentário a 1 Timóteo, Lutero segue esta mesma linha de pensamento:
Desse modo, quanto mais formos favorecidos com riquezas, tanto mais será necessário, para todos nós, algum defeito pelo qual nos tornemos humildes. Em segundo lugar, os ricos confiam nas riquezas. Ora, Deus quer que eles transformem os outros em pessoas ricas. As suas riquezas são sombras e sinais das verdadeiras riquezas. Se querem ser salvos, empenhem-se para que sejam "ricos em boas obras". "Que pratiquem o bem". [O apóstolo] não diz, apenas, que devem praticar boas obras, mas que devem fazê-lo em abundância, pois está ao alcance de suas mãos a capacidade de vestir os pobres e dar de beber aos que têm sede. Isso porque "a quem mais foi dado, dele mais será pedido" [Lc 12:48]. Que não façam, apenas, o bem, mas que o façam em maior profusão do que os outros, a fim de que não sejam ricos em ouro e prata, mas, sim, em boas obras. "Que repartam com presteza". Aqui ele fala de um ponto de vista específico ou de acordo com a "espécie", ao passo que, acima, falara em geral, ou de acordo com o "gênero" fazer boas obras. Que tenham presteza em partilhar. "[Que sejam] generosos". São "pessoas que repartem" com aqueles que passam necessidade e que se comportam com benevolência e disposição para compartilhar, de sorte que as pessoas possam obter algum benefício de sua parte. Assim como as coisas ou a caixa comum está disponível ao uso de todos os irmãos, o mesmo se dá com o rico. É difícil repartir, ser magnânimo. "Coinônico" (de koinonicosgeneroso – em contraposição a canônico - canonicus), pelo contrário, é que se gostaria de ser! "Que acumule tesouros" [6.19]. Isto explica a frase "nem depositem a sua esperança na incerteza [da riqueza]", etc. [1 Tm 6.17], pois é isso o que fazem os ricos. Aqui, porém, eles procuram um "fundamento" fiel, que dura para sempre. O mesmo diz Cristo: [Lucas 16.9]: "Fazei, para vós, amigos a partir da idolatria da riqueza" [Lc 16.9]. "Dai esmola e eis que tudo [vos será limpo]" [Lc 11.41]. Os ricos devem observar isso diante dos outros, daqueles que são atribulados pela penúria.

(Martinho Lutero, "Apontamentos do Dr. M.[artinho] à Primeira Epístola a Timóteo", in Obras Selecionadas Interpretação do Novo Testamento – Mateus 5-7 – 1 Coríntios 15 – 1 Timóteo, Eds. Sinodal/Ulbra/Concórdia, 2005, vol. 9, p. 594)
É desta maneira, portanto, que os reformadores também entendiam esta parábola, no uso das riquezas para a caridade, fazer amigos, não como um requisito essencial da salvação, mas como um sinal de que o crente, efetivamente, entendeu e vive o que significa ser salvo. Infelizmente, hoje em dia, muitas igrejas evangélicas do Brasil vivem uma realidade completamente diferente, em que o que importa é ajuntar riquezas, e não reparti-las, o que não deixa de ser lamentável (para dizer o mínimo). Para muitos pregadores brasileiros, para ser fiel no pouco, precisa ser fiel no muito, de preferência administrado por eles. Jesus inverte esta lógica ao finalizar esta parábola, comentando que "quem é fiel no pouco também é fiel no muito" (v. 10). A "verdadeira riqueza" é a salvação em Cristo, o verdadeiro tesouro celestial (v. 11), mas se somos infiéis na aplicação das riquezas alheias, como nos apresentaremos diante de Deus (v. 12)? Responda quem quiser.... ou puder....

quinta-feira, 24 de abril de 2008

Sobre a barbárie humana

Acho que nenhum tema que envolva a barbárie humana me desperta mais a atenção do que as primeiras bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki. Todo dia 6 de agosto eu me lembro que um ano mais se passou desde aquele dia em 1945 em que Hiroshima foi literalmente riscada do mapa. Três dias depois foi a vez de Nagasaki. Talvez meu interesse por esses assuntos nipônicos se deva ao fato de ter nascido e me criado numa cidade com forte colonização japonesa, em que boa parte dos meus amigos de infância era composta de nisseis e sanseis. Amizades tão boas que duram até hoje, 38 anos após minha primeira entrada numa sala de aula.

Ontem, zapeando a TV a cabo, me deparei com um documentário na HBO sobre Hiroshima e Nagasaki. O título em inglês é "White Light/Black Rain: The Destruction Of Hiroshima And Nagasaki". Produzido por nipo-americanos (do Norte), o documentário provoca aquelas sensações mistas (e extremas) de repulsa à barbárie e, ao mesmo tempo, de uma identificação profunda com a humanidade. Não é um documentário para estômagos fracos, pois resgata muitas imagens apocalípticas (reais) feitas logo após o bombardeio, entremeadas com desenhos, fotos, pinturas e depoimentos dos sobreviventes. Acho que, se a pessoa resistir ao choque inicial, ela se envolve de tal maneira com a narrativa do documentário que não consegue parar de vê-lo, e meio que com a boca aberta, de tão estupefato que fica. Foi assim que fiquei, até o final. As histórias dos sobreviventes são gigantescamente dramáticas, mas ao mesmo tempo tão reais, próximas de nós, e revelam sua superação, digamos, mitológica de um desastre dessas proporções. Há histórias tão extraordinárias que nem a melhor ficção produziria, como a menina que quis se matar na linha do trem da mesma maneira que sua irmã mais nova tinha feito, mas não conseguiu. Ela, já idosa, diz que sua irmã tinha coragem de morrer, e ela tinha coragem de viver. Digno de nota, também, é o conflito interno dos poucos sobreviventes católicos de Nagasaki, onde havia a maior comunidade cristã da Ásia na época, por cristãos americanos terem feito o que fizeram, ainda lançando a bomba bem em cima do bairro onde moravam. O resultado final é o horror pelo horror, mas também uma enorme confiança de que a vida vale a pena ser vivida. Se puder, confira as reprises do documentário conforme a programação da HBO abaixo (a HBO2 exibe 3 horas depois):

09:00 - Seg - 28/4/2008
10:45 - Qui - 8/5/2008
05:30 - Seg - 19/5/2008

Fidelis fideles lupus

Uma amiga me perguntou se há justificativa bíblica para a injustiça. Exemplifica com a experiência de uma prima sua, que trabalha numa escolinha em que o dono é pastor, e, digamos, não respeita os direitos dos empregados, invocando, em seu favor, princípios que diz encontrar na Bíblia sobre este tipo de situação, enquanto ele próprio (junto com sua família) leva uma vida regalada. Como a própria Sarah disse, já é estranho que um pastor se dedique a este tipo de atividade empresarial, embora muitas igrejas hoje sejam verdadeiras empresas (que não pagam impostos, inclusive). Respondi que, infelizmente, o evangelho serve de desculpa para muita gente explorar os outros. E isso não é de hoje, obviamente... a história é pródiga em mostrar todos os abusos que foram cometidos em nome da autoridade conferida por alguma religião (ou até pela falta dela). Eu sei que isso soa meio filosofia do século XVIII, mas o Thomas Hobbes tinha razão em dizer que o homem é o lobo do homem (homo homini lupus), se bem que o lobo entrou de gaiato nesta frase, porque a família dele é muito mais organizada do que a humana, não exploram o semelhante, e só matam por comida, e não pra comprar o carro do ano.

Este tipo de gente que usa o nome de Deus para manipular os outros, já era previsto na Bíblia. Muitas vezes o "crente" é o lobo do crente. Parodiando Hobbes (e violentando o latim) seria algo como fidelis fideles lupus. Eu gosto particularmente da carta de Judas (pouco lida e pregada, lamentavelmente), em que ele fala dos líderes que "vão pelo caminho de Caim, e por amor do lucro se atiram ao erro de Balaão" (v. 11), que "se apascentam a si mesmos sem temor" (v. 12). Por isso, esse tipo de gente que se diz cristã precisa tanto racionalizar os versículos bíblicos para encontrar uma maneira melhor de manipular e explorar os outros, sejam eles cristãos ou não. Também em razão desses abusos, Paulo fala tanto da consciência, inclusive a pior forma dela, a cauterizada (1 Timóteo 4:2), típica de gente que racionalizou tanto o evangelho a ponto de aconselhar, pregar e defender o indefensável pela Bíblia. Não há justificativa bíblica para injustiças. Então, a melhor coisa a fazer, para quem está sendo explorado e manipulado por líderes que servem ao próprio ventre, é buscar outra coisa pra fazer e propor uma ação trabalhista contra este povo, que de cristão não tem nada. E nem se preocupar com o que eles vão dizer, pois o que importa é a liberdade e a saúde emocional e espiritual de quem está sendo abusado. Consciência cauterizada costuma não ter cura nem ser sensível. A única sensibilidade dessa gente é no bolso.

quarta-feira, 23 de abril de 2008

Indicando: C. S. Lewis e o blog do Vítor

Destaco o texto que o blog Despertai, Bereanos!, do meu amigo Vítor, publicou sobre "The Screwtape Letters" ("Cartas do Diabo ao seu Aprendiz"), de C. S. Lewis. Para acessar o texto, clique aqui. Recomendo, também, o brilhante texto do Vítor sobre o poder (e a natureza) das escolhas que fazemos na vida (ou a vida nos leva a fazer): Simplesmente escolha! Mas será assim tão simples?

Coisas boas acontecem em Brasília

Uma notícia do site Gospel+ que merece ser transcrita e anunciada:

Palestra em Brasília discute o Cristianismo: bênção ou maldição?


"A maioria de nós, cristãos, está bem consciente da existência de falhas no cristianismo, até porque, a fé cristã tem sido alvo de recentes, severas e constantes críticas que buscam enfatizar tais aspectos negativos. No entanto, poucos de nós percebemos que embora alguns destes ataques tenham, tragicamente, base em fatos, essas críticas são exageradas e freqüentemente representam o oposto da verdade. Ao mesmo tempo enormes contribuições do Cristianismo à civilização são, muitas vezes, completamente ignoradas. Na verdade, muitos cristãos são pouco conscientes do grande bem que o evangelho tem feito ao mundo". Uma série de palestras do professor de Novo Testamento Rikk Watts, do Regent College (Vancouver, Canadá), na Igreja Presbiteriana Nacional, em Brasília, DF, de 13 a 16/05, pretende oferecer uma visão geral das muitas formas pelas quais a história cristã, através de sua visão do valor intrínseco de cada pessoa, tem transformado a existência humana.

Segundo esta abordagem, "nenhuma outra visão de mundo sequer chega perto de possuir tamanha força para a promoção do bem". Os tópicos a serem abordados nas palestras "incluem a Humanização do Mundo Antigo, a Inquisição, Caça às Bruxas e Direitos Humanos, o surgimento e a ascensão da Ciência, A Guerra contra a escravatura e, ainda, a Guerra e o Imperialismo".

O palestrante convidado, Watts, fez sua graduação em engenharia aeronáutica, chegando a trabalhar na IBM por vários anos. Tem uma formação multidiciplinar em teologia, filosofia, história da arte e sociologia, com mestrado pela Gordon-Conwell Theological Seminary e PhD pela Cambridge University. Participou de organização paraeclesiática em projetos de cunho cristão dentro de escolas públicas, inclusive com programas de inclusão social. É membro fundador da On Being, maior revista cristã australiana.

A IGREJA PRESBITERIANA NACIONAL fica na via 906 SUL e o HORÁRIO das palestras é das 20:00 às 23h.

terça-feira, 22 de abril de 2008

Eclesiastes - uma introdução

Eclesiastes é um livro cuja autoria é geralmente atribuída a Salomão, conforme indica o seu primeiro versículo ("filho de Davi, rei de Jerusalém"), além de repetir que "vem sendo rei de Israel em Jerusalém" (1:12) e "sobrepujei em sabedoria a todos os que antes de mim existiram em Jerusalém" (1:16). 

Se esta autoria é confirmada, o livro foi composto por volta do século X a. C., havendo estudiosos, entretanto, que consideram que o hebraico utilizado no livro e a visão negativa dos governantes, imprópria para um rei (4:13; 7:19; 8:2-4 e 10:4-7), indicam que a obra foi composta no período posterior ao exílio babilônico, o que dataria o livro para o século VI a. C. 

Deve-se entender por "composta" aqui não exatamente "escrita" como as cartas de Paulo, por exemplo, pois, no Antigo Testamento, muitas vezes a tradição oral se impunha por absoluta necessidade, já que não havia uma escrita organizada, ou uma padronização dela que justificasse a sua cópia manuscrita. 

A primeira evidência de um primitivo hebraico escrito, o calendário de Gezer, data do século X a. C., logo, contemporâneo à versão de que teria sido Salomão o autor de Eclesiastes. 

De qualquer maneira, a tradição oral se encarregava de recitar - e transmitir às gerações seguintes - o teor dos livros tidos como sagrados, além de haver algum tipo de escrita rústica, conforme Deus já ordenara por intermédio de Moisés em Deuteronômio 6:

6 E estas palavras, que hoje te ordeno, estarão no teu coração;
7 e as ensinarás a teus filhos, e delas falarás sentado em tua casa e andando pelo caminho, ao deitar-te e ao levantar-te.
8 Também as atarás por sinal na tua mão e te serão por frontais entre os teus olhos;
9 e as escreverás nos umbrais de tua casa, e nas tuas portas.



Nas versões corrigida e atualizada de Almeida, o livro começa com "Palavras do pregador", sendo que a palavra hebraica traduzida por "pregador"- קהלת - qôheleth - é intraduzível nas línguas ocidentais. 

A NVI traduz por "mestre". As Bíblias católicas preferem não traduzir o termo hebraico. A Bíblia do Peregrino e a de Jerusalém colocam o nome Coélet e a Tradução Ecumênica prefere Qohélet

Trata-se de uma palavra feminina que significava, basicamente, o ato de uma pessoa que convocava uma assembléia, uma reunião popular nas vilas e cidades, com a intenção de se dirigir aos demais mediante um discurso ou uma espécie de aula pública. 

Podemos imaginar, portanto, que a idéia por trás da palavra qôheleth está ligada à Sabedoria, que convocaria os leitores a ouvir as suas lições numa "assembleia" (קהל - qahal, em hebraico; εκκλησία - ekklēsia - em grego), segundo a imagem que Provérbios 1:20-21 mostra, ou seja, que "grita na rua a Sabedoria, nas praças, levanta a voz; do alto dos muros clama, à entrada das portas e nas cidades profere as suas palavras". 

Quando o Velho Testamento foi traduzido do hebraico para o grego, pelos 70 sábios judeus de Alexandria, formando a versão conhecida por Septuaginta, do século II ao I a. C., a palavra qôheleth, na falta de equivalente em grego (e com base em ekklēsia) foi traduzida por Ἐκκλησιαστοῦ - ekklesiasthv – que chegou até nós como Eclesiastes

Naquele tempo ainda não existia a palavra (ou pelo menos a idéia de) "igreja", outra tradução possível para ekklēsia a partir do início do cristianismo. 

Entretanto, não se deve confundir Eclesiastes com dois livros deuterocanônicos (ou apócrifos) que constam da Bíblia católica: o Eclesiástico e a Sabedoria de Salomão. 

Este último foi escrito originalmente em grego por judeus que moravam em Alexandria, no Egito, no século I a. C., sendo a referência a Salomão um mero recurso literário para dar autoridade aos provérbios colecionados no livro. 

Já o Eclesiástico (ou Sirácida) foi escrito por um judeu chamado Jesus, filho de Sirach, por volta do ano 185 a. C., sendo traduzido para o grego por seu neto e incorporada na Septuaginta no século seguinte. 

O fato de ter sido bastante usado no começo da igreja cristã fez com que recebesse o nome de Eclesiástico, aí já com ekklēsia no sentido de "igreja". Esses dois livros não foram aceitos como canônicos pelos judeus e pelos protestantes.

Nunca houve discussão em relação à canonicidade do livro de Eclesiastes. Houve, sim, em relação ao livro de Eclesiástico, que consta apenas da Bíblia católica, e não tem nada a ver com Salomão. 

Mesmo os católicos consideram Eclesiástico um livro "deutero-canônico". "Deutero" é um prefixo que quer dizer "segundo", ou seja, só numa segunda época da História é que alguns livros, como o Eclesiástico, foram considerados canônicos por uma determinada igreja, no caso a católica, já que os judeus não os consideravam assim, e nem os protestantes a partir do século XVI. 

É importante destacar que, mesmo no início da igreja cristã, muitos pais da igreja não consideravam esses livros canônicos. Por isso, a própria igreja católica faz esta distinção.

Considerando as fases da vida de Salomão, tudo indica que a sequência tenha sido: Cantares na juventude, Provérbios na maturidade e Eclesiastes na velhice. 

Há uma evidência interna da Bíblia, inclusive: 1ª Reis 4:32 diz que Salomão compôs 3.000 provérbios e 1.005 cânticos. 

Entretanto, o livro de Provérbios contém algo entre 900 e 923 provérbios de Salomão. 

Muitos se perderam pelo caminho, na poeira dos séculos, e outros foram compostos por terceiros, como Agur (cap. 30) e Lemuel (cap. 31). 

De fato, foi Salomão que compôs a maioria dos provérbios, mas eles foram coletados e reunidos sistematicamente num livro apenas após o retorno do cativeiro babilônico, no século VI a. C., sendo impossível no momento saber em que data ele chegou à conformação atual. 

Cantares, aparentemente, manteve o mesmo formato desde o século X a. C., ou seja, tudo indica que guarde as mesmas palavras que Salomão proferiu ou registrou. 

Tudo isto, entretanto, não pode tirar de nós a convicção de que o Espírito Santo realmente inspirou tanto os escritores como os compiladores desses livros, pois Deus age na História, no meio dos fragmentos das intervenções humanas, juntando os cacos das guerras e catástrofes naturais, para trazer esses textos até nós, tais quais os recebemos.



Leia, a seguir, Eclesiastes - capítulo 1

O evangelho de Lucas - parte 22

Na Bíblia, Lucas 15 é conhecido como o capítulo das parábolas de Jesus na Bíblia. Talvez por registrar 3 parábolas sobre algo ou alguém que se havia perdido e foi achado ou recuperado. Curiosamente, este algo ou alguém pode ser um animal (uma ovelha), uma coisa (uma moeda), ou uma pessoa (o filho pródigo). Talvez esta última parábola seja uma das mais conhecidas por cristãos e não cristãos (ao lado da do bom samaritano) e todas elas, as do capítulo 15 e a do bom samaritano (Lucas 10:30-37) são registradas com exclusividade por Lucas. Nenhum outro evangelho as registra. E o capítulo 15 começa com uma crítica dos fariseus pelo fato de Jesus receber pecadores e comer (e banquetear-se) com eles (vv. 1-2). Esta era uma queixa recorrente dos fariseus a respeito de Jesus. Certamente, eles admiravam Jesus pois não só os seus ensinamentos, como os sinais que promovia, eram dignos de sua atenção. Como o próprio Jesus havia notado antes, os fariseus buscavam, acima de tudo, o reconhecimento da sua importância para a religião e para a nação judaicas. Gostavam particularmente dos primeiros assentos e das saudações pomposas que recebiam em público (Lucas 11:43 e 14:7). Representavam a versão judaica do narcisismo greco-romano. Jesus os conhecia bem, e sabia que o seu comportamento de buscar os doentes (e não os que se julgavam sãos) os escandalizava (Lucas 5:31). Uma das fontes de prestígio (e poder) dos fariseus era justamente o controle dos rituais religiosos pelos quais os pecadores se apresentavam no templo para realizar seus sacrifícios. Os fariseus se especializaram em impor novos encargos para tornar esses rituais ainda mais elaborados e passíveis dos seus muito controles. Receber os pecadores desta maneira assim tão aberta e abrangente era um enorme perigo para sua reputação e posição dentro da estrutura altamente formalista da religião judaica. Ainda mais se este alguém que, digamos, "facilitava" as coisas para os pecadores, se dizia o próprio Deus.

Para reforçar esta sua posição anti-farisaica, Jesus então lhes conta 3 parábolas, todas com o tema de algo (ou alguém) que se havia perdido, mas que era recuperado no final. A primeira envolvia um animal, uma ovelha que se desgarrava do rebanho em que estavam outras 99 (vv. 3-6), e o pastor deixava essas 99 no deserto e ia procurar a que se havia perdido, não descansando enquanto não a encontrasse, e quando finalmente a encontra, retorna feliz para seu rebanho e sua casa, alegrando-se com os amigos e vizinhos. Jesus complementa esta parábola dizendo que, da mesma maneira, haveria muito mais alegria no céu por um pecador que se arrepende do que por 99 justos que não necessitam de arrependimento (v. 7). As 99 ovelhas deixadas "no deserto", devem ser entendidas não como "largadas à própria sorte", mas como o seu original grego propõe, ou seja, εν τό ερημος (en tēi erēmōi), na sua derivação portuguesa, "ermo", um lugar deserto e desabitado, onde estariam livres dos perigos dos animais selvagens e dos penhascos que as ameaçavam na Palestina. O pastor de nossas almas busca as ovelhas perdidas, mas sempre cuida daqueles que estão no seu aprisco. Em seguida, Jesus lhes propõe outra parábola, a de uma coisa perdida, de uma mulher que tinha dez dracmas e perdia uma dentro da própria casa (vv. 8-10). Uma dracma era uma moeda de alto valor para alguém pobre, pois era o equivalente grego do denário romano, ou seja, o salário pago por um dia de trabalho. Dez dracmas podiam representar, muito bem, as economias de uma vida de alguém muito pobre. Há outra tradução possível para dracma, igualmente revestida de um enorme valor simbólico. Além de representar a moeda, considerada isoladamente, uma "dracma" podia ser, também, uma grinalda de dez moedas, usadas por mulheres casadas. Dentro da metáfora da Igreja como noiva de Cristo, que o próprio Jesus usaria em João 3:29, e João usaria bastante em Apocalipse, esta imagem da dracma como grinalda também é muito forte. Na parábola, a dracma era perdida dentro de casa, e as casas dos judeus pobres era geralmente um cômodo sem janelas, apenas com uma porta que dava diretamente para a rua, com um pé-direito baixo, sem nenhuma iluminação externa. Daí a necessidade de se acender uma candeia, uma vela ou uma lamparina, e varrer a casa para encontrar a moeda perdida. Quando a mulher finalmente a encontrava, chamava suas amigas e vizinhas para comemorar a recuperação de algo que lhe era tão valioso. Da mesma maneira, os anjos de Deus se alegravam por um pecador que se arrepende (v. 10).

Nas duas parábolas anteriores, e na seguinte, há outros dois componentes que lhes são comuns. Um deles é o fato de que todas elas tratam de coisas, animais, e pessoas que estão e são muito próximas umas das outras. Não se trata de algo ou alguém desconhecido ou distante que se perdeu. Pelo contrário, era algo ou alguém que estava muito próximo, fosse do físico, fosse do coração. Outro dado comum a essas parábolas é o arrependimento. Nas duas primeiras parábolas, este é um tema tocado no final, na relação que Deus faz entre o pecador arrependido e a festa que os anjos fazem no céu. Na terceira parábola, entretanto, esta proximidade e este arrependimento são levados ao máximo de suas possibilidades de apreensão da metáfora pelo homem comum quando Jesus conta a história de um pai e dois filhos, em que um deles é o que se arrepende e volta para o pai. A parábola do "filho pródigo" (vv. 11-31) é, para mim, a mais bela dos evangelhos. É certamente a mais rica em detalhes, dentro do estilo de Lucas de dar uma visão panorâmica e completa do que Jesus havia vivido e falado. Primeiramente, entretanto, é preciso entender bem o que significa "filho pródigo". Esta é uma expressão arcaica que hoje não faz sentido para quem fala um português moderno, porque "pródigo" está geralmente associado a coisas boas, como um "prodígio", ou a abundância, fertilidade, como na frase "o Brasil tem uma terra pródiga; em se plantando, tudo dá". Entretanto, no sentido com que ficou conhecida a parábola, "pródigo" vem de "prodigalidade", que é a pessoa que dissipa, desperdiça os seus bens. Juridicamente falando, até hoje, a prodigalidade é um dos princípios para se interditar alguém (art. 1.782 do Código Civil). Também segundo o Código Civil brasileiro (art. 4º, inciso IV), uma pessoa pródiga é relativamente incapaz, da mesma maneira que os jovens de 16 a 18 anos (inciso I); os ébrios habituais, os viciados em drogas e os deficientes mentais com discernimento reduzido (inciso II); e os excepcionais sem desenvolvimento mental completo (inciso III). É nesse contexto jurídico que deve ser entendido o "pródigo" que adjetiva o "filho" da parábola, conforme a expressão que nos foi legada por nossos antepassados em todas as línguas. Talvez um nome mais adequado fosse a "parábola do pai que espera", mas o uso e a tradição a consagrou com o nome antigo.

Desta maneira, na parábola do filho pródigo, um pai, certamente muito rico, tinha dois filhos (v. 11), e o mais moço deles pediu que o pai lhe adiantasse a sua parte na herança (v. 12), equivalente a 1/3 dos bens do pai, já que o filho mais velho tinha direito a 2/3 segundo Deuteronômio 21:17. Esta não era uma prática comum, obviamente, e representava também uma grave ofensa ao pai dentro da cultura dos povos semitas. Entretanto, o pai consentiu. Preferiu ver o caçula livre do que tê-lo em casa a contragosto. O filho, então, ajuntou tudo o que era seu e foi para uma terra distante (v. 13), e lá gastou tudo o que tinha, como dizemos hoje, na "gandaia". O fato dele ter ido para muito longe revela o quanto ele já se havia distanciado emocionalmente da sua família. Era como se quisesse esquecer seu passado e suas origens. Algum tempo depois, houve grande fome naquele país (v. 14), e o rapaz começou a passar necessidade. A fome, até hoje, é um fenômeno que desloca pessoas e populações, sobretudo nos países mais pobres, e na Bíblia, a fome está sempre relacionada a grandes mudanças na história do povo de Deus, como na história de José no Egito, e da ida de Jacó e sua família para lá. Nesta parábola, a fome vai exercer outro papel transformador, primeiro negativamente, quando o filho vai trabalhar no campo de um dos cidadãos daquela terra, que o manda cuidar de seus porcos (v. 15). Não havia trabalho mais degradante e humilhante para um judeu do que este, cuidar de animais imundos, e a coisa piora a tal ponto do rapaz ter vontade de comer a ração dos porcos (v. 16), mas nem isso as pessoas lhe davam. Vem, então, a transformação positiva. O filho "cai em si" (v. 17). Modernamente, chamaríamos isso de "ter um insight", ou "cair a ficha", mas ele se toca de que os empregados de seu pai tinham o que comer com fartura enquanto ele morria de fome. Ele poderia ter ficado apenas no remorso, remoendo esses sentimentos frustrantes e negativos, mas ele toma uma atitude decisiva, de se levantar e voltar para o seu pai, reconhecendo o seu pecado (v. 18), não sendo mais digno de ser chamado de seu filho, mas pediria que o pai o tratasse como um dos seus empregados (v. 19). Não teve dúvidas, então, apenas "se levantou" (mostrando o quão baixo ele estava não só física mas emocionalmente) e foi para o seu pai. Estava chegando à sua casa quando o pai o avistou e correu para abraçá-lo e beijá-lo (v. 20). Isto revela, de imediato, duas coisas: 1) o pai certamente esperava que o filho um dia voltasse e se colocava sempre de prontidão para vigiar, de longe, se algum dia o veria vindo pela estrada; 2) era indigno para um pai levantar as suas vestes e correr em direção ao filho, a tradição mandava exatamente o contrário, mas o pai não deu a mínima para os rituais e cerimônias que dele eram esperados; antes, pelo contrário, o que mais pulsava nele era o amor pelo filho. Este, provavelmente já com um discurso ensaiado durante todo o trajeto de retorno, confessa o pecado e diz que não é mais digno de ser chamado de seu filho (v. 21), ao que o pai nem responde, apenas chama os seus servos e pede que eles vistam o filho com as melhores roupas, o anel no dedo e as sandálias nos pés, restaurando-o plena e dignamente à condição de filho seu (v. 22), organizando um churrasco para celebrar a ocasião (v. 23), "porque este meu filho estava morto e reviveu, estava perdido e foi achado" (v. 24). A parábola não termina aí, mas há um filho que estava fora de cena até agora, justamente o filho mais velho que havia ficado com o pai, respeitando-o com toda a cerimônia que sua posição exigia. Este, ao retornar do campo, ouve o barulho da festa (v. 25), chama os criados e pergunta o que estava acontecendo (v. 26), no que é informado do retorno do seu irmão (v. 27), o que o deixa indignado, sem querer entrar na própria casa (v. 28). O pai sai de novo, agora em busca do filho mais velho, procurando acalmar a situação, mas este extravaza a frustração, talvez, de toda uma vida, ao dizer que havia respeitado seu pai por tanto tempo, e nunca fora considerado digno de uma festinha que fosse (v. 29). Seu ódio é tão grande que diz ao pai que "vindo esse teu filho", quando o normal seria "vindo o meu irmão", que tanta desonra havia trazido para si e para a família, o pai lhe dava uma festa (v. 30). Há claramente, aqui, um confronto entre a graça e a lei, entre a fé e as obras. O filho mais novo pecou, reconheceu o pecado, confessou e confiou que o pai o perdoaria, enquanto o mais velho confiava nos seus próprios méritos, nas obras, como garantidores de um relacionamento justo com o pai. Este, entretanto, gracioso e contemporizador, lhe responde que ele, o filho mais velho, estava sempre com o pai, e tudo o que ele tinha era dele (v. 31), o que, de fato correspondia à verdade, já que o filho mais novo não mais poderia participar de uma nova partilha dos bens do pai, segundo a lei, mas, recolocando os relacionamentos nos seus devidos lugares, eles precisavam comemorar o fato de "esse teu irmão" ter morrido e revivido, ter-se perdido e agora era achado novamente, e o Pai, dentro da Sua graça e soberania, é livre e justo para acolher todos os que dEle se aproximam, em paz e com fé, seja o que for que eles tenham passado.

A parábola do filho pródigo é belíssima (veja uma meditação sobre ela clicando aqui), de fato, e tem ainda o mérito de ter inspirado grandes obras dos melhores pintores, como o de Rembrandt abaixo:


P. S.: Para acessar o estudo feito pelo Gustavo sobre Lucas 15, clique aqui.

segunda-feira, 21 de abril de 2008

Allons enfants de la Patrie

Em entrevista publicada na Folha de S. Paulo de ontem, 20/04/08, a historiadora Mary del Priore, ex-professora da USP, autora de 25 livros, entre os quais "História da Criança no Brasil", respondeu algumas questões sobre a enorme repercussão do caso Isabella Nardoni no país. 

Uma das razões (que a pesquisadora chama de "pequena hipótese") para a comoção nacional causada pelo assassinato é o fim dos rituais religiosos numa sociedade moderna e consumista (ver íntegra da entrevista aqui). 

Entre outras questões que são levantadas, como os altos índices de mortalidade infantil até pouco tempo atrás, e o fato de Isabella e João Hélio (outro caso que marcou o país em 2007) serem crianças de classe média, que geram maior repercussão, Mary del Priore chama a atenção para o fim dos rituais religiosos num mundo sem Deus. 

Até o século XIX, por exemplo, era muito comum que as crianças morressem, e havia todo um ritual religioso que fazia com que as pessoas arrefecessem a tragédia mediante a crença num Deus que recebia esses anjinhos no paraíso. 

No mundo moderno, não há mais espaço para Deus nem para anjos, mas ainda há resquícios de uma certa religiosidade, de um certo senso de justiça (e de injustiça), além de, por assim dizer, um instinto moral que obriga a mídia a oferecer-se como instrumento de catarse de uma indignação coletiva que não encontra mais as vias tradicionais de escape para diluir a sua dor. 

A professora identifica - nos casos de Isabella e João Hélio - uma espécie de sacrifícios que não têm mais equivalentes religiosos que permitam entendê-los e assimilá-los dentro de um sistema de crenças que facilitem a consolação dos que ficam.

Gostaria, entretanto, de ir um pouco mais além. 

Parece-me claro que a religiosidade brasileira é um fenômeno resistente até certo ponto, dentro do que a relativização da religião e dos valores morais permite, circunstância que se agrava quando a própria sociedade brasileira se desagrega e se desestrutura, sobretudo do ponto de vista político-institucional, diante da impunidade que grassa em todas as esferas de poder. 

Por muito tempo, o Legislativo aprovou leis que viam apenas o lado do criminoso, dentro da sua ótica de que a impunidade deve ser incentivada no atacado e no varejo, ou seja, já que ninguém é punido decentemente aqui embaixo, logo não exijam que eles sejam punidos lá em cima. 

Esses "desvalores" foram - em larga escala - encampados pelo Judiciário, que, não raras vezes, interpreta e aplica a lei para favorecer quem a descumpre. 

Punição é a exceção à regra da libertinagem jurídica. 

Obviamente, esta é uma visão muito mais ideológica do que seja o direito e a justiça, mas representa um retrato crível do que oferece a realidade brasileira neste aspecto. 

Logo, o clamor popular por justiça, por mais que desagrade alguns desembargadores paulistas, engloba e canaliza uma série de frustrações acalentadas por séculos de impunidade. 

Na ausência da nobreza e do clero, a mídia apenas se encarrega de jogar brioches para o povo, mas todo cuidado é pouco: algumas Bastilhas já caíram por muito menos.

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