segunda-feira, 14 de abril de 2014

Compaixão à la Sheherazade


Esclareçamos logo de largada: Rachel Sheherazade e seus discípulos têm todo o direito a manifestar sua opinião, ainda que abjeta. Ponto.

Entretanto, quando ela se apresenta como “evangélica” e utiliza uma concessão pública para defender a violência, também deve estar preparada para ser contraditada. Faz parte do jogo democrático que, apesar de reconhecidamente falho, ainda não inventaram nada melhor.

Além disso, toda e qualquer questão polêmica tem vários ângulos pelos quais pode ser analisada. Portanto, quando a opinião se baseia em apenas um ponto de vista rasteiro, ela deve ser esmiuçada para que as pessoas que debatem (ou acompanham o debate) possam chegar à sua própria conclusão.

Quando Rachel Sheherazade lançou a campanha “adote um marginalzinho” em apoio ao quase linchamento de um rapaz negro e menor de idade, sua ironia barata apenas mostrava que o ovo da serpente estava chocando.

E seu veneno é tão tóxico que impede as pessoas de analisarem e dialogarem construtivamente sobre o caso.

Imediatamente se associa quem se opõe a esse raciocínio raso de Sheherazade a algum tipo de “amante do crime” ou “protetor de criminosos”, quando – na verdade – se trata de algo totalmente distinto, que a pressa em julgar e condenar não permite alcançar.

Quem prefere que as pessoas sejam investigadas, presas e condenadas segundo o rito previsto em lei não está apoiando o crime. Isto não significa que elas gostam de criminosos ou lhes queiram bem.

Tampouco se trata de divergências ideológicas entre direita e esquerda. O que se discute aqui é o respeito mínimo a regras de convivência em sociedade.

Significa apenas que os opositores do julgamento sumário (mais conhecido por “linchamento”) querem evitar o pior dos pesadelos na aplicação da justiça humana: a execução de um inocente.

Nesses casos, o comportamento de manada justiceira que se segue à indicação de alguém como responsável por um crime, como a própria expressão sugere, declina rapidamente para o instinto animal e impede que os passos lógicos da razão sejam seguidos para que se tenha certeza da culpabilidade do suposto criminoso, para somente então aplicar-lhe a punição cabível.

Essas regras básicas da vida em sociedade, entregando o suspeito às autoridades constituídas para que ele seja investigado e julgado segundo os ditames legais, nos permitem ter a consciência tranquila de que não vamos condenar um inocente à morte.

Se – mesmo assim – não estamos imunes aos erros judiciários, imagine o risco que corremos ao tomar a espada da Justiça em nossas mãos e decepar cabeças em “julgamentos” instantâneos.

Alegar que as autoridades constituídas para tanto não cumprem o seu papel (o que é absoluta realidade no Brasil em todos os níveis e esferas de responsabilidade), não basta para que combatamos a barbárie com a barbárie, o crime com o crime e o desrespeito com o desrespeito.

O fato de não vivermos num mundo ideal não nos isenta de buscar o equilíbrio e a racionalidade possíveis na sociedade e realidade ingratas que compartilhamos.

Um erro não justifica o outro!

A indignação contra a desídia, lentidão e impunidade patrocinadas pelas autoridades não pode servir de desculpa para que tomemos a justiça em nossas próprias mãos. Se eles erram por ação e – sobretudo – por omissão, nós corremos o risco de errar muito mais com “soluções” equivocadas e irreversíveis.

O linchamento de Alailton Ferreira às margens da BR 101 em Serra (ES), um jovem negro de 17 anos de idade e – supostamente - doente mental, revela o quanto a nossa sociedade pode ficar enferma quando um formador de opinião como Sheherazade, ainda que por via transversa e se valendo de uma concessão pública como é a televisão, defende a atitude execrável de fazer justiça com as próprias mãos.

Obviamente, a culpa que eventualmente se possa atribuir a Sheherazade deve ser diluída no caldeirão de descaso e indiferença para com os anseios de segurança da população, que as autoridades constituídas vêm cultivando ao longo de décadas, mas não há como eximi-la de responsabilidade, nem aqueles que repercutem seus delírios nas redes sociais.

Pior ainda é que muitos deles se dizem cristãos. Esquecem-se convenientemente de que foi o cristianismo que introduziu os conceitos de compaixão, perdão e reabilitação (conversão) na história do Direito e da Justiça.

Antes da influência cristã vigorava, nesses casos, a justiça retributiva dos gregos e a lei hebraica do talião: dente por dente, olho por olho. Ainda assim, pelo menos um simulacro de julgamento era necessário. Mesmo que fosse para soltar Barrabás.

Em 2014, no Brasil, nem isso mais é possível. Basta uma acusação qualquer que, em questão de segundos, o suposto meliante é executado pela massa ignara. Com direito a replay.

E pessoas que se dizem cristãs - e compartilham emotiva e hipocritamente lindos trechos bíblicos em suas redes sociais – disputam no tapa o delirante privilégio de atirar a primeira pedra.



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