sábado, 7 de novembro de 2015

O macabro "código penal" dos presídios brasileiros


Os superlotados presídios brasileiros têm "códigos penais" próprios que potencializam a maldade e a depravação humana, as quais não conhecem limites.

ALERTA: pessoas com estômago sensível não devem ler a matéria abaixo, d'O Globo:


Presídios brasileiros têm 'códigos penais' criados pelos próprios presos

Punições entre os detentos incluem canibalismo, ataque com cães e estupro coletivo

ALESSANDRA DUARTE

RIO — Canibalismo, esquartejamento, estupro coletivo, decapitação, “jogo de bola” com cabeças, sevícia com cabo de vassoura, olhos vazados, ida para cela sem luz e com escorpião. São exemplos de punições — talvez as piores — da espécie de “código penal” que se criou entre presos do sistema penitenciário brasileiro, segundo levantamento do GLOBO em denúncias da Justiça Global, do Ministério Público e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Mais do que regras de organização entre presos em cadeias superlotadas e insalubres, as “penas” aplicadas por detentos a outros também são, principalmente nos casos mais violentos, forma de demonstrar poder. À semelhança dos tribunais do crime em áreas dominadas por facções fora das cadeias, também dentro delas grupos de presos fazem seus julgamentos e dão seus vereditos.

— Há grupos com poderio nos presídios, e não só por serem de alguma facção. Em Recife, no Complexo do Curado são os “chaveiros”, presos que ficam com as chaves das celas. Em outros locais há os “celas livres”, como em Rondônia; ou os “faxinas”, os detentos que, em tese, cuidam da limpeza e têm circulação mais livre — conta Sandra Carvalho, coordenadora-geral da Justiça Global, ONG de direitos humanos. — As rixas entre presos são exponencializadas pelas condições em que o Estado os mantém: superlotação, má alimentação, insalubridade, assistência médica precária. São condições nas quais o preso com mais acesso a um ou outro serviço pode se impor. Fica evidente a incapacidade do Estado em relação ao sistema prisional.

APÓS ESQUARTEJAMENTO, FÍGADO ASSADO E COMIDO

No último dia 13, o MP do Maranhão denunciou à Justiça o caso de um detento do Complexo de Pedrinhas que no fim de 2013 foi torturado por horas por outros presos; morto a facadas; esquartejado em 59 partes; e teve pedaços de seu fígado assados e comidos.

“Tudo se iniciou a partir de desentendimento com um detento” de uma facção, relata o promotor Gilberto Câmara França Júnior na denúncia. A vítima também teria “ofendido” outro detento, que seria “torre” desse grupo, “última instância antes da liderança geral”. Após a tortura, ligaram para o “comandante” do grupo — “preso em estabelecimento prisional federal” —, e o veredito foi a morte.

Após execução e esquartejamento, “chegaram a pôr sal nos pedaços do corpo (...), para que não exalasse odor desagradável”. Então, os denunciados “fizeram um fogo e assaram o fígado (...), repartindo esse órgão em pedaços, que foram ingeridos por esses indivíduos, os quais mandaram pedaços para outros detentos também comer”. O corpo só pôde ser reconhecido por um familiar porque um dos pedaços trazia uma tatuagem: “Vitória razão do meu viver”, dizia a homenagem da vítima à filha.

GAY E COM DÍVIDA DE R$ 15. PENA: ESTUPRO COLETIVO

A Corte Interamericana de Direitos Humanos, da Organização dos Estados Americanos (OEA), enviou, no último dia 14, resolução ao Brasil determinando que o país tome medidas para garantir a integridade física dos presos do Complexo do Curado. Segundo uma das denúncias, um detento homossexual, este ano, recebeu como “sanção” de outros presos passar por estupro coletivo numa cela de isolamento com mais de 30 detentos. A “acusação”, segundo os presos, era o fato de que a vítima devia R$ 15 a um preso “chaveiro”. Depoimento da mãe da vítima indica que a homossexualidade do detento (que é transgênero, com corpo com traços femininos devido a hormônios) também teria sido levada em conta para a pena. Por causa do estupro, a vítima contraiu Aids.

— No Curado, nos últimos dois anos, já temos conhecimento de pelo menos cinco sanções de estupro. Parece-nos que tem se tornado uma prática — diz a advogada Natália Damazio, da Justiça Global, contando que a entidade não tem conhecimento de que o detento estaria recebendo coquetel anti-Aids. — Um preso heterossexual foi submetido a tortura por outros, sendo que parte da tortura foi ser estuprado com um cabo de vassoura.

Outro tipo de punição é enviar o detento “condenado” por seus pares a celas de isolamento ou castigo — que no Curado, são locais sem iluminação e com presença de escorpião. Houve relato de castigo que consistiu em ataque a detentos por cães rottweiler, sob a vista de “chaveiros”.

‘JOGO DE BOLA’ COM CABEÇAS

Este ano, na Paraíba e na Bahia, presos foram decapitados por outros, que, depois, chegaram a “jogar bola” com a cabeça do corpo degolado, diz Sandra Carvalho. Essa situação já foi vista em presídios de São Paulo e do Espírito Santo.

— Em São Paulo, os atos de violência entre presos ocorreram principalmente entre o fim dos anos 90 e a primeira década dos anos 2000, no processo de dominação dos presídios do estado por uma facção criminosa — conta ela.

Fauzi Hassan Choukr, coordenador das Promotorias de Execuções Criminais da cidade de São Paulo, ressalta:

— Essas anomalias são evidências de que temos um simulacro de sistema penitenciário. Estamos devendo isso à sociedade.

PAÍS NUNCA FOI CONDENADO NA OEA PELO SISTEMA PRISIONAL

Em Rondônia, no presídio Urso Branco, houve presos esquartejados; que tiveram os olhos vazados e golpeados com “chuços”, armas brancas improvisadas (pedaço de ferro preso num pedaço de madeira). Soube-se de corpos de presos encontrados dentro de paredes de celas.

Urso Branco pode fazer com que o Brasil receba sua primeira condenação pela Corte Interamericana de Direitos Humanos devido à situação do sistema prisional do país, avalia a coordenadora da Justiça Global. Uma condenação pela OEA pode gerar, por exemplo, obrigação de o Estado pagar reparações a vítimas e seus familiares; ou seguir determinadas diretrizes em políticas públicas.

— Nas instâncias de direitos humanos da OEA (a Corte e a Comissão Interamericanas), o Brasil tem, em relação ao seu sistema penitenciário, processos sobre os complexos de Pedrinhas e do Curado, e sobre o presídio Urso Branco. Mas nunca foi condenado com relação a isso (o sistema prisional). Urso Branco pode ser a primeira condenação — diz Sandra.

O presídio teve duas grandes chacinas entre presos: em 2004 e no Réveillon de 2001 para 2002, quando mais de 20 detentos foram executados por outros, diz Sandra, porque decisão judicial determinando que não houvesse mais presos “celas livres” foi erroneamente interpretada.

— Em vez de coibir a circulação dos “celas livres”, misturaram esses presos com os do “seguro”, fecharam a porta e foram para o Ano Novo. Os presos mais vulneráveis a receberem castigos são os do “seguro”, os que cometeram, por exemplo, estupro; além de gays, idosos e presos que não recebem visita, porque não têm dinheiro para pagar as cobranças que muitos grupos fazem em várias prisões — diz Sandra. — Há quase dez anos a OEA faz determinações ao Estado brasileiro sobre Urso Branco e as renova, porque não são integralmente cumpridas. Há cerca de dois meses enviamos novo documento sobre Urso Branco à OEA. Houve melhorias, mas ainda há violações graves, superlotação, péssimo atendimento de saúde.

COM AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA, COMBATE À SUPERLOTAÇÃO

Para tentar mudar o quadro do sistema prisional brasileiro, um dos caminhos que o Judiciário tem tomado é a realização de audiências de custódia, em que a pessoa precisa ser levada à presença de um juiz em até 24 horas após ser presa. Segundo o CNJ, em oito meses, desde que as audiências de custódia começaram a ser implantadas, 21.273 presos foram atendidos — cerca de 3% dos presos no país (711,4 mil), segundo relatório do CNJ de 2014. Dos 21,1 mil que passaram por essas audiências, “46,4% tiveram a concessão de liberdade provisória”, diz o Conselho.

— Antes de 2008, quando começaram os mutirões carcerários do CNJ, nem os juízes iam aos presídios. Nos últimos anos, começou uma cultura no Judiciário de entender as prisões. Um dos instrumentos tem sido a audiência de custódia — diz Fernando Mendonça, juiz de Execuções Penais de São Luís e presidente do Fórum Nacional de Alternativas Penais do CNJ.

— Também são necessários mais presídios, mas muitos poderiam receber penas alternativas. Só no estado de São Paulo, são presas, em média, 300 pessoas por dia. Precisaríamos construir prisões em velocidade inexequível para atender a isso — afirma Fauzi Hassan, do MP de São Paulo.

Procurado pelo GLOBO, o Departamento Penitenciário Nacional (Depen), do Ministério da Justiça, disse que, sobre a resolução da OEA quanto ao Curado, a União está prestando “apoio financeiro e assistência técnica” ao governo de Pernambuco, que inclui “R$ 82,6 milhões para abertura de 2.754 vagas”. “O Depen reafirma compromisso com o apoio aos estados na gestão do sistema”, diz, destacando que “disponibiliza sua Ouvidoria como defesa dos direitos da população carcerária”.



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