segunda-feira, 30 de outubro de 2017

Celebrando os 500 anos da Reforma com Lutero - parte 30


SOBRE O CASAMENTO E O CELIBATO


S. Paulo escreve: É bom para os viúvos e as viúvas que permaneçam no estado em que também eu vivo. Caso, porém, não se dominem, que se casem. É melhor casar do que viver abrasado. [1 Cor 7.8-9]

Sem dúvida, é bom permanecer como S. Paulo. No entanto, coloca ao lado disso a razão por que não é bom permanecer assim, e por que é melhor casar-se de novo do que permanecer viúvo. S. Paulo resumiu todas as razões para o casamento num só ponto e delimitou toda a glorificação da castidade nas palavras: “Caso, porém, não se dominem, que se casem”. Isso significa: a necessidade te obriga a casar. Por mais que se glorifique a castidade, e por mais nobre que seja a dádiva da castidade, a necessidade a impede, de maneira que poucos são aptos para ela, pois não se dominam. Embora sejamos cristãos e tenhamos o Espírito de Deus na fé, nem por isso está eliminada a criatura de Deus, tu como mulher, eu como homem. Apesar disso o Espírito deixa ao corpo sua natureza e suas funções naturais, como comer, beber, dormir, digerir, defecar, como o faz o corpo de qualquer pessoa.

Da mesma forma também não elimina os caracteres femininos ou masculinos, seu instinto, sua fecundidade e capacidade de procriar. O corpo de um cristão se procria e se multiplica da mesma forma como o de outros seres humanos, pássaros e todos os animais, para o que foi criado por Deus (Gn 1.28). Por isso um homem tem que se unir à mulher e a mulher ao homem por necessidade, quando Deus não faz um milagre por meio de um dom especial, impedindo [a destinação de] sua criatura. É isso que S. Paulo quer dizer aqui: “Quem não se domina, que se case”, como a dizer: A quem Deus não conceder o dom especial, mas deixa ao corpo, seu gênero e natureza, para este é melhor, sim, necessário, que se case, e que não permaneça nem viúvo nem virgem. Ora, Deus não tem a intenção de dar essa graça às pessoas em geral; o comum há de ser o casamento, tal como o instituiu uma vez e como criou ambos os corpos. Não anulará ou bloqueará em todas as pessoas os caracteres recebidos na criação.

Além do mais, um cristão é espírito e carne. Por causa do espírito ele não necessita de matrimônio. Visto, porém, que sua carne é carne comum, corrompida em Adão e Eva, cheia de maus desejos, ele necessita do matrimônio por causa dessa mesma enfermidade e não está em seu poder livrar-se dele. Pois seu corpo tumultua, arde e tem o desejo de procriar como o corpo de qualquer outra pessoa, se não lhe vem em socorro e o dominar com o devido remédio o matrimônio. Deus tolera esse tumultuar por causa do matrimônio e seu fruto. Pois revelou em Gn 3.16 o que está disposto a tolerar no homem, ao não revogar a bênção da multiplicação, pelo contrário, a confirmou, embora soubesse que a natureza corrupta, cheia de maus desejos, não seria capaz de efetuar essa benção sem pecado.

Querer desprezar o estado matrimonial, afastar dele e querer atrair as pessoas para a castidade, visto que acarreta muito sofrimento e incômodos, de nada adianta e não vale, é um empreendimento louco e maldoso. Pois assim não se resolve o problema, porque a necessidade sempre se interpõe e diz: Não pode ser, não é possível, a gente não consegue viver neste céu. Como diz S. Paulo: “Quem não se domina, que se case”. Por outro lado, também não resolve glorificar o estado matrimonial, pois de fato é algo divino, cheio de bens espirituais, pois ninguém ou somente poucos se deixariam comover ao casamento por causa de tais bens. A natureza teme esforço e trabalho.

Existem muitos motivos para casar. Alguns se casam por causa de dinheiro e bens; grande parte casa-se por paixão, à procura de prazer e satisfação; outros ainda para gerar herdeiros. S. Paulo aponta este um, e em princípio não conheço outro mais forte do que este: a necessidade. Sim, necessidade. A natureza procura realizar-se, quer fecundar e multiplicar-se e Deus não quer que isso aconteça fora do matrimônio. Portanto, por causa dessa necessidade, todos têm que procurar o matrimônio, se quiserem viver de boa consciência e orientar-se em Deus. Além dessa necessidade, todas as demais, evidentemente, farão um mau matrimônio, especialmente a paixão que leva as pessoas doidas a entrarem levianamente num estado tão sério, necessário e divino, para logo depois se darem conta do que prepararam para si mesmos.

No entanto, que significa: “Casar-se é melhor do que viver abrasado”? Sem dúvida, toda pessoa que quer viver sem matrimônio e castamente sem a graça [especial] entenderá essa palavra e saberá o que significa. Pois S. Paulo não fala de segredos, mas dos sentimentos comuns e evidentes daqueles que vivem castamente sem serem casados e que, não obstante, não receberam a graça para tanto. Pois diz que vivem abrasados todos os que vivem na castidade sem possuírem a graça, e aponta como único remédio o matrimônio. Se isso não fosse algo tão comum ou se existisse outra solução, não teria aconselhado o matrimônio, embora em alemão se fale do “sofrimento oculto”, que não seria tão comum se fosse um mal oculto.

Também é indubitável que aqueles que têm a graça da castidade não obstante sentem às vezes o mau desejo e são tentados. Mas é algo passageiro, por isso não se pode falar em ardor. Resumidamente, viver abrasado é o ardor da carne que não cessa de tumultuar, é a atração diária pela mulher ou pelo homem que existe em toda parte onde não há gosto e amor pela castidade, de maneira que são tão poucos os que não vivem abrasados, como são poucos os que receberam a graça de Deus para a castidade. Esse ardor é mais forte num, mais brando no outro. Alguns o sentem com tanta violência que se satisfazem a si mesmos. O lugar de todos esses é o casamento. Ouso até dizer: Para cada pessoa casta deve haver mais do que cem mil pessoas casadas.

Nada melhor do que um exemplo: S. Jerônimo, que glorifica a castidade da forma mais exagerada, confessa que não conseguiu dominar sua carne nem com jejum nem com vigílias, de modo que sua castidade se lhe tomou extremamente amarga. Quantas horas boas deve ter perdido com pensamentos carnais! Insistia em que a castidade deve ser trabalhada e que é algo comum. Ora, o homem vivia abrasado e devia ter-se casado. Aí percebes o que significa viver abrasado. Ele foi um daqueles que devia ter casado, e injustiçou-se e fez sofrer a si mesmo pelo fato de não ter-se casado. Há muitos desses exemplos nas biografias dos pais.

S. Paulo chega à seguinte conclusão: Onde não existe o especial dom de Deus, há que se viver abrasado ou casar-se. Em todo o caso (diz Paulo) é melhor casar do que viver abrasado. Por quê? Viver abrasado é castidade inexistente, ainda que não se concretize em atos, porque não é vivida com prazer e boa vontade, mas com grande desgosto, aversão e sob coerção. Desse modo ela é considerada incastidade perante Deus, pois o coração é incasto embora o corpo não ouse ser incasto. De que adianta sustentares uma castidade inexistente e incasta com grande, amargo sacrifício contra tua vontade? Em todos os casos seria melhor ser casado e fugir desse dissabor. Embora também o matrimônio tenha seus desgostos e dissabores, é possível aceita-los e de vez em quando ter seus dias de sossego e prazer. E onde, fora do matrimônio, não existe a graça [especial], é impossível consentir com a castidade e viver nela com prazer.

Aí vês quão tolos mestres e governantes são esses que em toda parte obrigam a juventude à castidade e ainda pretextam que quanto mais amarga e quanto maior a resistência, tanto melhor seria a castidade. Brinca desse jeito com outros assuntos, mas não com a castidade, pois ninguém pode aceder prazerosamente a ela quando não tiver a graça especial. Todas as demais coisas podem ser aceitas prazerosamente, desde que haja fé. Procedem como os judeus que queimavam seus filhos em sacrifício ao ídolo Moloque [cfe. Jr 32.35], de modo que até parece que S. Paulo usou o termo “arder” porque quis apontar e denunciar essa abominação. Pois que diferença existe entre manter um jovem abrasado a vida inteira num convento ou de outra forma e queimar uma criança em honra ao diabo, somente para manter uma miserável castidade inexistente?

Em homenagem a esses mestres e governantes tenho que contar o que ouvi certa vez a respeito de um homem valente, para que essas grosseiras cabeças cegas compreendam com que sabedoria procedem em seu governo. Um desses pregadores escrevera certa vez que quem quisesse prestar um serviço a Deus, deveria empreender algo grande e machucar bastante a si mesmo. Para tanto cita como exemplo a Simeão de Vitae Patrum [*], que ficou um ano inteiro apoiado numa só perna sobre uma alta coluna, orando sem cessar, nem comer nem beber, até que se desenvolveram vermes em seu pé. Ao caírem, os vermes se transformaram em pedras preciosas. É assim que deves proceder contigo, se quiseres servir a Deus (disse dito pregador). É próprio desses pregadores pregar essas mentias que o diabo sem dúvida inventou outrora por meio de malvados patifes para zombar dos cristãos, para acabar com seus milagres que faziam em grande número naqueles tempos, como se todos eles não passassem de tais ludíbrios.

Um desses pregadores doidos teve por discípulo outro doido, conforme o provérbio: “Um louco produz mais outros dez”. Este quis servir a Deus e resolveu torturar-se a si mesmo e começou a reter a urina. Tendo retido a urina por quatro dias, ficou doente; mas ninguém conseguiu dissuadi-lo e quis morrer. Até que Deus inspirou alguém que elogiou seu intento e o apoiou dizendo que ele estava certo (como se deve falar com loucos, para que o entendam, diz Salomão [cfe. Pv 26.5]). “No entanto”, disse ele, “estás fazendo isso por pura vaidade. Se assim for, de nada vale”. Ouvindo isso, desistiu de seu intento e disse: “Se é como me acabais de explicar, desisto”.

Ora, isso é uma loucura grosseira, mas não se deve desprezá-la simplesmente. Com isso Deus mostrou (como disse) o que esses mestres e governantes são capazes de aprontar. Vamos sublinhar o seguinte: a realidade é como a ensina a Escritura e toda a experiência: esta vida na terra é miserável, cheia de miséria e sofrimento, qualquer que seja a posição social que venhas a escolher (desde que seja divina). No entanto, ninguém é tão miserável como aquele a quem se ordena reter a urina ou as fezes. Seria preferível escolher qualquer das condições [de miséria e sofrimento] do que sujeitar-se a algo tão impossível. Visto que ninguém tem obrigação de cumprir tal mandamento, as pessoas não percebem o quanto é agradável urinar e defecar; enquanto isso ficam contemplando e lamentando a miséria em sua condição, que não é a décima parte do que seria essa miséria.

A mesma coisa acontece com esse fogo. Pois os casados estão livres dele, podem apagar seu fogo e esquecem o sofrimento (do mesmo modo como a mulher pensa de maneira muito diferente depois do parto do que antes e durante o parto), e passam a olhar somente para as dificuldades e dissabores de seu estado. Pois ninguém dá atenção às coisas boas que tem, e as coisas más se esquecem depois que passaram. Aqueles, porém, que vivem abrasados e não têm perspectivas, só podem zombar e chamar de loucos aqueles que são casados e, não obstante, se queixam do matrimônio. Pois estão obrigados a dominar o que não se pode dominar, e ainda deverão dominá-lo em vão e perder toda essa amarga fadiga. Sem dúvida, uma desgraça lamentável! O quanto preferiram suportar todos os dissabores do matrimônio do que esse fogo. É isso que S. Paulo quer dizer com: “É melhor casar do que viver abrasado”, querendo significar: casar é ruim, mas viver abrasado é pior. Em resumo: o matrimônio cheio de dissabores é melhor do que a castidade cheia de dissabores. O matrimônio amargo e difícil é melhor do que a castidade amarga e difícil. Motivo: esta de nada vale, aquele pode ser útil.

Digo isso a respeito do fogo que sofrem os que se dominam, que são muito poucos, pois a maioria não suporta esse ardor e não se domina, mas encontram maneiras para se livrarem dele. Disso, porém, não pretendo escrever agora. Quando, porém, se livram dele fora do matrimônio, logo a consciência os acusa, o que é a desgraça mais insuportável e a mais miserável condição na terra. O resultado final de tudo é que a maior parte dos solteiros e dos que vivem na castidade sem terem o dom para isso são constrangidos e obrigados a pecar fisicamente com incastidade, e os demais são obrigados a viver castos exteriormente e incastos interiormente. Dessa maneira aqueles levam uma vida condenável e estes, uma vida desgraçada e sem sentido. E onde estão os governantes espirituais e seculares que se preocupam com esse sofrimento das pobres almas? Com sua incitação e constrangimento [à castidade] apenas ajudam ao diabo a multiplicar diariamente essa miséria.

[*] Vitae patrum. Migne, Patrol. Lat. Tom. 73, cl. 328s. A citação refere-se a Simeão, o Estilita (390-459), que levou a vida eremita e ascética a um certo auge, vivendo sobre uma coluna [em grego stylos - "pilar"] de 20 metros. Do alto dela dirigia-se aos que o procuravam, tendo grande influência em seus dias com suas pregações de acento calcedonense [o Concílio da Calcedônia foi realizado no ano 451 d. C.].

(LUTERO, Martinho. O 7º Capítulo de S. Paulo aos Coríntios. 1523. Tradução de Ilson Kayser. MARTINHO LUTERO. Obras Selecionadas. São Leopoldo: Sinodal. Porto Alegre: Concórdia. 1995. Vol. 5, págs. 204-208)



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