terça-feira, 22 de abril de 2008

O evangelho de Lucas - parte 22

Na Bíblia, Lucas 15 é conhecido como o capítulo das parábolas de Jesus na Bíblia. Talvez por registrar 3 parábolas sobre algo ou alguém que se havia perdido e foi achado ou recuperado. Curiosamente, este algo ou alguém pode ser um animal (uma ovelha), uma coisa (uma moeda), ou uma pessoa (o filho pródigo). Talvez esta última parábola seja uma das mais conhecidas por cristãos e não cristãos (ao lado da do bom samaritano) e todas elas, as do capítulo 15 e a do bom samaritano (Lucas 10:30-37) são registradas com exclusividade por Lucas. Nenhum outro evangelho as registra. E o capítulo 15 começa com uma crítica dos fariseus pelo fato de Jesus receber pecadores e comer (e banquetear-se) com eles (vv. 1-2). Esta era uma queixa recorrente dos fariseus a respeito de Jesus. Certamente, eles admiravam Jesus pois não só os seus ensinamentos, como os sinais que promovia, eram dignos de sua atenção. Como o próprio Jesus havia notado antes, os fariseus buscavam, acima de tudo, o reconhecimento da sua importância para a religião e para a nação judaicas. Gostavam particularmente dos primeiros assentos e das saudações pomposas que recebiam em público (Lucas 11:43 e 14:7). Representavam a versão judaica do narcisismo greco-romano. Jesus os conhecia bem, e sabia que o seu comportamento de buscar os doentes (e não os que se julgavam sãos) os escandalizava (Lucas 5:31). Uma das fontes de prestígio (e poder) dos fariseus era justamente o controle dos rituais religiosos pelos quais os pecadores se apresentavam no templo para realizar seus sacrifícios. Os fariseus se especializaram em impor novos encargos para tornar esses rituais ainda mais elaborados e passíveis dos seus muito controles. Receber os pecadores desta maneira assim tão aberta e abrangente era um enorme perigo para sua reputação e posição dentro da estrutura altamente formalista da religião judaica. Ainda mais se este alguém que, digamos, "facilitava" as coisas para os pecadores, se dizia o próprio Deus.

Para reforçar esta sua posição anti-farisaica, Jesus então lhes conta 3 parábolas, todas com o tema de algo (ou alguém) que se havia perdido, mas que era recuperado no final. A primeira envolvia um animal, uma ovelha que se desgarrava do rebanho em que estavam outras 99 (vv. 3-6), e o pastor deixava essas 99 no deserto e ia procurar a que se havia perdido, não descansando enquanto não a encontrasse, e quando finalmente a encontra, retorna feliz para seu rebanho e sua casa, alegrando-se com os amigos e vizinhos. Jesus complementa esta parábola dizendo que, da mesma maneira, haveria muito mais alegria no céu por um pecador que se arrepende do que por 99 justos que não necessitam de arrependimento (v. 7). As 99 ovelhas deixadas "no deserto", devem ser entendidas não como "largadas à própria sorte", mas como o seu original grego propõe, ou seja, εν τό ερημος (en tēi erēmōi), na sua derivação portuguesa, "ermo", um lugar deserto e desabitado, onde estariam livres dos perigos dos animais selvagens e dos penhascos que as ameaçavam na Palestina. O pastor de nossas almas busca as ovelhas perdidas, mas sempre cuida daqueles que estão no seu aprisco. Em seguida, Jesus lhes propõe outra parábola, a de uma coisa perdida, de uma mulher que tinha dez dracmas e perdia uma dentro da própria casa (vv. 8-10). Uma dracma era uma moeda de alto valor para alguém pobre, pois era o equivalente grego do denário romano, ou seja, o salário pago por um dia de trabalho. Dez dracmas podiam representar, muito bem, as economias de uma vida de alguém muito pobre. Há outra tradução possível para dracma, igualmente revestida de um enorme valor simbólico. Além de representar a moeda, considerada isoladamente, uma "dracma" podia ser, também, uma grinalda de dez moedas, usadas por mulheres casadas. Dentro da metáfora da Igreja como noiva de Cristo, que o próprio Jesus usaria em João 3:29, e João usaria bastante em Apocalipse, esta imagem da dracma como grinalda também é muito forte. Na parábola, a dracma era perdida dentro de casa, e as casas dos judeus pobres era geralmente um cômodo sem janelas, apenas com uma porta que dava diretamente para a rua, com um pé-direito baixo, sem nenhuma iluminação externa. Daí a necessidade de se acender uma candeia, uma vela ou uma lamparina, e varrer a casa para encontrar a moeda perdida. Quando a mulher finalmente a encontrava, chamava suas amigas e vizinhas para comemorar a recuperação de algo que lhe era tão valioso. Da mesma maneira, os anjos de Deus se alegravam por um pecador que se arrepende (v. 10).

Nas duas parábolas anteriores, e na seguinte, há outros dois componentes que lhes são comuns. Um deles é o fato de que todas elas tratam de coisas, animais, e pessoas que estão e são muito próximas umas das outras. Não se trata de algo ou alguém desconhecido ou distante que se perdeu. Pelo contrário, era algo ou alguém que estava muito próximo, fosse do físico, fosse do coração. Outro dado comum a essas parábolas é o arrependimento. Nas duas primeiras parábolas, este é um tema tocado no final, na relação que Deus faz entre o pecador arrependido e a festa que os anjos fazem no céu. Na terceira parábola, entretanto, esta proximidade e este arrependimento são levados ao máximo de suas possibilidades de apreensão da metáfora pelo homem comum quando Jesus conta a história de um pai e dois filhos, em que um deles é o que se arrepende e volta para o pai. A parábola do "filho pródigo" (vv. 11-31) é, para mim, a mais bela dos evangelhos. É certamente a mais rica em detalhes, dentro do estilo de Lucas de dar uma visão panorâmica e completa do que Jesus havia vivido e falado. Primeiramente, entretanto, é preciso entender bem o que significa "filho pródigo". Esta é uma expressão arcaica que hoje não faz sentido para quem fala um português moderno, porque "pródigo" está geralmente associado a coisas boas, como um "prodígio", ou a abundância, fertilidade, como na frase "o Brasil tem uma terra pródiga; em se plantando, tudo dá". Entretanto, no sentido com que ficou conhecida a parábola, "pródigo" vem de "prodigalidade", que é a pessoa que dissipa, desperdiça os seus bens. Juridicamente falando, até hoje, a prodigalidade é um dos princípios para se interditar alguém (art. 1.782 do Código Civil). Também segundo o Código Civil brasileiro (art. 4º, inciso IV), uma pessoa pródiga é relativamente incapaz, da mesma maneira que os jovens de 16 a 18 anos (inciso I); os ébrios habituais, os viciados em drogas e os deficientes mentais com discernimento reduzido (inciso II); e os excepcionais sem desenvolvimento mental completo (inciso III). É nesse contexto jurídico que deve ser entendido o "pródigo" que adjetiva o "filho" da parábola, conforme a expressão que nos foi legada por nossos antepassados em todas as línguas. Talvez um nome mais adequado fosse a "parábola do pai que espera", mas o uso e a tradição a consagrou com o nome antigo.

Desta maneira, na parábola do filho pródigo, um pai, certamente muito rico, tinha dois filhos (v. 11), e o mais moço deles pediu que o pai lhe adiantasse a sua parte na herança (v. 12), equivalente a 1/3 dos bens do pai, já que o filho mais velho tinha direito a 2/3 segundo Deuteronômio 21:17. Esta não era uma prática comum, obviamente, e representava também uma grave ofensa ao pai dentro da cultura dos povos semitas. Entretanto, o pai consentiu. Preferiu ver o caçula livre do que tê-lo em casa a contragosto. O filho, então, ajuntou tudo o que era seu e foi para uma terra distante (v. 13), e lá gastou tudo o que tinha, como dizemos hoje, na "gandaia". O fato dele ter ido para muito longe revela o quanto ele já se havia distanciado emocionalmente da sua família. Era como se quisesse esquecer seu passado e suas origens. Algum tempo depois, houve grande fome naquele país (v. 14), e o rapaz começou a passar necessidade. A fome, até hoje, é um fenômeno que desloca pessoas e populações, sobretudo nos países mais pobres, e na Bíblia, a fome está sempre relacionada a grandes mudanças na história do povo de Deus, como na história de José no Egito, e da ida de Jacó e sua família para lá. Nesta parábola, a fome vai exercer outro papel transformador, primeiro negativamente, quando o filho vai trabalhar no campo de um dos cidadãos daquela terra, que o manda cuidar de seus porcos (v. 15). Não havia trabalho mais degradante e humilhante para um judeu do que este, cuidar de animais imundos, e a coisa piora a tal ponto do rapaz ter vontade de comer a ração dos porcos (v. 16), mas nem isso as pessoas lhe davam. Vem, então, a transformação positiva. O filho "cai em si" (v. 17). Modernamente, chamaríamos isso de "ter um insight", ou "cair a ficha", mas ele se toca de que os empregados de seu pai tinham o que comer com fartura enquanto ele morria de fome. Ele poderia ter ficado apenas no remorso, remoendo esses sentimentos frustrantes e negativos, mas ele toma uma atitude decisiva, de se levantar e voltar para o seu pai, reconhecendo o seu pecado (v. 18), não sendo mais digno de ser chamado de seu filho, mas pediria que o pai o tratasse como um dos seus empregados (v. 19). Não teve dúvidas, então, apenas "se levantou" (mostrando o quão baixo ele estava não só física mas emocionalmente) e foi para o seu pai. Estava chegando à sua casa quando o pai o avistou e correu para abraçá-lo e beijá-lo (v. 20). Isto revela, de imediato, duas coisas: 1) o pai certamente esperava que o filho um dia voltasse e se colocava sempre de prontidão para vigiar, de longe, se algum dia o veria vindo pela estrada; 2) era indigno para um pai levantar as suas vestes e correr em direção ao filho, a tradição mandava exatamente o contrário, mas o pai não deu a mínima para os rituais e cerimônias que dele eram esperados; antes, pelo contrário, o que mais pulsava nele era o amor pelo filho. Este, provavelmente já com um discurso ensaiado durante todo o trajeto de retorno, confessa o pecado e diz que não é mais digno de ser chamado de seu filho (v. 21), ao que o pai nem responde, apenas chama os seus servos e pede que eles vistam o filho com as melhores roupas, o anel no dedo e as sandálias nos pés, restaurando-o plena e dignamente à condição de filho seu (v. 22), organizando um churrasco para celebrar a ocasião (v. 23), "porque este meu filho estava morto e reviveu, estava perdido e foi achado" (v. 24). A parábola não termina aí, mas há um filho que estava fora de cena até agora, justamente o filho mais velho que havia ficado com o pai, respeitando-o com toda a cerimônia que sua posição exigia. Este, ao retornar do campo, ouve o barulho da festa (v. 25), chama os criados e pergunta o que estava acontecendo (v. 26), no que é informado do retorno do seu irmão (v. 27), o que o deixa indignado, sem querer entrar na própria casa (v. 28). O pai sai de novo, agora em busca do filho mais velho, procurando acalmar a situação, mas este extravaza a frustração, talvez, de toda uma vida, ao dizer que havia respeitado seu pai por tanto tempo, e nunca fora considerado digno de uma festinha que fosse (v. 29). Seu ódio é tão grande que diz ao pai que "vindo esse teu filho", quando o normal seria "vindo o meu irmão", que tanta desonra havia trazido para si e para a família, o pai lhe dava uma festa (v. 30). Há claramente, aqui, um confronto entre a graça e a lei, entre a fé e as obras. O filho mais novo pecou, reconheceu o pecado, confessou e confiou que o pai o perdoaria, enquanto o mais velho confiava nos seus próprios méritos, nas obras, como garantidores de um relacionamento justo com o pai. Este, entretanto, gracioso e contemporizador, lhe responde que ele, o filho mais velho, estava sempre com o pai, e tudo o que ele tinha era dele (v. 31), o que, de fato correspondia à verdade, já que o filho mais novo não mais poderia participar de uma nova partilha dos bens do pai, segundo a lei, mas, recolocando os relacionamentos nos seus devidos lugares, eles precisavam comemorar o fato de "esse teu irmão" ter morrido e revivido, ter-se perdido e agora era achado novamente, e o Pai, dentro da Sua graça e soberania, é livre e justo para acolher todos os que dEle se aproximam, em paz e com fé, seja o que for que eles tenham passado.

A parábola do filho pródigo é belíssima (veja uma meditação sobre ela clicando aqui), de fato, e tem ainda o mérito de ter inspirado grandes obras dos melhores pintores, como o de Rembrandt abaixo:


P. S.: Para acessar o estudo feito pelo Gustavo sobre Lucas 15, clique aqui.

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