segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

A morte do jornalista que "enforcou" Jesus

Antes de mais nada, um esclarecimento é necessário já que o tema é pra lá de delicado.

Não há aqui nenhuma intenção de tripudiar sobre a morte de Daniel Piza, colunista do Estadão, aos 41 anos de idade, vítima de um acidente vascular cerebral (AVC) no último dia 30 de dezembro.

Independentemente do que alguém possa pensar sobre suas opiniões religiosas, políticas ou esportivas, áreas sobre as quais ele costumeiramente escrevia, não se pode negar que era um bom articulista, sabia debater e foi um escritor prolífico.

Uma perda lamentável, portanto, para a sociedade brasileira como um todo.

O fato que não pode ser apagado da história, entretanto, até para que as pessoas aprendam com ele, é que Daniel Piza - um garoto ainda - teve a infelicidade de cometer um dos erros mais crassos da história da imprensa brasileira, quando escreveu que Jesus havia sido "enforcado", e não crucificado, num artigo para a Folha de S. Paulo em 06/12/1994, na página 3 do caderno Ilustrada, que inclusive está ilegível no acervo digital que a própria Folha - supostamente - disponibiliza ao público em geral.

A gafe ("barriga", na gíria jornalística) gerou uma errata que se tornou célebre e foi publicada no dia seguinte:
"Diferentemente do que foi publicado no texto 'Artistas 'periféricos' passam despercebidos', à pág. 5-3 da edição de ontem da Ilustrada, Jesus não foi enforcado, mas crucificado, e a frase 'No princípio era o Verbo' está no Novo, não no Velho Testamento." (7.dez.94)
Religião costuma ser um terreno pantanoso para jornalistas novatos, afobados ou distraídos. A Folha, por sinal, tem uma página dedicada aos erros bíblicos que já publicou, tanto o do "enforcamento" acima como outros do tipo "arca de Jó" e não de Noé (para acessá-la, clique aqui).

Isto revela o quanto se escreve diariamente sobre os mais variados assuntos nos jornais e na mídia em geral, sem que o repórter ou articulista conheça um mínimo plausível sobre o assunto que informa ou opina, ou - pior - diz dominar.

A favor dos jornalistas, por outro lado, se deve dizer que líderes e sacerdotes religiosos cometem erros muito mais absurdos, e com consequências muitíssimo mais graves, sobre assuntos que eles têm a obrigação de dominar.

Apesar da "barriga" tê-lo perseguido por toda a sua - infelizmente - curta vida, Daniel Piza não se deixou abater e seguiu adiante, construindo uma respeitável carreira de sucesso e reconhecimento.

Uma história de superação, portanto. Erros acontecem e ninguém está imune a eles, afinal.

Em agosto de 2007, ele voltou ao tema "religião", declarando-se agnóstico e criticando a militância ateísta panfletária da assim chamada "modernidade".

O artigo está no blog dele no Estadão, de onde transcrevemos um trecho, e lá você encontrará o link para a íntegra:

A fé e o tom

Perdi o pouco que tinha ou poderia ter de fé religiosa entre os 13 e 14 anos, depois de um coquetel de leituras que viria a conter Dostoiévski, Darwin, Nietzsche (O Anticristo) e Bertrand Russell (Por Que não Sou Cristão), os dois últimos na coleção Os Pensadores da editora Abril. Mas, na realidade, já desconfiava de tudo aquilo desde quando fui obrigado a fazer primeira comunhão, aos 10 anos, período em que de fato tentei acreditar e rezar e confessar. A chatice e caretice das aulas, a falta de vontade de obedecer aos padres, a sensação de que não fazia sentido pedir perdão por um pecado que a espécie humana teria gravado em sua alma, não apenas por eventualmente ter roubado o chocolate do meu irmão do armário da cozinha – tudo isso era difícil de engolir, como a hóstia que só provei naquela ocasião e nunca mais.

Passei a me declarar agnóstico, como que dizendo “não sei se Deus existe”, o que era a mais pura e dura verdade. Depois aprendi que o termo tinha sido cunhado por outro escritor-biólogo de grande estilo, Thomas Huxley, com intenção muito mais combativa: a de negar qualquer possibilidade de conhecermos fenômenos supernaturais ou místicos. Ao mesmo tempo, ele traçou uma distinção com os ateístas da época, que supunham poder provar a não-existência de Deus ou deuses. Em países como o Brasil, porém, quando alguém declara ser ateu ou agnóstico causa levantar de sobrancelhas ou olhares de esguelha, como se prestes a cometer algum gesto feio ou autodestrutivo. Nos EUA, principalmente em certas regiões, a reação é ainda pior.

De uns anos para cá, talvez por causa dos atentados de 11/9/2001, os ateus e agnósticos decidiram sair do armário. Surgiram movimentos como o dos “brights” (você leu aqui primeiro), que acham importante aglutinar pessoas que não acreditam em entidades superiores, espírito e vida pós-morte. O livro do mais célebre desses “brights”, Richard Dawkins, Deus, um Delírio (Companhia das Letras), acaba de chegar ao Brasil, onde no final do ano passado já tinha sido publicado o do quase tão célebre Daniel C. Dennett, Quebrando o Encanto (Globo). Recentemente li também God Is not Great, de Christopher Hitchens (Twelve), o polemista inglês. Todos têm bons argumentos, mas, devo dizer, nada acrescentam ao que eu já tinha lido e pensado naquele tempo.

O que fica sem destaque nesses livros é a observação de que até mesmo pessoas não-religiosas atribuem sentidos diversos à palavra Deus, como a qualquer palavra genérica e antiga, e de que isso é um direito delas. Para umas, é justamente a aceitação de que não podemos explicar tudo, de que somos pequenos diante dos mistérios e da passagem do tempo, etc. Minha palavra para isso é Natureza. Para outras, Deus é uma crença que ajudaria a fortalecer valores morais, em especial a humildade e a responsabilidade, numa era em que há tanto materialismo e egoísmo. Chamo a isso Ética. E outras defendem a noção como forma de consolo ou esperança, necessária para situações de desespero como a do pai de família bêbado e agressivo que encontra conforto na palavra de Jesus. Meu nome para isso é Ânimo – ou boa vontade, ou bom humor, ou qualquer coisa que designe disposição de continuar vivendo e superar obstáculos.

Mas, se quiserem chamar de Deus, estarei errado ao supor que defendam ou estejam sujeitas a defender um comportamento repressivo e hipócrita, como diz em especial Hitchens, que é mais um panfletário do que um pensador e nem sequer reconhece o papel do imaginário cristão na tradição cultural. Dennett se mostra mais inclinado a investigar por que o cérebro humano precisa de uma dose de ilusão sobre o futuro, mas acha que não existe convívio possível entre ciência e religião, como se a mesma pessoa não pudesse encarar a fé como “encanto” e defender evolução e genética. Dawkins, no prefácio à nova edição de seu best-seller, rebate a crítica – de que a presença da religião na humanidade desde priscas eras é inelutável – dizendo que a aceitaria se dita “num tom que chegasse pelo menos perto do da pena ou da preocupação”.

Aqui está, portanto. A religião me preocupa quando pretende explicar a dinâmica das coisas e estimula dogmatismo e conformismo; só não perco meu tempo sonhando em aboli-la. E, tal como Dawkins, acho que seu problema e o de Dennett e Hitchens é de tom. Há algo tolo em quem critica o fundamentalismo com o mesmo dedo em riste e a mesma pregação exaltada daqueles que acusa.



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