quarta-feira, 15 de julho de 2009

O bom pastor - 1ª parte

O BOM PASTOR

Nesses tempos bicudos em que o bom nome de "pastor" é rotineiramente aviltado e profanado pelos aproveitadores e charlatães de plantão, devemos retornar à fonte – o Novo Testamento – para verificar o que Deus quer e requer daqueles que aceitam o nobre desafio de ser bons pastores do Seu rebanho. O assunto é bastante extenso, já que, biblicamente, a missão de um pastor tem a ver com a função de liderar o povo de Deus, no sentido da palavra grega ηγέομαι - hēgeomai (Atos 15:22, Hebreus 14:24)[1], e grandes líderes estão espalhados por todas as páginas da Bíblia. Entretanto, tentaremos aqui verificar alguns critérios que os apóstolos – afinal, os organizadores da Igreja primitiva - nos legaram para identificarmos as qualidades que se esperam de um bom pastor.

Os nomes bíblicos para pastor

A nomenclatura bíblica para a palavra traduzida para o português como "pastor" ou seus equivalentes ("bispo", "presbítero") não segue uma rigidez metodológica, por assim dizer, já que está claro para os destinatários das cartas apostólicas que, ao usarem esses termos, eles se referiam aos líderes da igreja para as quais foram dirigidas (Éfeso, Colossos, Filipos, etc.), bem como para toda a comunidade cristã que seria beneficiada e consolidada pelas cópias das cartas que circulavam entre os irmãos. Assim, vemos que eram usadas, basicamente, as palavras ποιμήν - poimēn ("pastor") - ε ̓πισκοπή - episkopē ("bispo") e πρεσβύτερος - presbuteros ("presbítero"). Nas cartas apostólicas, não há uma clara distinção hierárquica ou funcional entre esses termos, como a tradição da Igreja Romana passaria a usar depois de algum tempo, em que o bispo (e o "patriarca" na Igreja Ortodoxa) passa a ter uma autoridade maior sobre uma jurisdição mais abrangente, e com o nome "pastor" sendo paulatinamente mudado para "padre" ou "sacerdote". Algumas igrejas reformadas seguiram esta distinção, como os presbiterianos, anglicanos e metodistas, no que foram acompanhadas por muitas igrejas neopentecostais da atualidade, sendo que algumas destas buscam uma legitimação ainda maior pela ressurreição do termo "apóstolo", com todas as prerrogativas inerentes ao pretenso "cargo", isto baseados numa interpretação controversa de Efésios 4:11[2], que, ainda que não seja objeto desta análise, parece-nos cristalino que o termo "apóstolo" é reservado aos doze mais próximos de Jesus, com a inclusão de Paulo, também testemunha de sua ressurreição, tanto que ele geralmente começava suas cartas se auto-intitulando de "apóstolo", mas quando escreve conjuntamente com Timóteo a carta aos filipenses (1:1), faz questão de referir-se a ambos como "servos de Jesus Cristo", zeloso que era da nomenclatura apropriada e da autoridade que ela lhe conferia com exclusividade. Passemos, então, ao estudo da qualificação de um bom pastor.

O que se espera de um pastor

Em sua primeira carta a Timóteo (3:1-7)[3], Paulo estabelece alguns critérios (também citados na carta a Tito[4]) que devem ser observados na ordenação de um bom pastor:

1) que seja irrepreensível – a palavra aqui traduzida por "irrepreensível" é ανεπίληπτος - anepilēptos – que não se pode culpar, irrefutável, também um derivativo da palavra επιλαμβάνομαι - epilambanomai - que não deve dar motivos para ser preso, ou conduzido preso às barras da Justiça, como Paulo e Silas em Atos 16:19[5]. Antes que alguns impostores tentem se equiparar a Paulo e Silas, é bom lembrar que eles foram levados às autoridades por estarem pregando o evangelho de Jesus, e não por crimes que cometeram abusando do santo nome do Mestre. No contexto da época (e que vale para os dias atuais), esta palavra ανεπίληπτος - anepilēptos – significa que não deve pairar sobre o pastor nenhuma reprovação de ordem moral ou doutrinária, ou seja, ele não pode defender heresias ou ser equiparado a um falso profeta. Na carta a Tito (1:6-8), ele cita esta qualidade duas vezes e também diz que o pastor deve ser "santo" (ARC), "consagrado" (NVI).

2) marido de uma mulher – embora Paulo fosse solteiro, e alardeasse essa condição[6], ele aconselha que o pastor seja casado com uma mulher, ênfase que se justifica numa sociedade como a em que ele vivia, em que muitos polígamos se convertiam a Cristo e não podiam aspirar ao episcopado. Já traziam enormes problemas para a igreja resolver. A versão católica Bíblia do Peregrino (BP) propõe a tradução "fiel à sua mulher", provavelmente mais uma paráfrase do que uma tradução literal, mas de igual importância. É interessante observar também que, no momento da posse do pastor, Paulo recomenda não só que ele seja casado (e fiel), mas também não seja viúvo, já que a idéia que o versículo dá é a de que a esposa deve estar viva, justamente para auxiliá-lo na difícil missão que tem pela frente. Isto não exclui a possibilidade de que haja excelentes pastores solteiros, não só por um curto período como por toda a vida, mas aí devem ter o dom especial de conter-se, que Paulo conhecia tão bem, como confessa em 1ª Coríntios 7.

3) vigilante, sóbrio – a palavra traduzida por "vigilante" é νηφάλεος , νηφάλιος - nēphaleos, nēphalios – que quer dizer também "sóbrio", "circunspecto", e é usada mais duas vezes no Novo Testamento, como o atributo "honesta" das mulheres do seguinte v. 11 de 1ª Timóteo 3, e como os "anciãos sóbrios" de Tito 2:2. Paulo reforça a idéia com a palavra traduzida por "sóbrio", que é σώφρων - sōphrōn – que é a qualidade de quem tem um excelente autocontrole, moderado (como em Tito 1:8), desapegado das discussões e observações apaixonadas, ou seja, "temperante", conforme a tradução proposta pela versão Almeida Revista e Atualizada (ARA), "cheio de bom senso", conforme a tradução da Bíblia de Jerusalém (BJ) e "ponderado", como propõe a Tradução Ecumênica da Bíblia (TEB). A quase-sinonímia de ambos os termos foi provavelmente proposital, já que Paulo queria dar ênfase a esses atributos. A NVI traduz a primeira palavra por "sóbrio" e a segunda por "prudente", por exemplo. Também se pode relacionar essas qualidades a "sensato, justo, ...que tenha domínio próprio" (Tito 1:8).

4) honesto – a palavra traduzida por "honesto" na ARC é κόσμιοςkosmios
que a NVI traduz por "respeitável", a ARA por "ordeiro", a TEB por "de maneiras corretas", a Bíblia do Peregrino (BP) por "modesto", e a BJ – curiosamente - por "simples no vestir". De fato, a palavra κόσμιος dá a ideia de decoro, bom comportamento, ordem no agir, vestir-se e comportar-se.

5) hospitaleiro – essa é uma das qualidades que a Bíblia mais preza, mas lamentavelmente é uma das mais negligenciadas. Desde os tempos do Antigo Testamento, a hospitalidade era um dever sagrado num meio inóspito como o Oriente Médio, em que povos nômades vagavam pelas planícies e desertos em busca de pasto para o seu gado, além de água e comida para eles mesmos, bem como de um lugar para adorar a Deus, ainda que muitas vezes servissem a deuses estranhos. E interessante observar que a gota d'água que fez com que o caldo punitivo entornasse sobre Sodoma e Gomorra (Gênesis 19) é a preocupação de Ló em exercer a hospitalidade aos dois anjos que foram visitá-lo, a ponto de oferecer a virgindade de duas filhas para que seus hóspedes não fossem violentados (vide também a correlação trágica entre hospitalidade e perversão no caso da mulher do levita em Juízes 19). Esperamos e confiamos que não seja necessário chegar a estes extremos, mas de igual maneira o pastor deve ser hospitaleiro, bom anfitrião dos convidados, amigo dos estrangeiros, como a raiz da palavra grega φιλόξενος - philoxenos – propõe. Paulo reforça esta qualidade em Romanos 12:13 ("Comunicai com os santos nas suas necessidades, segui a hospitalidade") e o escritor de Hebreus (13:2) aconselha: "Não vos esqueçais da hospitalidade, porque por ela alguns, não o sabendo, hospedaram anjos", como o nosso amigo Ló.

6) apto para ensinar – a palavra aqui traduzida por "apto para ensinar" (ARC, ARA e NVI) é de fácil compreensão para o nosso português atual: διδακτικός - didaktikos – simples assim, didático. A BP traduz por "bom mestre", a BJ por "competente no ensino", a TEB por "capaz para ensinar". Curiosamente, talvez estejamos diante de uma contradição moderna, já que os charlatães e impostores, que abusam do evangelho de Jesus, são "bons de lábia", como diz a gíria. Paulo dava especial importância, entretanto, à dupla função primordial do pastor: pregar e ensinar, como mais adiante diz ao próprio Timóteo: "Os presbíteros que lideram bem a igreja são dignos de dupla honra, especialmente aqueles cujo trabalho é a pregação e o ensino" (1 Tim 5:17 – NVI). Em outro episódio, adverte também contra os oportunistas: "Sei que, depois da minha partida, lobos ferozes penetrarão no meio de vocês e não pouparão o rebanho. E dentre vocês mesmos se levantarão homens que torcerão a verdade, a fim de atrair os discípulos para si" (Atos 20:29-30).

7) que governem bem a sua própria casa – aqui temos mais um, digamos, incentivo a que o pastor seja casado, tenha a sua família e a administre bem, não só as pessoas que a compõem, mas todos os negócios que a ela dizem respeito. Parece que isso era particularmente importante nos tempos de Paulo, já que os primeiros pastores eram, geralmente, homens já maduros, com muitos filhos, e que deveriam gerir bem os filhos, não os provocando à ira (Efésios 6:4), mas educando-os "com toda a dignidade" (NVI, BJ, BP, TED) com o exemplo de bom pai e chefe de família. Na carta a Tito (1:6), ele amplia a ideia: que o pastor "tenha filhos crentes que não sejam acusados de libertinagem e insubmissão". Já na carta a Timóteo, no versículo seguinte, Paulo faz questão de esclarecer a relação que faz entre esse atributo e a igreja, perguntando: "se alguém não sabe governar a sua própria casa, como cuidará da igreja de Deus?" (1 Tim 3:5)

8) que tenha bom testemunho dos que estão de fora – "deve ter boa reputação perante os de fora" (NVI), "é conveniente ter boa fama entre os de fora" (BP). Fora de onde? A antiga versão árabe diz que essa reputação deve ser reconhecida "sem a igreja", ou seja, mesmo aqueles que estão fora da igreja, que desprezam o evangelho, devem dar bom testemunho do caráter do pastor como um ser humano comum nas suas atividades cotidianas. Não deixa de ser interessante (e curioso) que Paulo, por assim dizer, "transfira" aos que estão fora da igreja o julgamento deste quesito. Ele privilegiava a boa reputação do cristão perante a comunidade dos não-cristãos, algo que já havia dito pouco antes ao próprio Timóteo[7].

9) retendo firme a fiel palavra - "que é conforme a doutrina, para que seja poderoso, tanto para admoestar com a sã doutrina, como para convencer os contradizentes" (Tito 1:9), " que se apegue firmemente à mensagem fiel, da maneira como foi ensinada, para que seja capaz de encorajar a outros pela sã doutrina e de refutar os que se opõem a ela" (NVI), ou ainda "que se mantenha na doutrina autêntica, de modo que possa exortar com uma doutrina sadia e refutar os que afirmam o contrário" (BP). Paulo está, aqui, se reportando à sua autoridade apostólica, com o seu constante zelo pela sã doutrina, que ele fazia questão de relembrar a Timóteo (1 Tim 1:10, 2 Tim 4:3) e a Tito (1:9 e 2:1), sabedor que era de que muitos falsos profetas e aproveitadores tentavam se apoderar da mensagem do evangelho para servir aos seus próprios prazeres[8]. Sobre esses impostores, falaremos mais adiante, quando analisarmos o que Paulo diz sobre o que um pastor não deve ser.

(continua - para acessar a 2ª parte, clique aqui)




[1] Atos 15:22 (NVI) Então os apóstolos e os presbíteros, com toda a igreja, decidiram escolher alguns dentre eles e enviá-los a Antioquia com Paulo e Barnabé. Escolheram Judas, chamado Barsabás, e Silas, dois líderes entre os irmãos. Hebreus 13:24 (NVI) Saúdem a todos os seus líderes e a todos os santos. Os da Itália lhes enviam saudações. A versão Almeida Revista e Corrigida (ARC) traduz por "homens distintos" e "chefes", respectivamente. Interessante notar que esses "líderes" estão entre "os apóstolos e presbíteros" da Igreja primitiva. Veja também um artigo interessante do blog Estudantes de Teologia.
[2] Efésios 4:11 (ARC) E ele mesmo deu uns para apóstolos, e outros para profetas, e outros para evangelistas, e outros para pastores e doutores,
[3] (ARC) 1Ti 3:1 Esta é uma palavra fiel: se alguém deseja o episcopado, excelente obra deseja.
1Ti 3:2 Convém, pois, que o bispo seja irrepreensível, marido de uma mulher, vigilante, sóbrio, honesto, hospitaleiro, apto para ensinar;
1Ti 3:3 Não dado ao vinho, não espancador, não cobiçoso de torpe ganância, mas moderado, não contencioso, não avarento;
1Ti 3:4 Que governe bem a sua própria casa, tendo seus filhos em sujeição, com toda a modéstia
1Ti 3:5 (Porque, se alguém não sabe governar a sua própria casa, terá cuidado da igreja de Deus?);
1Ti 3:6 Não neófito, para que, ensoberbecendo-se, não caia na condenação do diabo.
1Ti 3:7 Convém também que tenha bom testemunho dos que estão de fora, para que não caia em afronta, e no laço do diabo.
[4] Tito 1:5 Por esta causa te deixei em Creta, para que pusesses em boa ordem as coisas que ainda restam, e de cidade em cidade estabelecesses presbíteros, como já te mandei:
Tito 1:6 Aquele que for irrepreensível, marido de uma mulher, que tenha filhos fiéis, que não possam ser acusados de dissolução nem são desobedientes.
Tito 1:7 Porque convém que o bispo seja irrepreensível, como despenseiro da casa de Deus, não soberbo, nem iracundo, nem dado ao vinho, nem espancador, nem cobiçoso de torpe ganância;
Tito 1:8 Mas dado à hospitalidade, amigo do bem, moderado, justo, santo, temperante;
Tito 1:9 Retendo firme a fiel palavra, que é conforme a doutrina, para que seja poderoso, tanto para admoestar com a sã doutrina, como para convencer os contradizentes.
[5] Atos 16:19 E, vendo seus senhores que a esperança do seu lucro estava perdida, prenderam Paulo e Silas, e os levaram à praça, à presença dos magistrados.
[6] 1Co 7:7 Porque quereria que todos os homens fossem como eu mesmo; mas cada um tem de Deus o seu próprio dom, um de uma maneira e outro de outra.
1Co 7:8 Digo, porém, aos solteiros e às viúvas, que lhes é bom se ficarem como eu.
1Co 7:9 Mas, se não podem conter-se, casem-se. Porque é melhor casar do que abrasar-se.
[7] 1Timóteo 2:1 Antes de tudo, recomendo que se façam súplicas, orações, intercessões e ação de graças por todos os homens;
1Timóteo 2:2 pelos reis e por todos os que exercem autoridade, para que tenhamos uma vida tranqüila e pacífica, com toda piedade e dignidade.
1Timóteo 2:3 Isto é bom e agradável perante Deus, nosso Salvador,
[8] Romanos 16:17 Recomendo-lhes, irmãos, que tomem cuidado com aqueles que causam divisões e colocam obstáculos ao ensino que vocês têm recebido. Afastem-se deles.
Romanos 16:18 Pois essas pessoas não estão servindo a Cristo nosso Senhor, mas a seus próprios apetites. Mediante palavras suaves e bajulação enganam os corações dos ingênuos.

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