terça-feira, 14 de agosto de 2012

O gari brasileiro e os caboclos ingleses

Cerimônias de abertura e encerramento de grandes eventos esportivos como as Olimpíadas e a Copa do Mundo de futebol são inevitavelmente festivais de clichês e obviedades. Não há como fugir deles.

Ao contrário de muita gente que não gostou da referência a garis, índios, mulatas, capoeiristas, maracatu e samba, a participação brasileira na festa de encerramento dos Jogos Olímpicos de Londres 2012, me pareceu simpática e adequada, sem abusar dos clichês e aproveitando bem os 8 minutos que lhe foram reservados.

Curiosa foi a junção de Iemanjá com as Bachianas Brasileiras de Villa-Lobos. Cá entre nós, esse negócio de pular 7 ondas no reveillon é coisa mais pra turista inglês ver, enquanto a preciosíssima obra de Villa-Lobos é apreciada mundo afora apenas por quem realmente gosta da boa música clássica e faz questão de conhecer os compositores oriundos dos países periféricos no setor.

Melhor análise, entretanto, fez Wagner Iglecias no blog da Maria Frô:

Um gari brasileiro em Londres

Por: Wagner Iglecias*

Cerimônias de encerramento de Olimpíadas sempre reservam um espacinho para que a cidade que sediará a próxima edição dos Jogos se anuncie. Se em 2008, em Pequim, Londres se apresentou ao público presente e aos bilhões de telespectadores mundo afora com a entrada triunfal, no estádio, de um daqueles tradicionais ônibus vermelhos de dois andares, ao som de rock and roll, no caso do Rio na cerimônia de encerramento dos Jogos de Londres quem abriu nossa participação foi um gari da Comlurb, a empresa de limpeza urbana da cidade do Rio de Janeiro.

Gari que, diante do “keep away” do segurança britânico, lhe estendeu a mão e lhe puxou para o samba. E que logo depois, do alto de sua vassoura, como diria Boris Casoy, lhe mostrou a complexidade cultural do país que será a sede da próxima Olimpíada: índios, Yemanjá, capoeiristas, samba, maracatu, o malandro da Lapa, o calçadão de Copacabana, Villa Lobos…

Lembro do tempo em que nosso projeto de país era ingressar no “Primeiro Mundo”. Era esta a nossa ilusão, envergonhada ou nem tanto, há duas décadas. Mal saíamos da ditadura, consagrávamos uma Constituição prenhe de direitos sociais e já dávamos de cara com o jogo duro, duríssimo, do neoliberalismo anglo-saxônico, que inclusive chegava até tardiamente nestas terras, se comparado ao que já se passava em outras partes da América Latina.

Pois bem, os tempos mudaram, e o Brasil se mostrou ao mundo, nesta cerimônia de Londres, pela figura de um homem negro, pobre e trabalhador, que abre os braços e um sorriso largo àquele que lhe é diferente. Países e sociedades, obviamente, criam e recriam imagens de si mesmos, inventam e reinventam o modo como se vêem e como querem ser vistos pelo mundo. Assim como os USA se idealizam para si e para o mundo como a pátria da liberdade, nós nos idealizamos como o país da convivência pacífica entre os diferentes. O que, pelo menos no nosso caso, a realidade todos os dias se encarrega de questionar e tantas vezes desmentir.

Há quem torceu o nariz para aquilo que entendeu como uma representação clichê da cultura brasileira e da complexidade de nossa sociedade nesta cerimônia. Como se a Rainha Elizabeth II, o agente 007 e Pink Floyd não fossem também, neste sentido, meros clichês nos Jogos de Londres, posto que ícones reconhecidos mundialmente como pertencentes à cultura britânica. A discussão de como nos mostraremos ao mundo na cerimônia dos Jogos do Rio 2016 deverá se estender pelos próximos anos, e deverá ser acalorada. Eu, do meu lado, quero mais é ver o povo brasileiro sendo mostrado para o mundo. E, mesmo sabendo de nossas tantas mazelas e dos tantos obstáculos que fazem as relações entre os brasileiros, das mais variadas cores e classes, não ser lá tão pacíficas, quero poder continuar acreditando, como disse Darcy Ribeiro, que a boa convivência talvez venha a ser a grande herança que o Brasil legará ao mundo. Já em relação àqueles que se incomodaram com o gari brasileiro em Londres, tudo o que posso dizer é a frase de Cazuza que me veio à cabeça: “são caboclos querendo ser ingleses”. Viva o Brasil !!!

*Wagner Iglecias é doutor em Sociologia e professor da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP.



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