terça-feira, 20 de março de 2012

Hitler - a biografia por Joachim Fest

A biografia de Hitler por Joachim Fest (Ed. Nova Fronteira, 2ª ed., 2005) é uma obra de 935 páginas em 2 volumes. O primeiro acompanha a vida do líder nazista de 1889 a 1933 (até a pág. 461)e o segundo de 1933 a 1945 (págs. 462 a 935). 

Trata-se de uma obra monumental em que o foco é uma tentativa, até certo ponto bem sucedida, de se entender a personalidade do Führer, cuja melhor definição é o título do capítulo 21 (já no vol. 2): “examinando a impessoa”. 

Portanto, aqueles que buscam maiores detalhes estratégicos da Segunda Guerra Mundial não devem ler este livro, mas o de Ian Kershaw, por exemplo, ou mesmo a de Alan Bullock, já que a guerra em si toma menos de 1/5 da biografia de Fest, que se concentra na “impessoa” de Hitler e nas suas relações mórbidas com as pessoas que o cercavam e com o povo que, se não exatamente o levou ao poder por maioria de votos, não só aceitou a sua liderança como a apoiou incondicionalmente a partir dos seus primeiros sucessos como chanceler da Alemanha. 

Especificamente quanto à biografia de Fest, ela é tão profunda e rica em detalhes que se torna difícil resenhá-la. Capítulos extraordinários como o 7 e o 21 mereceriam ser transcritos na íntegra, mas diante da impossibilidade de fazê-lo, vamos nos concentrar em alguns pontos capitais.


Hitler na 1ª Guerra Mundial: desde jovem
ele era incapaz de mostrar um sorriso

Os três grandes biógrafos de Hitler, Ian Kershaw, Alan Bullock e Joachim Fest são unânimes em traçar sua infância e juventude como um período em que ele não tinha nenhum objetivo na vida. 

Fest relembra sua experiência desastrada como estudante até que, em 1904, na escola profissional de Steyr, então com 15 anos de idade, quando “o primeiro boletim foi tão fraco que, segundo sua própria confissão, Hitler tomou uma bebedeira e, tendo usado o documento como papel higiênico, precisou pedir depois uma cópia” (pág. 18). 

Um pouco mais tarde, já em Viena, Hitler vivia com a cabeça tão nas nuvens que o simples fato de ter comprado um bilhete de loteria o fez imaginar que a sorte o acolheria e, diante dessa perspectiva irreal, tratou de ir gastando o dinheiro por conta do prêmio que não veio (pág. 20). 

Talvez já estivesse presente ali a sua crença ferrenha no (seu) "destino" e no "triunfo da vontade", não por acaso título do filme ("Triumph des Willens", 1935) de Leni Riefenstahl que celebra a ascensão do nazismo ao poder na Alemanha.

Muitos anos antes, numa tabacaria na Felberstrasse, perto de onde morava, ele teve contato com uma revista que era ali vendida, a Ostara, editada por Jorg Lanz von Liebenfels, onde bebeu da água envenenada da eugenia, do racismo e do antissemitismo. 

Pouco se sabe também sobre a sua vida afetiva e sexual quando era um jovem adulto na capital austríaca, mas Fest conclui que “somos levados a dar mais crédito à afirmação de que tanto em Linz como em Viena ele não teria tido ‘contato real com uma mulher’. De qualquer modo, é certo que nunca conheceu a paixão magnífica que teria sido capaz de libertá-lo de seu egocentrismo teatral” (pág. 39). 

Em 1909, quando gastou todo o dinheiro da pensão que seu pai lhe havia legado (e ele recebia fraudulentamente mentindo que estava matriculado na Escola de Belas Artes), não restou outra alternativa a Hitler senão levar uma vida de sem-teto, dormindo nas praças e procurando o albergue para os desabrigados de Meidling, onde conheceu um vagabundo notório, Rheinhold Hanisch, com o qual se associaria comercialmente para vender suas pinturas (pág. 45). 

Tudo indica que em 1938 Hitler, já todo-poderoso na Alemanha, teria encomendado o assassinato de Hanisch para manter intocada a sua aura mítica de homem que se fez sozinho de maneira minimamente digna, o que - hoje se sabe - não correspondia à verdade dos fatos. 

A experiência humilhante no albergue teria sido decisiva, segundo Fest, para que – quanto mais se aprofundava a guerra anos depois – Hitler se afundasse no seu mundo bizarro de bunkers escuros em que estava sempre cercado de homens medíocres como ele (pág. 47), o que no fim das contas representou um dos fatores decisivos que lhe custaram a vitória. 

Uma passeata organizada dos operários vienenses foi sua primeira inspiração para a manipulação das massas mediante a demonstração pública de força (pág. 51), assim como o filme “O Túnel”, de Bernhard Kellermann lhe aguçou os sentidos quanto às possibilidades dos discursos demagógicos (pág. 52). 

Também pertencem a esta época as primeiras influências que o levaram à sua concepção esdrúxula de “darwinismo social”, com a lei do mais forte determinando a vida e a morte na sociedade (págs. 54-55).


Hitler era tão meticuloso na sua encenação que
chegou a tirar fotos em estúdio para avaliar o seu
desempenho como orador

Veio então a fuga para Munique, a fim de escapar ao seu destino austríaco. Combateu pela Alemanha na Primeira Guerra Mundial, e após a revolução de novembro de 1918, que selou o fim da monarquia e a derrota alemã, viu-se repentinamente sem chão, já que a caserna e o companheirismo dos militares haviam sido por 4 anos o seu mundo de bunkers, trevas e trincheiras. 

Desperta nele então o gosto pela política, quando nas reuniões dos soldados desmobilizados, “descobriu com uma espécie de êxtase seu talento de orador e percebeu de repente um meio de escapar às aflições de uma existência sem esperança e de se projetar para o futuro” (pág. 87). 

Nas tabernas de Munique, entre copos e barris de cerveja, “o correr dos anos veio provar que tais associações de bebedores de cerveja racistas – aos quais se juntaram logo grupos de ex-combatentes desiludidos e burgueses ameaçados pela proletarização – possuíam em estado latente um dinamismo poderoso, que parecia aguardar apenas o momento de ser despertado, concentrado e posto em ação” (pág. 92). 

Diante da angústia latente de um país derrotado e esfacelado pelas crises econômica e política, “Hitler foi o primeiro a criar um denominador comum a todo esse descontentamento que se manifestava tanto entre os civis como no meio militar. Deu-lhe uma orientação e uma força combatente” (pág. 104). 

Este é o tema central do extraordinário capítulo (a que o autor chama de “primeira inserção” posterior) intitulado “A grande angústia” (págs. 91-111), um tratado sobre a crise moral de uma nação que deveria ser motivo de maiores estudos e que traduz com rara felicidade o “espírito” daquela era, capítulo este que mereceria ser transcrito na íntegra, mas do qual destacamos um pequeno trecho:
Hitler se apoiou nas forças que naquelas circunstâncias críticas ofereciam chances de grande eficácia política. Porque, socialmente falando, os movimentos fascistas tinham-se fixado sobre três elementos: os pequeno-burgueses com seus assomos de indignação moral, econômica, e contra-revolucionária; os meios tendentes a pensar em termos de racionalismo militar; e aqueles que acreditavam no carisma de um Führer único do seu gênero. A seus olhos, esse homem seria a voz resoluta da ordem que poria fim à confusão e ao caos, teria visão mais aguda e refletiria mais profundamente, saberia o que fazer em meio ao desespero vigente, e conheceria também os remédios. O tipo do super-homem não fora evocado só nas numerosas antevisões literáris que se inspiraram ao máximo nas fontes da saga popular germânica. A exemplo da mitologia de numerosos outros povos de história infeliz, a fonte folclórica alemã registra a epopeia daqueles chefes que, mergulhados num sono secular no fundo de suas montanhas, despertaram um dia para reunir seu povo e infligir ao mundo um corretivo vingador.
[...]
Na mesma ocasião, Max Weber tinha traçado também o retrato do líder de personalidade superior que, referendado pelo plebiscito, aspira a obter uma obediência ‘cega’. Mas via nele sobretudo um elemento vivo de resistência à ação e sob a ação de influências bastante distanciadas umas das outras, a época estava pronta para acolher o Führer. Essa ideia buscava inspiração tanto na sensibilidade das camadas populares como na poesia ou no raciocínio científico.
(pág. 106)
Hitler em campanha sabia galvanizar em si a atenção da multidão

Percebe-se, portanto, que nesse mórbido caldo de cultura da angústia coletiva alemã estavam plantadas as raízes do messianismo que seria mais tarde personificado em Adolf Hitler. 

No começo da década de 1920, entretanto, não era essa a ideia que dominava os pensamentos do protótipo do Führer. Ele era basicamente um líder local de Munique, cidade que fervilhava de novidades não tão novas assim e que se tornou o terreno propício para que o nazismo frutificasse. 

Aos poucos Hitler vai se dando conta de que ali suas ideias messiânicas podem vir a florescer: “pouco importa que nos apresentem como palhaços ou criminosos. O essencial é que falem de nós e que se ocupem de nós incessantemente” (pág. 137). 

Curiosamente, o mal que eles representavam encontrou apoio nas forças aliadas vencedoras da Primeira Guerra Mundial, que monitoravam as atividades políticas alemãs, e viram no suporte velado aos nazistas uma forma de impedir que o país entrasse em guerra civil e os comunistas viessem a tomar o poder (pág. 138). 

Na aglutinação das forças da extrema-direita alemã, Hitler não fazia esforço algum em se destacar pela aparência, chegando a apresentar-se às reuniões com “uma jaqueta velha, sapatos de couro amarelo e mochila nas costas” (pág. 146). 

Não descuidava, entretanto, do apelo às forças paramilitares, já que “uma de suas máximas de psicologia era que uma demonstração de força, por pessoas de uniforme, tinha não só o efeito de intimidar como também o de arrastar” (pág. 156). 

A própria palavra “nazi” não foi inventada gratuitamente, já que apesar de derivar da denominação alemã do partido – NazionalesoZIalist (NA-ZI) – soava como o diminutivo carinhoso do nome próprio Ignaz, tão familiar aos ouvidos bávaros (pág. 158). 

O sucesso do partido estava intimamente ligado a essa vinculação imediata com os anseios mais básicos e cotidianos da população bávara a princípio. “Sem esse acordo íntimo entre um destino individual e uma situação sociopatológica, seria inconcebível que Hitler tivesse conseguido obter essa ascendência mágica sobre os espíritos” (pág. 162). 

Desde aquela época, Hitler intuitivamente se fazia passar por mito. “A imagem muito difundida que nos apresenta Hitler como um oportunista desprovido de princípios subestima certamente tanto sua temeridade como sua originalidade. 

Foi precisamente proclamando o ostracismo a que se sentia relegado que colheu apreciáveis êxitos. Ele se revestiu assim de uma auréola de virilidade, de destemor e de desprezo, que preparou, de modo decisivo, o mito do grande líder” (pág. 165). 

Para compor essa aura mistificadora, Hitler não tinha qualquer pudor religioso em fazer sua exegese demagógica:
O emprego frequente de imagens e motivos religiosos, a que recorria para intensificar ao máximo seus efeitos de retórica, refletia a emoção marcante de sua infância. Lembrava-se do tempo em que, ajudando a missa no claustro de Lambach, ficara transtornado pelas imagens de dor e de desespero que contrastavam com a certeza de uma redenção triunfal. Tais combinações lhe inspiravam admiração pelo gênio e o senso psicológico da Igreja católica e daí tirava valiosos ensinamentos. Hitler chegou ao ponto de invocar, de modo blasfematório, ‘seu Senhor e Salvador’, em apoio de suas explosões de ódio anti-semita. “Na qualidade de cristão e de homem, leio com amor infinito aquela passagem que nos relata como o Senhor chegou ao ponto de se levantar bruscamente e se servir de uma chibata para expulsar do templo os usurários, essa raça de víboras e serpentes. Dois mil anos depois, inclino-me com profunda emoção, diante do combate inaudito que Ele travou em prol do mundo inteiro contra o veneno judeu, e constato que essa foi a razão pela qual teve de morrer sobre a cruz”.
(pág. 166)
As paradas das SA - as milícias nazistas - eram
uma maneira de arregimentar o povo em torno
dos seus ideais totalitários

Vem daí, talvez, seu gosto peculiar pela ritualização do nazismo, como complementa Joachim Fest:
Havia o rito das conferências semanais que se tornaram obrigatórias, as excursões em comum, os concertos ou as festas do solstício de verão, os cânticos em coro, as refeições tomadas em conjunto, os braços levantados coletivamente, sem falar das manifestações de simples bonomia que se multiplicaram em locais do partido e nas casas das SA. Tudo isso correspondia, de modo inimitável, às grandes necessidades de fraternidade política e humana. E Hitler insuflou, assim, no partido, uma espécie de espírito de seita que inicialmente poderia ser comparado àquele que animava, originalmente, as comunidades dos primeiros cristãos. Entre as manifestações mais populares figuravam “as festas do Natal alemão” que tinham origem comum. Essas manifestações uniam seus integrantes no sentimento de fazerem parte dos eleitos e de se protegerem contra um mundo tenebroso e hostil. “A maior tarefa do movimento”, declarou Hitler naquela época, “é dar a verdadeiras multidões que erram em busca de soluções ocasião de achar ao menos um lugar onde seu coração respire em paz”.
(pág. 169)
E, ao contrário do que era de se esperar na imensa maioria dos seres humanos, Hitler não mudou – em essência - um milímetro em suas convicções. Segundo Fest, “tem-se a ideia, ou melhor, a impressão de súbita paralisia. Não se manifesta uma só tendência à renovação, uma experiência pessoal. Hitler permaneceu sempre aquilo que foi um dia, imóvel, e como que petrificado” (pág. 174). 

O autor atribui esta dureza ao fato de que “uma das fórmulas que tinham proporcionado o sucesso da cristandade, [Hitler] costumava dizer, era a imutabilidade de seus dogmas, e o temperamento ‘católico’ de Hitler raramente se manifestava de maneira tão precisa quanto na sua vontade de manter fórmulas rígidas e imutáveis” (pág. 263). 

Essa “impessoa” pétrea continuava tendo a sua visão muito particular de “darwinismo social”: “ou o Partido Nazi é realmente o futuro da Alemanha, e então nem o diabo vai detê-lo, ou não é, e então merece ser aniquilado” (pág. 176). 

Antes que essa aniquilação chegasse, entretanto, valia tudo para encher os cofres do partido, já que “consta até que um bordel, dirigido em Berlim na Tauentzienstrasse por um antigo oficial, seguindo as sugestões de Scheubner-Richter, estava a serviço da causa nacional e despejava suas receitas na central do partido em Munique” (pág. 182). 

Por outro lado, apesar dos fins sempre terem justificado seus meios, em relação a Hitler “haveria erro grosseiro em atribuir-lhe traços de corrupção. Semelhante retrato subestima sua obstinação, seu orgulho e o poder de seu delírio” (pág. 183). 

O líder nazista era visto como “infalível”, como “o Cristo que veio a nós através da pessoa de Adolf Hitler” (pág. 525) e o então ministro da Guerra, Werner von Blomberg disse que “um aperto de mão cordial do Führer curou-o de uma gripe, certa ocasião” (pág. 535), o que dá uma ideia clara e gritante do fanatismo das pessoas que o cercavam. 

Este sentimento do partido como uma “nova fé religiosa” (pág. 193) serviu de base para os preparativos do putsch (“golpe”) de Munique, levado a cabo em 9 de novembro de 1923, que resultou num retumbante fracasso. Enganou-se, entretanto, quem imaginou que esse era o seu fim:
Com essa convicção reforçada pelo processo judicial que sofreu, assumia agora, com segurança cada vez maior, a missão do Führer, a única adequada para sua vocação messiânica. Metodicamente e com aguda consciência de seu papel, Hitler impôs essa convicção a seus companheiros de prisão – e foi esse sentimento que lhe deu, desde então, aquela mascara quase gelada cuja expressão jamais viria a ser modificada sequer por um sorriso, um gesto desinteressado, um momento de descuido. De agora em diante, apareceria como uma figura estranhamente inatingível, impessoal, quase abstrata, no cenário em que era, incontestavelmente, o principal protagonista. Já antes do putsch de novembro, Dietrich Eckart se queixara da mania de grandeza e do “complexo messiânico” de Hitler. Agora, ele assumia cada vez mais aquela pose de estátua, correspondente às dimensões monumentais da imagem que fazia da majestade e do comando.
(pág. 219)
Mein Kampf, a autobiografia

É da época da prisão em Landsberg a sua autobiografia, Mein Kampf, em que Hitler tenta criar em torno de si a aura de uma figura mitológica, pelo menos até então sem sucesso. 

Curiosamente, foi o absurdo de sua narrativa e a obviedade de sua automistificação em vida que fizeram com que muita gente desprezasse os nazistas, da mesma maneira como hoje parece ao homem moderno, em retrospectiva, uma insanidade coletiva o fato dele ter chegado ao poder alguns anos depois. E esse foi o grande erro que custou dezenas de milhões de vidas inocentes alguns anos depois:
A exaltação curiosamente neurótica do livro, sua afetação e sua desordenada fragmentação deram argumentos àqueles que por muito tempo subestimaram a ideologia nacional-socialista. “Ninguém leva a sério, ninguém poderia levar a sério ou mesmo compreender esse estilo”, escrevia Hermann Rauschning. E, invocando seu conhecimento íntimo dos bastidores da cena, acrescentava: “O que Hitler realmente pretende não está no Mein Kampf”. Num estilo brilhante e, em todo caso, de maneira que influenciou consideravelmente a historiografia, Rauschning formulou a teoria segundo a qual o nacional-socialismo seria uma “revolução do niilismo”. Hitler e o movimento que dirigia, disse ele, não tinham nem uma ideia nem mesmo uma filosofia própria, mas se aproveitavam de tendências e inclinações do momento, na medida em que estas lhes permitiam ampliar sua ação e recrutar partidários. Seu nacionalismo, seu anticapitalismo, seu culto à tradição, suas concepções de política exterior e até seu racismo e anti-semitismo estavam sempre na dependência de um oportunismo cínico, que nada respeitava, nada temia, em nada tinha fé e violava sem o menor escrúpulo os juramentos mais sagrados. Quando se tratava de tática, as traições do nacional-socialismo não tinham limites, e toda a sua ideologia era apenas um chamariz de fachada, ruidosamente exposto, para dissimular sua vontade de empalmar o poder. E a essa ambição é que era preciso satisfazer antes de tudo, e todo e qualquer êxito era considerado exclusivamente uma etapa no rumo de novas aventuras tão desenfreadas quanto presunçosas, sem razão, sem objetivo concreto, impossíveis de saciar. “As forças atuantes e dirigentes desse movimento eram totalmente desprovidas de princípios e de programa. Seus melhores grupos de choque estavam prontos para agir instintivamente, suas elites assim o faziam após madura reflexão, com sangue-frio e maquiavelismo. Não houve nem há qualquer objetivo que o nacional-socialismo não estivesse pronto a sacrificar ou a suscitar a qualquer momento, desde que o interesse do partido assim o exigisse”. A sabedoria popular expressava a mesma opinião nos anos 30, quando dizia ironicamente que a ideologia nacional-socialista era “o mundo como vontade sem representação”.
(pág. 225)
O nazismo era, na visão de Hitler, era “mais ainda que uma religião. Corresponde à vontade de criar uma nova humanidade” (pág. 235), e esse processo passava pela criação de um “espaço vital” (o lebensraum) alemão no Leste da Europa, às custas dos povos eslavos especialmente da então arqui-inimiga, a bolchevista União Soviética. 

Para chegar lá era necessário, antes, conquistar o poder, o que fez enganando gente como Alfred Hugenberg, dono de um império jornalístico (entre outras atividades) que pensava que podia usar Hitler para os seus propósitos, na vã esperança de posteriormente descartá-lo. O dom oratório de Hitler era o seu maior capital político:
É pois verdadeiro, como se afirma frequentemente, que Hitler só dizia em cada comício o que o público queria ouvir. Certamente não era o falador oportunista dirigindo-se à multidão, mas deixava-se impregnar de todos os sentimentos supersticiosos, de dominação, de angústia, de ódio, e integrava-os para transformá-los imediatamente em dinâmica política. O jornalista americano H. R. Knickerbocker observou, depois de um comício em Munique: “Hitler falou no circo. Era um evangelista falando num comício, o Billy Sunday da política alemã. Seus convertidos marchavam com ele, riam com ele, sentiam com ele. Com ele, riam dos franceses. Com ele, vaiavam a república”. Nessas fusões, Hitler chegava a “viver sua própria neurose como uma verdadeira geral e a fazer da neurose coletiva a caixa de ressonância de sua própria obsessão”.
(pág. 350)
O decrépito presidente Hindenburg cumprimenta
o novo chanceler da Alemanha em 30/1/1933
Por outro lado, Hitler não teria chegado ao poder (para dele não mais sair senão morto), se uma série de atitudes políticas desastradas e egoístas lhe abrissem o caminho para tanto. 

O senil presidente Hindenburg talvez seja o homem que mais tinha o poder nas suas mãos para impedir a ascensão de Hitler ao poder no fatídico dia 30 de janeiro de 1933, mas se envolveu numa “fritura” de primeiros-ministros de Brüning a von Papen:
Isso não quer dizer de modo algum que Hitler tivesse igualmente chegado ao poder com adversários mais decididos. A história moderna quase não tem acontecimentos de tão considerável importância, em que os fatores pessoais, caprichos, preconceitos e emoções de uma ínfima minoria tenham desempenhado papel tão determinante. As instituições raramente estiveram mais invisíveis no momento da decisão. Sem a camarilha presidencial, a chancelaria de Hitler é praticamente impensável; embora desde o verão de 1932 ele não estivesse tão longe do poder, esse passo, por curto que fosse, era grande demais para suas forças. Foram seus adversários que lhe permitiram avançar, com a eliminação dos partidos e do parlamento, a série de batalhas eleitorais, o hábito de infringir a constituição. Cada vez que um deles decidia desistir de criar problemas e resistir ao governo, outro erguia-se inevitavelmente para botar obstáculos. Consideradas em conjunto, as forças da parte adversa foram até o fim maiores do que as de Hitler; mas, voltando-se umas contra as outras, anulavam-se. Era fácil perceber que o nacional-socialismo era o inimigo comum dos burgueses, dos comunistas e marxistas, dos judeus, dos republicanos; mas a cegueira e a fraqueza impediram a maioria dessa gente de deduzir que todo mundo deveria ter sido inimigo dos nacional-socialistas.
(pág. 390)
Um dos primeiros discursos de Hitler, após chegar ao cargo de chanceler, prometia proteger “a cristandade, que é a base de toda a nossa moral, e a família, célula-mater de nosso povo e de nossa nação” (pág. 466, já no vol. 2). 

Agora imagine se ele não tivesse essa “preocupação”, será que conseguiria mais nefasto do que foi? Uma vez instalado no poder, Hitler foi rapidamente desmontando o Estado alemão para se apossar de todas as suas instituições. “Até mesmo um congresso de intelectuais e artistas de esquerda, realizado no teatro da Ópera Kroll, foi interrompido logo no início por causa de supostas afirmações de tom ateu” (pág. 469). 

É importante frisar que tudo isso foi feito dentro das regras do jogo democrático, numa aula magna de como uma ditadura pode inocular e se instalar gradualmente numa democracia, até sufocá-la pela metástase fatal. 

O totalitarismo passa a ditar todas as formas de interação social. Somente “o sono era visto como questão puramente privada” (pág. 509), ou como dizia Hitler, “nosso socialismo tem uma forma de agir muito mais profunda. Não modifica a ordem das coisas, não faz senão mudar as relações dos homens com o estado (...) Que significado têm a partir de agora as expressões ‘propriedade’ e ‘renda’? Por que teremos necessidade de socializar os bancos e as usinas? Nós socializamos os homens” (pág. 513). Por fim:
Toda atividade, toda necessidade básica é, para cada um, determinada pela comunidade que, por sua vez, é representada pelo partido. Não há mais nada de arbitrário; não existe espaço livre algum onde o indivíduo se pertença a si mesmo (...) O tempo da felicidade pessoal está extinto”.
(pág. 497)
Detenções e execuções em massa: "o tempo da felicidade
pessoal está extinto"
Até a clássica divisão da Alemanha entre católicos e protestantes, apesar de manifesta, foi sendo gradualmente absorvida pelo Estado:
Se a considerarmos em seu todo, a depuração se efetuou sobre o plano cultural sem protestos e sem uma resistência realmente séria. Só a Igreja protestante pôde, a custo de uma cisão, opor-se à conquista declarada do poder. Toda e qualquer possibilidade real de expressão desse desejo de resistir da Igreja Católica (cujos bispos já tinham criticado energicamente e condenado de forma oficial o nacional-socialismo) foi obstada pelas negociações já concretizadas durante a vigência da república de Weimar, resultando numa concordata com o Vaticano, e retomadas depois com empenho por Hitler, com todo seu corolário de promessas e concessões aparentes. A Igreja católica terminaria, contudo, por opor uma certa resistência, sempre entravada por múltiplas considerações táticas. As atitudes pseudocristãs do regime não deixaram de influir sobre os líderes das duas religiões oficiais. O próprio Hitler, com suas invocações constantes ao “Deus, nosso Pai” ou à “Providência”, sabia muito bem dar a impressão de estar animado de um santo temor de Deus. O que veio a enfraquecer a vontade de oposição foi o fato de que os fundamentos da visão de mundo do nacional-socialismo (luta contra o “marxismo ateu”, contra o “livre-pensamento”, a “decadência dos costumes”, até mesmo o veredito contra as “artes degeneradas”) eram, no seu conteúdo, muito familiares a numerosos crentes. A ideologia nacional-socialista, na sua heterogeneidade, era, com efeito, para alguns, “uma substância derivada de convicções cristãs, um aspecto dos ressentimentos e das ideologias que se tinham desenvolvido no seio de comunidades cristãos em seu confronto com um mundo exterior que não compreendiam ou que refutavam juntamente com todo o processo evolutivo dos tempos modernos.
(págs. 505-506)
Para se manter no poder recém-conquistado, Hitler ainda precisava ganhar a lealdade do Exército alemão, e isso só foi possível mediante a “faxina” que fez na sua milícia armada, a SA, comandada por Ernst Röhm. 

Entretanto, mesmo no episódio grotesco da “Noite dos Longos Punhais” (Nacht der langen Messer), de 30 de junho para 1º de julho de 1934, em que o Führer alegou um complô imaginário e acusou a liderança da milícia de homossexualismo (que até então era notório e não o havia incomodado), ainda houve espaço para situações tragicômicas como de um membro da SA, também chamado Ernst:
Assim se explica que, até o último momento, muitos dos chefes da SA não tivessem podido compreender o que se passava; nada sabiam de golpe armado ou de complô e sua moralidade não fora até então objeto de discussão ou de crítica por parte de Hitler. O Gruppenführer Ernst, de Berlim, por exemplo, que de acordo com os informes de Himmler tinha organizado para a tarde daquele dia a tomada de surpresa do quarteirão ministerial, na realidade estava em Bremen, de onde se preparava para partir em viagem de núpcias. Antes de embarcar no navio, foi detido e, julgando tratar-se ainda de uma das brincadeiras de despedida de solteiro, um pouco rudes, sem dúvida, de seus camaradas de armas, deixou-se levar. Foi conduzido de avião a Berlim. Sorrindo ao exibir seus braços algemados e fazendo blague com o grupo SS postado no aeroporto, saiu do avião direto para uma viatura policial que o aguardava. As edições extras dos jornais vendidas naquele momento já anunciavam a morte do infeliz. Mas Ernst continuava a crer tratar-se de uma brincadeira. Meia hora depois, era encostado no muro de Lichterfeld e fuzilado, mas recusando-se até aí a acreditar no que se passava e balbuciando ainda um “Heil, Hitler!”.
(pág. 547)
Adolf Hitler e Ernst Röhm quando ainda estava tudo bem entre os dois.
Aparentemente, Hitler jamais se perdoaria por ter traído seu maior apoiador
no início de sua carreira.
Este episódio bizarro mostra o quanto o regime nazista, desde o seu início, tinha de surreal, se transformando e – pior – se instalando definitivamente no governo alemão, e posteriormente dominando boa parte da Europa numa espécie de pesadelo coletivo sem fim. 

Joachim Fest vê nos “espetáculos” de luz e sombras de Nuremberg, por exemplo, não só uma ritualização estética da morte, como também uma espécie de orgasmo hitleriano:


A "catedral de luz" na noite de Nuremberg,
por ocasião do "Dia do Partido" (Reichsparteitag)
A concepção hitleriana de uma política estetizada encontra sua verdadeira expressão nessas exibições, nessas espécies de encantamentos de Sexta-Feira Santa politizada, tal como se pôde dizer que a música de Richard Wagner fazia “propaganda da morte”.
A predileção pelos espetáculos noturnos também fazia parte dessa sublimação estética da morte. Acendiam continuamente archotes, fogueiras, círculos em chamas que, segundo as afirmações dos técnicos em manejo das almas num regime totalitário, pretendiam celebrar a vida, mas que desvalorizavam-na por seus efeitos patéticos, tornando-a inseparável das visões do apocalipse, que sublimavam o arrepio provocado pelo incêndio dos mundos, evocavam catástrofes de que implicitamente o regime não estava excluído.
(pág. 600) 
Em sua pompa pontifical, os congressos do partido não eram apenas o ponto culminante do ano nacional-socialista, mas, para Hitler, a realização dos sonhos de gigantescos cenários de sua juventude. Seus íntimos contaram sobre a excitação que se apossava dele durante a semana do congresso de Nuremberg e sobre a maneira de superar o que correspondia a sua sexualidade contrariada por meio de uma onda inesgotável de discursos.
(pág. 602) 
Cedendo a antigas tendências profundamente enraizadas nele, associava a visão da Nova Europa ao mito da Morte. No fim da guerra, na hora do grande acerto de contas com as Igrejas e quando o Papa, em paramentos solenes e com a tiara na cabeça, tivesse sido enforcado na Praça de São Pedro, a catedral de Strasburgo seria transformada em memorial ao Soldado Desconhecido, enquanto, nos confins do império, dos mais remotos cabos rochosos do Atlântico à planura da Rússia, seriam erigidas torres numa grinalda de monumentos da Morte.
(pág. 779)
A encenação teatral do tipicamente nazista "ritual da Morte"
No magistral capítulo 21 de sua biografia, intitulado “Examinando a impessoa”, Joachim Fest penetra fundo na psicopatologia de Hitler, comentando sobre sua “incapacidade de viver a vida cotidiana” (pág. 604), já que “por uma espécie de auto-sugestão, sempre mostrou-se ao mundo nos disfarces mais diversos, em formas de existência tomadas de empréstimo. [...] 

Reprimia qualquer espontaneidade: do mesmo modo que, pelo temor de revelar livremente uma emoção, só ria escondendo o rosto com a mão, também detestava que o vissem brincando com seu cachorro. 

Quando se percebia observado, ‘afastava brutalmente o cão’, conta uma de suas secretárias” (pág. 605). “Quanto mais alto chegou, maior se fez o vazio humano em torno dele” (pág. 609). 

A constatação de que “de certo modo, Hitler é simplesmente uma impessoa; não se pode atingi-lo, tocá-lo” é atribuída a Magda Goebbels (esposa do ministro da Propaganda, Joseph Goebels) desde o início dos anos 1930 (pág. 611). 

Sua estrita reserva pessoal, entretanto, não impediu que se notasse que ele preferia se cercar de jovens moçoilos como ajudantes mais próximos, já que “uma parte de seu séquito compunha-se de efebos, com os cabelos ligeiramente ondulados, segundo a moda, e gestos afeminados” (pág. 613). “Em um de seus monólogos, Hitler descreveu aos mais íntimos o novo tipo humano, parcialmente realizado na SS, como um animal predatório, cruel, sem medo, marcado de traços ‘demoníacos’ de tal modo que ele próprio se apavorou com a visão” (pág. 622).

Chega então o ano de 1938, com seus preparativos para a guerra. A anexação da Áustria (o Anschluss) em março daquele ano, e a invasão da região dos Sudetos, com a posterior anexação da Tchecolosváquia um ano depois, anunciam ao mundo que a nova Grande Guerra está para começar. 

Joachim Fest faz questão de observar várias vezes que as indecisões (e uma certa “preguiça”) das nações aliadas vencedoras da Primeira Guerra, com suas concessões absurdas e tentativas vãs de pacifismo, terminaram custando ao mundo dezenas de milhões de vidas num horror aparentemente sem fim. 

Se Hitler tivesse sido confrontado em 1938, quando começou com sua tática diversionista e expansionista, ele certamente teria sucumbido, já que o exército alemão, naquela época, não tinha condições de suportar uma retaliação armada, e seria facilmente esmagado. “Um ataque por parte das potências ocidentais, mesmo com a metade de seus efetivos, deveria, consequentemente, ter provocado desde o outono de 1939 o afundamento da Alemanha e o fim da guerra: vários peritos confirmam esse fato” (pág. 702). 

Todas essas vitórias diplomáticas de Hitler, sem disparar um tiro, apenas serviram para criar na população alemã um respeito pela aura mítica do seu Führer, que passou a ser visto como um herói invencível, ao qual a tal “Providência” sempre cobria dos mais cobiçados louros de glória. 

Enquanto pôde, Hitler soube como ninguém tirar proveito da hesitação constrangida e reiterada dos governos da Inglaterra e da França, até negociar com a União Soviética o pacto de não agressão que lhe permitiu invadir a Polônia em 1º de setembro de 1939. 

Estourava a Segunda Guerra Mundial. É aí que Joachim Fest identifica o primeiro erro fatal de Hitler, que o levaria à sua derrocada final:
Se o pacto com Stalin fora um magistral sucesso diplomático, nem por isso deixava de conter um erro pouco visível: anulava as premissas pelas quais Hitler e o Ocidente haviam guiado sua política. Foi um erro irreparável e, com rara unanimidade – inclusive os mais convictos partidários do apaziguamento – a Inglaterra inteira se mostrou decidida a resistir de agora em diante. Embora Hitler tivesse uma merecida reputação por acuidade psicológica, ficou claro, naquele momento crucial, que ele fora apenas o psicólogo dos exaustos, dos resignados, dos desesperados, e que era mais hábil para avaliar o comportamento de suas vítimas do que a reação de seus adversários.
(pág. 684)
Hitler e Göring quando as coisas já não iam nada bem
O próprio Hitler logo percebeu que havia cometido um erro tático que contrariava todo o seu discurso antibolchevique anterior e lançaria por terra todos os seus esforços bélicos posteriores. 

Durante toda a sua carreira política, havia pregado que o inimigo morava no Leste e atendida pelo nome comunista de União Soviética, às custas de quem os alemães deveriam buscar pela força o seu “espaço vital”. 

Agora, entretanto, ainda que na base do tratado de não agressão, os comunistas eram seus aliados, e a toda-poderosa Inglaterra se convertera na inimiga a ser combatida. 

O Führer vaticinou que o começo da guerra era, na verdade, o seu fim. “Algum tempo depois que a guerra com a Inglaterra tornou-se uma certeza, Hitler confiara a Rudolf Hess: ‘Toda a minha obra agora desmorona. Meu livro foi escrito para nada’. Às vezes, comparava-se a Lutero, que tivera tão pouco desejo de lutar contra Roma quanto ele contra a Inglaterra” (pág. 692). 

Era esta a “guerra errada” de Hitler, que até tem o seu sucesso inicial na invasão da França e, já em junho de 1941, da União Soviética, traindo o pacto de 1939, mas que pelo menos o recolocava de volta à sua trincheira ideológica, só que tarde demais. 

1941 não foi, definitivamente, um ano bom para Hitler, já que em dezembro – a reboque do ataque japonês em Pearl Harbor - entraria na guerra o seu inimigo mais temido: os Estados Unidos (pág. 727). 

Nesse ínterim, Fest faz uma curiosa distinção, pois para ele a Segunda Guerra Mundial dura até a entrada das duas superpotências, EUA e URSS, nos campos de batalha. 

A partir daí começa o que ele chama de “Terceira” Guerra Mundial, já que até então os combates haviam sido concentrados em território europeu, o que não mais aconteceria depois disso. O próprio Hitler, de certa maneira, constatou essa mudança radical no curso da guerra:
Desde 1941 – disse ele mais tarde – tinha imposto a si mesmo “jamais e sob pretexto algum, perder o controle, mas, ao contrário, quando sobrevinha uma catástrofe em qualquer parte, sempre me esforçava para encontrar uma solução, a fim de corrigir a situação de qualquer maneira (...) Há cinco anos vivo fora do mundo, não botei o pé no teatro, não tenho assistido a nenhum concerto, nunca mais vi um filme. Vivo apenas para essa única tarefa: levar a bom termo esta luta, porque sei que, se ela não for conduzida por um ser dotado de vontade de ferro, jamais poderá ser vencida”. Resta-nos então perguntar se não foi precisamente a pressão a que se submetia esse maníaco da vontade, essa concentração obstinada sobre o fato da “guerra”, que encurtaram sua razão e o privaram de toda a liberdade interior.
(pág. 757)
Nesse seu mundo inferior de bunkers lúgubres, Hitler vai se afundando cada vez mais no pânico e na hipocondria, incapaz de encarar a realidade, sobretudo a dos milhões de vítimas do seu próprio povo. 

Certa vez, “quando o trem especial do Führer, numa baldeação em Berchtesgaden, passou uma vez, por engano, com as cortinas levantadas, perto de um trem de feridos estacionado ali, Hitler pôs-se em pé, furioso, e mandou que baixassem imediatamente as cortinas” (pág. 766). “Um de seus velhos seguidores, depois de haver comparado suas observações com outras feitas no passado, afirmava já ter notado, nos anos 20, que Hitler tinha necessidade de se deixar enganar para poder agir (...) o caráter de sobretensão fantástica que aureola sua personagem tem origem nessas relações falsas com a realidade: só o irreal era real a seus olhos!” (pág. 767). 

Isto gerou um claro conflito entre a sua pretensa vocação messiânica, da qual havia se alimentado durante anos, e a realidade de suas ações quando teve que esconder o holocausto judaico. 

Preferiu o silêncio, o subterfúgio, a dissimulação, tornando “estranha essa imagem de um salvador que esconde sua ação salvadora” (pág. 770). 

A covardia não era exclusividade sua, entretanto, já que, “entre os dirigentes do regime, Himmler foi o único a assistir – no fim de agosto de 1942 – a uma execução em massa; mas quase desmaiou e imediatamente após teve uma crise de histeria” (pág. 771). 

Com gente desse nível ao seu lado nos postos de comando, o cenário da queda final estava solenemente preparado:
É inteiramente infundada a ideia de que Hitler tenha procurado escapar à queda espetacular tão cuidadosamente preparada. Mais provável que aquelas semanas e dias derradeiros fossem, para ele, a despeito de seu fracasso, um período no qual se acumularam estranhas sensações de apaziguamento. A compulsão suicida que o acompanhara ao longo da vida, predispondo-o sempre aos riscos supremos, iria realizar-se por fim. Uma vez mais, estava de costas contra a parede; mas, agora, era o fim da viagem: não lhe restava mais nada a questionar ou disfarçar; havia nesse fim um elemento de auto-satisfação exacerbado que explica em parte a energia pouco comum de que esse homem ainda dava mostras, e que um observador pertencente a seu círculo mais íntimo descreveu então como “uma ruína humana devorando bolos”.
(pág. 822)
Com os russos já ocupando as ruas de Berlim, chega ao fim a trajetória de vida de uma das figuras mais tristemente emblemáticas da história da humanidade, sobretudo no que ela tem a dizer sobre a miséria humana em seu estado mais cruel. 

Como conclui Joachim Fest, “para se usar, sob outra forma, uma frase de Schopenhauer, a quem Hitler venerava, podemos dizer que Hitler deu ao mundo uma lição que o mundo jamais esquecerá” (pág. 844).


Derrota final: soldados comunistas hasteiam a bandeira
da União Soviética no topo do Reichstag (o Parlamento alemão)





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Hitler: biografias comparadas

A biografia de Hitler por Ian Kershaw

A biografia de Hitler por Alan Bullock



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